Jovens trabalhadores da mina de carvão na África do Sul /Foto: Wikimedia Commons

África do Sul: 16 anos do fim do Apartheid (parte 1)

Artigo publicado no jornal Foice&Martelo Especial nº 18, de 29 de outubro de 2020. CONFIRA A EDIÇÃO COMPLETA.

Em 2010, assistimos pela televisão a África do Sul sediar a Copa do Mundo, ocasião em que modernos estádios de futebol e grande estrutura em parceria com a FIFA foram construídas para receber visitantes e atrair os holofotes do mundo todo. Mas as câmeras da burguesia internacional viravam as costas para dados sociais e econômicos profundamente perversos à classe trabalhadora sul africana.

O país do extremo sul do continente africano tem sua economia baseada na agricultura, sendo um importante exportador de grãos e cereais mundial, além de riquíssimas reservas de minério, como ferro e platina, um considerável setor financeiro e grandes montadoras de maquinários e carros, advindas de um processo de industrialização pós Segunda Guerra. São nesses setores que se concentra o proletariado, classe em que mais se encontra os quase 80% da população declarada negra no país.

Apesar da conhecida tradição militante da classe operária sul africana, bastante evidente na luta dos trabalhadores negros contra o colonialismo do Império Britânico e o Apartheid, as políticas adotadas pelos governos e a própria essência do regime “democrático” significaram muito mais uma tentativa de gerir o capitalismo de forma mais humanitária, trazendo consequências diretas ao proletariado.

Indicativos econômicos e sociais da África do Sul

Em uma economia planificada, grandes reservas minerais e extensas terras férteis poderiam ser motivo de comemoração para a classe operária. Mas sob o capitalismo, dados que poderiam ser sinônimos de prosperidade e desenvolvimento só nos apontam como se configura a exploração da força de trabalho e como isso se reflete nos indicativos sociais dos trabalhadores.

Para dar um exemplo, hoje, dos 57 milhões de habitantes, cerca de 20 milhões vivem em áreas rurais, em sua maioria mulheres negras. Isso é resultado direto de uma política de migração que faz com que trabalhadores da mineração sejam mandados às áreas remotas do país a serviço de multinacionais. Com os pais trabalhando nas minas e as mães na agricultura, estima-se que 55% das crianças negras sejam criadas por parentes, muitas vezes tendo que ajudar nos afazeres domésticos ou trabalhando em péssimas condições.

Ou seja, desde o berço, já se compromete o acesso à educação e ao pleno desenvolvimento das crianças proletárias. Isso contribui ao quadro onde mais de oito dos 20,5 milhões de jovens não trabalham e nem estudam, mesmo no regime “democrático” pós Apartheid. Por sinal, os níveis atuais de desemprego e desigualdade são ainda piores do que todo o período anterior a 1994, quando houve a mudança do regime político em uma nova constituinte.

Este mesmo exemplo é um dos principais motivos do outro problema bastante crônico de estupro e violência familiar, o que leva a África do Sul aos indicativos de assassinatos de mulheres por seus parceiros em perspectiva cinco vezes maior do que a média mundial. Esses já eram alguns dos indicativos da África do Sul em períodos de normalidade, antes do aprofundamento da crise pelo coronavírus.

A crise econômica mundial caiu no país deflagrando uma queda da moeda local, o rand, de 6,50 para 16 rands em relação ao dólar nos últimos 10 anos. A Dívida Pública cresceu do montante de 25% para 60%, em direção aos 70% do PIB, que por sua vez se encontra em “estagnação secular”, o que os analistas qualificam como ainda mais forte do que as estagnações cíclicas no capitalismo.

A classe operária, onde se encontra a maioria da população negra, carrega o peso da crise. Adentrando nessa questão, os dados demonstram que oito em cada dez trabalhadores são negros, enquanto 67% dos gerentes seniores do setor privado são brancos. Mais de 70% das terras ainda estão nas mãos da mesma elite branca, a renda mensal média de pessoas brancas estão no triplo do valor da renda mensal dos trabalhadores negros, e cerca de 97% dos CEO’s de agências financeiras são ocupados por brancos que ganham em média 1.750x mais do que um trabalhador comum.

A maior parte da população negra vive em favelas, contando com um sistema de transporte precário apenas para garantir suas idas ao trabalho. Isso se reflete em que os 10% mais ricos possuem 93% das riquezas, dos quais 1% são, sozinhos, dono de 67%. Os outros 7% das riquezas são divididos entre os 90% restantes da população, mais uma vez, de maioria negra. Essa realidade não é nenhuma exceção no capitalismo, mas a regra para a imensa maoria dos países. Se mesmo na economia mais desenvolvida dos EUA há dados no mesmo sentido, a questão se acentua em países atrasados e semi-colonias como a África do Sul e o Brasil, onde a realidade nas favelas é bastante semelhante.

Ou seja, se não há mais um regime político de Apartheid, há um regime econômico tão segregacionista quanto, e seu nome é modo de produção capitalista. Isso explica a continuidade (e, em vários contextos, o agravamento) dos principais problemas que a África do Sul já tinha antes de 1994. A Constituinte do novo período permitiu cláusulas de proteção à propriedade privada de grandes meios de produção, incluindo as terras, cujos documentos são frutos de banhos de sangue durante o período colonial. A forma como os índices sociais empurram a população negra às piores condições de vida é uma herança direta de todo o racismo que configurou a luta de classes no passado, e que a burguesia preservou como um dos pilares de sua imposição de classe.

Congresso Nacional Africano (ANC), o partido do novo regime

 Durante muitos anos, a tradição de luta da classe trabalhadora sul africana encontrou no partido do Congresso Nacional Africano (ANC) uma poderosa ferramenta de luta e mobilização. É o partido que governa o país desde o primeiro mandato de Nelson Mandela, em 1994. Mas o passado de luta de quando muitos militantes empunharam bandeiras revolucionárias contra o regime do Apartheid hoje dá lugar a um presente como mesa de apostas da burguesia, um mero balcão de negócios das finanças.

Embora progressista em relação ao Apartheid, a participação do ANC na nova constituinte foi no sentido de concordar com que os princípios de proteção constitucional dos meios de produção e das terras continuassem como cláusulas do novo regime. No lugar de um avanço na coletivização de terras sob controle dos trabalhadores, medidas capitalistas, como a Política de Empoderamento Econômico Negro, abriram as portas para a proliferação de uma nova burguesia “negra” em oposição à antiga burguesia branca.

Atualmente, o ANC é um partido com ferrenhas disputas internas, o que inclui até assassinatos entre suas frações. Em 2 anos, 90 militantes foram mortos a mando de figuras do próprio partido, gerando um clima de profunda tensão e desconfiança. E dentro dessa lógica, vimos os mesmos processos de articulações internas lançando e derrubando presidentes do próprio partido a depender da ocasião.

Thabo Mbeki, o presidente “ultra liberal” que governou de 1999 a 2008 (após o mandato de Nelson Mandela), ganhou bastante impopularidade por suas medidas escancaradas de austeridade. Temendo radicalizar o movimento das massas, o próprio partido se articulou em apresentar uma nova alternativa mais simpática a população.

Esse movimento contra Mbeki contou com fileiras da Liga da Juventude do ANC, a ANCYL, bem como do Partido Comunista Sul Africano (SACP) e do Congresso dos Sindicatos Sul-africanos (COSATU, a maior central sindical no momento). Nessa época, aconteceria a Conferência de Polkwane: o Congresso do ANC para definir a nova presidência do partido. Jacob Zuma foi lançado como alternativa, sendo eleito presidente do partido e, logo em seguida, presidente do país em 2008.

O governo Zuma

 Antes de mais nada, Zuma estava longe de ser um sinônimo de moralidade em relação a Mbeki: Em 2005, foi demitido do cargo de vice presidente do governo Mbeki por envolvimento no escândalo de tráfico de armas de Schabir Shaik, que colocou em suas costas nada menos do que 783 acusações de corrupção, fraude, lavagem de dinheiro e extorsão, o que já era de conhecimento público, inclusive da burguesia e das organizações de oposição que o apoiaram.

Mas isso não incomodou a burguesia ou o ANC, a princípio. Zuma assumiu cada vez mais abertamente uma política de aliança com um setor “junior” da burguesia, representado pela família indiana Gupta, proprietária de grandes reservas de minérios no país, e difundiu a corrupção em toda pequena relação de orçamento público à iniciativa privada na prestação de serviços sociais. Essas medidas terminaram por criar uma fração negra da burguesia que incomodava cada vez mais os grandes magnatas que sempre dominaram os recursos do país e não queriam concorrentes.

A bomba relógio era que a crise internacional de 2008 estava prestes a chegar. Assim que chegou, a produção de minérios apresentou queda recorde de 33% no último trimestre de 2008. O setor de manufatura caiu 22%. O número de empresas falidas aumentou em 47% nos primeiros quatro meses de 2009, e o custo de vida da classe trabalhadora ficou insustentável, enfrentando ainda o fechamento de mais de um milhão de postos de emprego.

No entanto, enquanto a grande burguesia precisava urgentemente de austeridade e ajuste fiscal, Zuma parecia seguir um caminho contrário. Austeridade significaria cortar o fluxo que alimentava seus comparsas de corrupção, tanto das prestadoras de serviço quanto do setor financeiro, como o Banco Comunitário VBS, o banco impulsionado pela Política Econômica de Empoderamento Negro que mais tarde foi descoberto em uma das maiores fraudes financeiras da história. Em outras palavras, Zuma estava preocupado em fechar negócios para enriquecer seus próprios aliados, o que incomodou bastante a grande burguesia.

No entanto, dada a fragilidade da situação, qualquer insurreição popular contra o partido ou ao sistema significaria o desgaste da importante ferramenta política de dominação que era o ANC, que estava no poder desde 1994. A missão delicadíssima da burguesia era remover Zuma com um corte cirúrgico, sem comprometer a estrutura já apodrecida do ANC.

O Massacre de Marikana

Nesse meio tempo, várias categorias de trabalhadores se lançaram em “greves selvagens” (sem o aval das direções sindicais). Uma delas foi a greve dos trabalhadores da multinacional britânica Lonmin, em 2012, em uma mina de platina no norte do país. Com grande articulação de Cyril Ramaphosa, membro do ANC no governo Zuma, o problema foi rapidamente resolvido com uma ação da polícia sul africana que abriu fogo a 112 trabalhadores, ferindo 78, assassinando 34 e prendendo outras centenas no episódio que ficou conhecido como Massacre de Marikana. Dois anos depois, Ramaphosa ganharia o cargo de vice presidente no governo Zuma, quando reeleito em 2014.

Policial chuta um dos 34 corpos de trabalhadores assassinados durante o Massacre de Marikana /Foto: socialistproject.ca

O massacre afundou o pé no acelerador dos protestos, desencadeando enormes greves em que os trabalhadores muitas vezes encontraram as próprias direções sindicais jogando balde de água fria (e às vezes de sangue) na fagulha revolucionária das insurreições. Mesmo porque, desta vez, a reivindicação não estava apenas no campo econômico dos salários, mas no repúdio ao que o regime politicamente representa aos trabalhadores na luta de classes.

CONTINUA NO FOICE & MARTELO ESPECIAL 19.