Neste texto analisaremos dois documentos que revelam as concepções e práticas, políticas e pedagógicas, que foram fomentadas e implementadas na URSS dentro do primeiro ano após a Revolução Russa.
Temos como fundamento aqui três textos: “Proclamação do comissariado do povo para a educação” (29 de outubro de 1917) e “Declaração sobre os princípios fundamentais da escola única do trabalho” (16 de outubro de 1918) assinados por Lunacharsky, e “Deliberação do comitê executivo central de toda a Rússia” (16 de outubro de 1918). Todos eles são anexos do livro “A construção da pedagogia socialista”(1) publicado este ano pela Editora Expressão Popular e as citações deste artigo tem suas páginas referentes sempre a esse livro.
As conquistas imediatas
Quando os marxistas explicam que só a revolução pode conquistar as principais demandas da classe trabalhadora, isso também implica as conquistas quanto à educação. Dentro de uma sociedade capitalista, dirigida pelos interesses burgueses, não podemos esperar nada mais do que uma escola livresca (conteudista ou de ensino) ou uma que utiliza de princípios construtivistas e escolanovistas que dentro do capitalismo têm como única função privar o proletariado do conhecimento humano historicamente acumulado.
A escola pública, sob o jugo do capital, está destinada a não ter professores bem remunerados, condições mínimas de trabalho e aprendizado aos estudantes. E seus conteúdos são definidos de acordo com as diretrizes impostas pela burguesia. Ou não é verdade que por detrás das discussões da Base Nacional Curricular Comum e da Reforma do Ensino Médio estão fundações capitalistas, como a Fundação Lehman, Bradesco dentre outras? Isso para dar um só exemplo.
A Revolução de 1917 demonstrou que só com a classe trabalhadora dirigindo a sociedade é que podemos almejar uma educação pública que reflete nossos interesses de classe. Na “Proclamação do comissariado do povo para a educação” (29 de outubro de 1917), Lunacharsky expõe medidas imediatas e princípios educacionais a serem desenvolvidas na nova sociedade que os revolucionários almejavam construir:
- Universalização da educação pública, gratuita, laica e única; (p. 268-9)
- Meta central de acabar com o analfabetismo da classe trabalhadora e camponesa russa; (p. 268-9)
- Formação de professores em regime de urgência; (p. 268-9)
- Educação também para os adultos; (p. 268-9)
- Os revolucionários também iniciaram uma verdadeira cruzada contra as concepções pedagógicas vigentes sob o czarismo. Isso é bem expresso na diferenciação feita por Lunacharsky entre Instrução e Educação: “Instrução é a transmissão de conhecimento pronto pelo professor a seu aluno. A educação é um processo criativo.” (p. 269) O que o autor quer dizer é: sem deixar de instruir, a nova educação deve se preocupar predominantemente em educar a massa de crianças, jovens e adultos, que criarão uma massa de novos e mais elevados seres humanos.
- Instituiu-se o princípio de autodireção local. Ou seja, embora os órgãos educacionais nacionais e centrais determinem as diretrizes, são as direções locais as responsáveis por gerir as instituições escolares, sendo independentes inclusive dos governos municipais e estaduais e controlados coletivamente pela classe trabalhadora. (p. 270)
- Para promover a cooperação dos professores com as forças sociais e demonstrando a importância que a educação tinha para o recém-formado governo, o comissariado atendeu de imediato as justas reivindicações a começar pelos professores da escola primária (hoje professores de fundamental 1 e parte do fundamental 2) e imediato aumento salarial dos professores em seu conjunto. (p. 272)
Na “Deliberação do comitê executivo central de toda a Rússia” (16 de outubro de 1918), nem um ano após a revolução, listamos abaixo conquistas históricas para a educação pública russa, antes anunciadas e agora devidamente legisladas pelo órgão dirigente da Revolução Russa:
- O ensino nas escolas de primeiro e segundo graus passa a ser totalmente gratuito, assim como a frequência das crianças e jovens em idade escolar é obrigatória. Isso também implica o custeio de material escolar, sapatos e roupas para o estudo pelo governo. (p. 276)
- A coeducação, ou educação conjunta de meninos e meninas é introduzida nas escolas de primeiro e segundo grau. (p. 277)
- Proibição de credos e cultos dentro da escola (p. 277). A discussão hoje no Brasil demonstra como o atraso cultural promovido pela decadência capitalista nos fez retroceder tanto nesse aspecto, conquistada de imediato pela classe trabalhadora russa.
- Eliminada a divisão dos professores em diferentes categorias. Todos os funcionários da escola passam a ser remunerados de acordo com os mesmos critérios, sendo a partir de agora seu pagamento feito por mês, e não mais por hora. (p. 277) Hoje no Estado de São Paulo, os professores da rede estadual são divididos em diversas categorias (A, F, O, V etc.). Isso tem uma função de divisão política e aumento da exploração.
- Todos os funcionários da escola deveriam ser eleitos, e trabalhar de acordo com as orientações do Comissariado do Povo para a Educação. (p. 277)
- Instrutores do comissariado: uma função criada para orientar as escolas e garantir a conexão dessas com os órgãos nacionais e colaborar na instrução dos professores. (p. 278)
- Número máximo de estudantes por sala: 25 (p. 278). Hoje no Brasil ainda se luta por essa medida, que foi conquista com uma canetada em um governo genuinamente operário.
- De acordo com o artigo 17º da deliberação, solicitar lições obrigatórias e trabalhos para casa não seria mais permitido (p. 281). Isso, em especial, porque a escola passaria a ser um espaço de educação integral do estudante, sendo o seu tempo livre destinado a seu autoconhecimento. Isso representava também um combate à cultura livresca na educação.
- O artigo 18º passou a proibir qualquer tipo de punição na escola. (p. 281)
- “Art. 19º. Todos os exames – introdutórios, intermediários e finais – ficam cancelados.” (p. 281) Num contexto onde temos exames diagnósticos bimestrais, exames padronizados para todos as cidades e estados, essa deliberação da época se mostra muito mais avançada do que nossa realidade hoje no século 21.
- Algo que é impossível de se imaginar nas milhares de escolas brasileiras na Rússia pós-revolução de Outubro era uma realidade: “Art. 22º. Todas escolas, tanto de primeiro como segundo graus, devem ter supervisão médica regular.” (p. 281)
- E por último, uma conquista recente da educação brasileira, mas que não é realizada na prática na maioria das escolas: Eleição do coletivo escolar, o que seria o equivalente ao Conselho de Escola na rede estadual paulista: “Art. 26º. O coletivo escolar de cada escola é constituído por todos os seus estudantes e trabalhadores.” (p. 282)
Concepções pedagógicas implementadas
No texto “Declaração sobre os princípios fundamentais da escola única do trabalho” (16 de outubro de 1918, assinada por Lunacharsky), uma série de concepções pedagógicas são implementadas e representam os primeiros passos no sentido da construção de uma pedagogia socialista.
Em primeiro lugar a noção estabelecida de Escola Única era a seguinte:
“Isso significa que todo o sistema de escolas regulares, do jardim de infância até a universidade, constitui em si uma única escola, uma única escada contínua. Isso significa que todas as crianças devem entrar em um único e mesmo tipo de escola, e começar a sua educação igualmente; significa que todas elas têm o direito a avançar pela escada até seus níveis mais altos.” (p. 287)
Logo após, o autor faz ressalva, no sentido de dizer que isso não quer dizer uniformizar as escolas em absoluto, mas hegemonizar determinados direitos e princípios, a partir dos quais cada localidade irá ter determinado grau de autonomia. Inclusive é permitida a iniciativa privada educar dentro de certos limites. (p. 288)
Para além de única, a escola do regime soviético deveria ser também uma escola do trabalho, conectando todos os conhecimentos teóricos adquiridos com a vida prática e produtiva da sociedade. De acordo com o documento supracitado nessa seção, ela deve se desenvolver da seguinte forma:
“No primeiro nível, o ensino apoia-se em processos de caráter mais ou menos artesanal, em correspondência com as forças frágeis das crianças e suas inclinações naturais nesta idade. No segundo nível, coloca-se em primeiro plano o trabalho agrícola e empresarial em suas formas mecânicas modernas.” (p. 290)
E tudo isso com objetivo de desenvolvimento politécnico, e não especializado da criança.
Quanto à combinação entre teoria e prática, essa prática pedagógica deve promover o conhecer a vida tanto do ponto de vista teórico e contemplativo “passeando, colecionado (sic), desenhando, fotografando, modelando […] A língua, matemática, história, geografia, física e química, botânica e zoologia” tudo de modo “ativo e criativo”, quanto de modo prático, a partir da inserção da criança no trabalho socialmente necessário via “tarefas de marcenaria e carpintaria, torno, entalhadura, moldagem, forjadura, fundição, torno de materiais, fundição e soldagem de metais, temperar metais, trabalhos de broqueamento, trabalhos com couro, impressão e outros.” Às horas gastas no trabalho deve-se dedicar, de acordo com o revolucionário russo e responsável do Narkompros, 10 horas semanais. (p. 290)
Outra observação importante a ser realizada é que, considerando a época e a discussão sobre arte e educação no período, podemos ver inclusive nesse aspecto avanços quanto à forma de implementação do ensino de arte:
“Disciplinas estéticas como modelagem, desenho, canto e música, de forma alguma são algo secundário, algum luxo da vida. Especialmente o desenho e modelagem, como sua disciplina auxiliar, devem ocupar lugar relevante. […] Da mesma forma, o canto e a música devem estar ligados com o refinamento do ouvido. Deve-se dedicar um lugar da maior importância ao ritmo e aos princípios do coral como disciplina que desenvolve as habilidades coletivas, a capacidade para associar ações e emoções comuns. […] Em geral por educação estética deve se entender não o ensino de alguma arte infantil simplificada, mas o desenvolvimento sistemático dos órgãos dos sentidos e habilidades criativas, que ampliam as possibilidades de deleitar-se com a beleza e de criá-la.” (p. 296)
O que mais nos chama atenção é a conexão de arte com a criatividade, ainda de modo embrionário, mas que representou um dos eixos de trabalhos de arte-educadores proeminentes na Europa Ocidental no século 20, tais como Viktor Lowenfeld.
Por fim, um dos princípios mais importantes dos imediatamente implementados na Rússia Soviética foi o da individualização do ensino, que é diferente e inclusive oposto à individualista educação burguesa:
“O princípio mais importante da escola renovada é a individualização mais completa do ensino. Por individualização deve entender-se a análise, pelo lado do professor, das inclinações e especificidades do caráter de cada estudante e a adaptação mais completa possível às suas necessidades específicas naquilo que a escola dá a ele e do que ela pede dele.
Queremos diferenciar claramente entre individualização no ensino e individualismo. A escola educativa deve procurar eliminar do espírito da criança, o mais possível, aqueles traços de egoísmo que foram herdados pela pessoa do passado e, preparando-a para o futuro, procurar desde os bancos escolares, forjar coletivos fortes e desenvolver no mais alto grau a capacidade para a vivência coletiva e para a solidariedade.” (p. 297)
Assim, a inicial e ousada tarefa dos revolucionários russos com respeito à educação tinha como objetivo central a construção de uma Escola Única do Trabalho, rumo a uma educação politécnica, estética e individualizada, capaz de criar um novo ser humano, multilateralmente desenvolvido e capaz de lidar com os desafios do novo mundo pelo qual se lutava para construir.
Claramente não chegamos nem perto de esgotar o assunto, porém esperamos ter levantado elementos que exemplificam que, para uma mudança material e conceitual da educação pública, é necessário empreender uma permanente luta revolucionária e socialista até a derrocada final do modo de produção capitalista. Agende uma conversa com um ativista do coletivo Educadores pelo Socialismo ou militante da Esquerda Marxista e também faça parte desta luta!
Acesse a página do coletivo no Facebook!
Fontes:
(1) FREITAS, Luiz Carlos de; CALDART, Roseli Salete (Orgs.). A construção da pedagogia socialista: escritos selecionados. 1ª ed., São Paulo: Expressão Popular, 2017.