Bonaparte e Bolsonaro: a farsa na repetição histórica

Este artigo foi originalmente publicado no Foice&Martelo, publicação que analisa a situação política nacional e internacional de um ponto de vista marxista e das tarefas revolucionárias. Conheça o jornal, assine e tenha acesso exclusivo ao conteúdo completo do número vigente e ao acervo de edições. Confira a edição em vigor.

Os dois Napoleões

Napoleão Bonaparte assumiu o governo da França em 1799, dez anos após a Revolução Francesa ter deposto o rei e instalado uma república. Ele assumiu e foi respaldado pela maioria da burguesia para restaurar a “ordem” que a revolução tinha destruído e que, constantemente, ameaçava os novos negócios que se abriam com o fim dos entraves feudais. Em 1804, Bonaparte se fez proclamar imperador da França. Sob o seu governo os exércitos franceses invadiram os países vizinhos e destroçaram a maioria das instituições feudais, abrindo caminho para a burguesia em todas as nações europeias.

O seu governo instituiu uma nova forma de estado (Estado Bonapartista) na qual o “representante do povo” alça-se acima dos outros poderes clássicos (congresso e judiciário) para salvar a nação. Historicamente, ele se coloca como um árbitro entre as diferentes classes e na prática defende os interesses da burguesia.

No Século 19, a Europa passa por diversas revoluções e revoltas, durante as quais a burguesia reafirma o seu poder político e, ao mesmo tempo, inicia-se a participação política do proletariado. As revoluções de 1830 e de 1848 varreram toda a Europa. Em 1848, pela primeira vez, o proletariado participa de forma independente. É a revolta do proletariado que destitui Luiz Felipe (o “rei-burguês”) e institui novamente uma república na França.

Marx explica a história dessa revolução e do seu final: um pretenso sobrinho de Napoleão1 torna-se imperador com o nome de “Napoleão III”2. Marx explica que a Revolução começa com o proletariado se manifestando e derrubando o rei (fev/1848) e que a república instalada (que o proletariado queria que fosse uma República Social) foi burguesa, onde a burguesia era maioria na Constituinte recém-eleita. O proletariado volta a se manifestar (jornadas de junho) e é derrotado militarmente nas ruas, com mais de 3 mil mortos. Seus representantes e líderes são presos ou desterrados.

Após esses acontecimentos, um presidente é eleito (no caso, Luiz Bonaparte) e ele nomeia um ministério que reúne os maiores líderes da Assembleia Constituinte. Imediatamente, o novo ministério, para se afirmar, passa por cima de uma série de prerrogativas democráticas da Assembleia. Esta protesta, mas não demite nem o presidente nem o ministério. Durante quatro anos, uma série de incidentes, nomeações e demissões de ministros terminam por fazer com que Luiz Napoleão dissolva a Assembleia Nacional e se autonomeie imperador.

Um ponto deveras interessante é que a Assembleia para combater o proletariado, primeiro dá o poder a um general (Changarnier), representante da maioria e, ao mesmo tempo, retira as prerrogativas parlamentares da maioria dos dirigentes do proletariado que tinham sido eleitos. Depois, escudados no general, atacam os representantes da pequena burguesia e também destes são retiradas as prerrogativas parlamentares. Mas a assembleia é cada vez mais covarde e, depois de não defender seus próprios integrantes, aceita que o seu general seja demitido do comando das tropas por Napoleão. Este, então fortalecido, usa as tropas para dissolver a Assembleia.

Marx chama a esse novo tipo de governo de cesarismo (em comparação com o governo de Cesar na antiga Roma). Posteriormente, os marxistas vão classificar esse tipo de governo de bonapartista (o nome vindo dos dois bonapartes).

Os regimes políticos na América Latina

A independência das nações latino-americanas nunca levou a um regime estritamente democrático, como conhecido na Europa ou mesmo nos EUA. A dominação do capital estrangeiro, em particular do capital inglês e yankee, além do capital francês e alemão, vão levar a constituição de estados semi-independentes, semicoloniais, atrasados, no qual a figura do “salvador da pátria”, do “Bonaparte”, muitas vezes militares, e muitas vezes tendo outras origens, se torna dominante.

Poucos países constituem um regime partidário digno desse nome. Onde a classe operária avança mais, constitui partidos próprios, é ferozmente atacada pela burguesia local e pelo imperialismo. No Brasil, por exemplo, os partidos de antes da ditadura e os que se constituíram depois da Constituição de 1988 são acordos e “coligações” que dependem mais das condições eleitorais do que de um programa real que defenda os interesses claros de uma classe social ou de uma fração de uma classe.

A proliferação de partidos “de aluguel”, por onde deputados transitam como se transitassem numa rua ou num bordel, é uma realidade. Se Bolsonaro é criticado por mudar várias vezes de partido, essa é a realidade também de Ciro Gomes, de Garotinho, no Rio, de Eduardo Paes e a lista é longa. Provavelmente, somente o PMDB (que é uma enorme estrutura, comandada por caciques locais e reunidos para disputar frações do aparelho de estado), o PSDB (que tinha uma ligação mais forte com a burguesia paulista) e o PT não sofreram tantas mudanças.

A consequência disso é de políticos que se alçam “acima” dos partidos, que procuram encarnar a “alma” da nação, que procuram representar “todos” e que se imaginam quase como o salvador ungido por um deus para consertar o país. Seja esse país o Brasil, a Argentina ou a Venezuela.

Em essência, esse é o regime que se chama de bonapartista: alguém que se alça acima dos partidos e instituições, que se torna ele próprio uma “instituição” e que procura arbitrar os interesses divergentes existentes.

Isso produz poderes executivos fortes, mas não só isso. Os exemplos desse tipo de fenômeno político, com traços mais ou menos nacionalistas, abundam na história da América Latina: desde Cardenas, que nacionalizou o petróleo no México durante a década de 1930, Getúlio Vargas no Brasil, Peron na Argentina ou, do outro lado, um governo como o da ditadura militar Argentina que num arroubo nacionalista, para evitar ser derrubada, invade as ilhas Malvinas (que o nacionalista Peron não tinha feito).

Por outro lado, o fato de apoiar-se nas forças armadas não significa que o regime não possa transitar para o fascismo, ainda que sem um partido fascista formal: o Regime de Pinochet no Chile destruiu toda e qualquer forma de organização operária, enquanto o regime militar no Brasil, apesar da repressão dura, da intervenção nos sindicatos, não destruiu toda organização operária. Lembremos: as caracterizações, as definições, servem como um estudo da realidade, mas a realidade é a verdade, é a concretude no qual os traços se misturam. Qual a realidade, hoje, no Brasil?

Lula, a Justiça e Bolsonaro

O PT governou o Brasil durante 13 anos, em coalizão com a burguesia. A antiga bandeira que era gritada nos anos 1980 – “PT, PT, PT, trabalhadores no poder” – foi jogada no lixo pelos novos amigos, a cachaça trocada pelo Whisky 12 anos, a cerveja pela champanhe. Lula fez uma “reforma” que acabou com a previdência dos servidores, não fez a reforma agrária, apoiou o agronegócio e todos os empresários amigos. Estes, em troca, também ajudaram a reeleger Lula e o PT, e depois Dilma. Mas a festa começou a chegar ao fim com a crise de 2007/08 e explodiu nas ruas em 2013. O PSOL aparecia então como o partido que estava nas ruas (a maioria dos manifestantes que dizia apoiar algum partido apoiava o PSOL) e também existiam os “sem partido”. O PT acenou com uma “reforma política” que não dizia qual era e com a manutenção da segurança, ou seja, mais repressão. Haddad, o futuro candidato do PT, então prefeito de São Paulo, aparecia em vídeo com Alckmin em Paris.

A burguesia imperialista, por sua vez, começa uma política de renovação dos quadros e partidos nos países semicoloniais, com operações semelhantes à “mãos limpas” da Itália. Contudo, se lá o antigo Partido Comunista forneceu os quadros para o novo “Democratas”, aqui não existiam os quadros e as tentativas de construí-los estavam muito longe ainda (Novo, Movimento Brasil Livre etc). Nesta situação, o poder judiciário agiu como uma poder bonapartista, acima das outras instituições, guardião da moral e dos bons costumes. Sérgio Moro é incensado e o STF tutela todos os outros poderes.

O legislativo começa por entregar seus próprios componentes, quando um senador é preso por ordem do STF e o plenário chancela essa decisão. Deputados são destituídos do mandato com aprovação da Câmara. Nas ruas, a pequena burguesia enfurecida comanda protestos pedindo a destituição de Dilma.

Esta, tonta, nem se alia ao “lado podre” da Câmara, nem toma medidas fortes contra Sérgio Moro, nem se alia ao proletariado tomando medidas em defesa dos trabalhadores. Sozinha, abandonada, é derrubada por um Congresso que mostra toda a sua podridão nas declarações de voto do impeachment de Dilma. Porém, a turba quer sangue e o Congresso, exaurido depois de afastar Dilma, entrega o seu próprio presidente à sanha do Judiciário.

É nesse clima que um deputado do “baixo clero”, anticomunista, direitista, aparece como um “candidato à presidência” com o lema de “contra tudo que está aí”, contra este sistema, contra o PT. Partido? Ele escolhe um que o aceite como candidato. Assessores? São os amigos, os familiares e os admiradores de última hora. Um Bonaparte a la Luiz Napoleão, que Marx tão bem descreveu no seu livro.

E o Judiciário, que tudo pode e tudo faz, começa a encontrar seus limites quando um filho de Bolsonaro declara que bastam um sargento e um recruta para fechar o STF. Uma brincadeira? Mas foi com brincadeiras como essas, como ditos e reditos, com desmentidos e desculpas, que Luiz Napoleão fechou a Assembleia Francesa (com soldados reais) e depois se consagrou imperador. O Supremo exige o respeito à lei e à ordem. Tudo muito bem dito e reafirmado pelo ex-capitão, depois deputado e agora presidente eleito. Mas acima de tudo está Deus e, na falta de manifestação expressa de Sua Vontade, o seu eleito e ungido (até batizado no rio Jordão) pode muito bem se fazer de intérprete e fechar o STF e o Congresso. Está dado este cenário? Se dependesse da vontade do “novo Bonaparte” e de seus filhos, provavelmente sim. Contudo, todo governo bonapartista é um governo instável, depende do equilíbrio de força entre as classes sociais, entre as frações das classes e o proletariado, suas organizações e sua luta ainda detêm a última palavra.

1https://veja.abril.com.br/ciencia/exame-de-dna-revela-que-napoleao-iii-nao-era-sobrinho-de-napoleao-bonaparte/

2Marx, Karl O 18 de Brumário de Luiz Bonaparte