Bósnia-Herzegovina: a revolta coloca a luta de classes na ordem do dia

Os protestos atuais na Bósnia-Herzegovina lançam suas raízes na desintegração da Iugoslávia. A guerra civil e religiosa, duas décadas de privatizações, o saqueio e um capitalismo periférico mafioso levaram a um sentimento de que uma vida boa e próspera era matéria da história.

Os protestos atuais na Bósnia-Herzegovina lançam suas raízes na desintegração da Iugoslávia. A guerra civil e religiosa, duas décadas de privatizações, o saqueio e um capitalismo periférico mafioso, assim como a constante humilhação pelas estruturas do protetorado imperialista OAR (Escritório do Alto Representante) pressionaram tão duramente aos bósnios – e a outros povos iugoslavos – que durante um longo período parecia que uma vida boa e próspera era somente matéria da história e dos contos familiares da “época de Tito”.

A pobreza, a criminalidade desenfreada e uma constante situação de conflito pareciam haver-se convertido em uma nova normalidade permanente, sem final à vista. O tempo parecia haver-se detido na Bósnia – ou, pelo menos, assim parecia na superfície.

Ansiando por uma vida melhor, “normal”, as gerações mais jovens saíram às ruas de Tuzla à maneira dos manifestantes egípcios, latino-americanos ou de Ocupa Wall Street, exigindo algum tipo de mudança e dirigindo sua ira contra a elite governante.

Como costuma acontecer nessas ocasiões, alguém da elite governante fez algo estúpido (uma manobra tática que repetiram mais de uma vez, como veremos mais adiante). A polícia reagiu com força excessiva, radicalizando o movimento até o ponto em que não havia mais forma de detê-lo. Não demorou para o edifício do governo cantonal de Tuzla ficar em chamas com as palavras “Demissões!” e “Morte ao nacionalismo!” pintadas sobre suas paredes.

O sentimento de poder se espalhou por toda a Bósnia como um rastilho de pólvora, sobretudo com a ajuda de Facebook, Twitter e outras redes sociais, através dos quais a ira e a frustração acumuladas encontraram uma forma de se expressar. Sem demora, outras cidades acompanharam Tuzla, como Bihac, Sarajevo e Mostar. Na medida em que estas linhas estão sendo escritas, uma manifestação de solidariedade está sendo organizada em Belgrado (capital da Sérvia), e outra mais para a quarta-feira, seguidas de um comício em Zagreb (capital da Croácia), para a quinta-feira.

Um protesto contra o sistema

Na medida em que estas manifestações começaram como explosões espontâneas de ira popular, não têm nenhuma linha de classe clara. Os manifestantes em sua maioria se veem a si mesmos como “cidadãos famintos” ou “carentes de direitos”, lutando “contra a corrupção”. As facções mais organizadas no protesto são as ONGs liberais de agendas ocultas, que se aproveitam da falta de uma direção operária genuína. Embora o movimento tenha se originado nos protestos dos trabalhadores de Tuzla, o movimento operário organizado não tomou a iniciativa até agora, e não havia, naturalmente, nenhum apoio de nenhum partido político.

No entanto, merece grande destaque o fato de que, em meio a esta confusão, as massas lograssem formular demandas que podem unir todo o povo, independentemente de suas origens nacionais e religiosas, e expressar seus interesses fundamentais.

As demandas colocadas na Declaração dos Trabalhadores e Cidadãos do cantão de Tuzla são simples, mas entram em choque com os interesses próprios fundamentais defendidos pelas elites no poder, o que coloca a questão de quem deve governar a sociedade:

“7 de fevereiro de 2014. Hoje está sendo criado um novo futuro! O governo [local] apresentou sua demissão, o que significa que a primeira demanda dos manifestantes foi satisfeita, e que as condições para a solução dos problemas existentes foram alcançadas. A ira e a raiva acumuladas são as causas deste comportamento agressivo. A atitude das autoridades criou as condições para que cresçam a ira e a raiva.

“Agora, nesta nova situação, desejamos dirigir a ira e a raiva para a construção de um sistema produtivo e útil de governo. Fazemos um apelo a todos os cidadãos para que apoiem a realização dos seguintes objetivos:

“1) Manter a ordem pública e a paz em cooperação com os cidadãos, a polícia e a proteção civil, com o fim de evitar qualquer criminalização, politização e manipulação dos protestos.

“2) Estabelecer um governo técnico, composto por membros especializados, não políticos, e sem compromissos. [Devem ser pessoas] que não tenham ocupado nenhum cargo em nenhum nível de governo e que dirijam o cantão de Tuzla até as eleições de 2014. Este governo deveria estar obrigado a apresentar planos e informes semanais sobre seu trabalho e cumprir seus objetivos proclamados. O trabalho do governo será acompanhado por todos os cidadãos interessados.

“3) Resolver, através de um procedimento acelerado, todas as questões relativas à privatização das seguintes empresas: Dita, Polihem, Poliohem, Gumara e Konjuh. O governo deverá:

Reconhecer a antiguidade e um seguro de saúde aos trabalhadores.

Tramitar o julgamento dos delitos econômicos e de todos os implicados neles.

Confiscar a propriedade obtida ilegalmente.

Anular os acordos de privatização [destas empresas].

Preparar a revisão das privatizações.

Devolver as fábricas aos trabalhadores e colocar tudo sob o controle do governo público a fim de proteger o interesse público, e iniciar a produção nas fábricas onde seja possível.

“4) Igualar os subsídios dos representantes do governo ao pagamento dos trabalhadores do setor público e privado.

“5) Eliminar os pagamentos adicionais aos representantes do governo, adicionados as suas receitas, como resultado de sua participação nas comissões, comitês e outros órgãos, bem como outras formas irracionais e injustificadas de compensação além das que todos os empregados têm direito.

“6) Eliminar os subsídios dos ministros e, eventualmente, de outros empregado do Estado depois do encerramento de seus mandatos.

“Esta declaração é apresentada pelos trabalhadores e cidadãos do cantão de Tuzla para o bem de todos”.

É verdade que, teoricamente, todas estas coisas poderiam ser realizadas dentro dos limites do capitalismo. Mas a verdade é que numa economia capitalista periférica, baseada no capitalismo de estilo mafioso, que se vê afetada pelo colapso interno, junto à crise capitalista global, estas demandas nunca poderão ser satisfeitas dentro dos estreitos e apodrecidos limites do sistema atual.

De fato, para que estas demandas sejam realizadas, o povo teria que tomar o poder ele mesmo e, com isso, expropriar a oligarquia clientelista, e derrubar as instituições burguesas e o sistema político para evitar que possam contra-atacar. Nas condições da Bósnia, estas demandas têm conteúdo revolucionário!

Por outro lado, estas demandas caracterizam os manifestantes, não como membros de nenhuma das principais nações ou religiões da Bósnia, sequer apenas dos cidadãos, e sim como “trabalhadores e cidadãos” que golpeiam na própria raiz da dominação burguesa neste país!

Bósnios lutando lado a lado e como trabalhadores, exigindo o fim da privatização, querendo tomar a riqueza das mãos de seus dirigentes e “campeões nacionais”? Sem dúvida, isto deve ter aterrorizado à elite governante, assim como as estruturas imperialistas de ocupação. E o fizeram!

Os alarmes dessa gente se apagaram e não perderam um momento nos preparativos para uma ofensiva contrarrevolucionária, incluindo a recente ameaça do Alto Representante para a Bósnia e Herzegovina, Valentin Inzko – que sentiu a necessidade de ameaçar os manifestantes com o uso de tropas da EUFOR, para esmagar a revolta.

O movimento derrubou alguns dos governos cantonais e ameaça elevar-se ainda mais, mas até agora somente colocou a questão de quem governa a sociedade, mas sem resolvê-la. A exigência de prestação de contas dos governos futuros coloca a necessidade de criar órgãos de poder popular, a fim de tornar este controle efetivo.

Como Marxistas, daremos todo o nosso apoio a todas as medidas que sejam tentadas nessa direção e apelamos aos trabalhadores e jovens da Bósnia a se unirem, a organizar comitês de direção da luta e a construir Conselhos em todos os níveis, começando pelas fábricas e postos de trabalho, escolas e bairros operários, e coordená-los em nível local e nacional.

Vossa luta é nossa luta!

Belgrado, 9 de fevereiro

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Proclamação ao povo de Tuzla

Queridos habitantes de Tuzla:

Vossa luta hoje é um exemplo brilhante de autolibertação dos trabalhadores para todos os Bálcãs. É uma luta igual às lutas das massas na Tunísia, Grécia e América Latina!

Vossa iniciativa atual, [que se produziu com] a renúncia do governo cantonal e a capitulação dos órgãos repressivos do Estado, não somente é uma fonte de inspiração, como também a prova incontestável da dependência de todos os governos do consentimento de seu povo. Cada opressor continua sendo um opressor somente na medida em que os oprimidos consentirem a opressão – essa é a lição que foi demonstrada atualmente em todo o mundo. A luta de vossa cidade e vosso país nos mostra o futuro que nos espera a todos!

Vosso exemplo se tornou ainda mais notável ao romper os estreitos limites do nacionalismo e do fundamentalismo religioso, que nos foram impostos, e falsamente são-nos apresentados como os únicos poderes sérios nestas terras. Onde estão os nacionalistas e os fanáticos religiosos hoje? Seu poder político se converteu em fumo junto com o fumo do edifício em chamas, que pertencia à mesma elite política que os criou! Não são nada e o povo é tudo!

Todo o poder e arrogância da elite nacional e de seus superiores estrangeiros se apoiam na justificativa que afirma que são eles que estão “salvaguardando a paz e a ordem”, porque os povos iriam à guerra uns contra os outros se forem deixados sem sua supervisão.

E foi a guerra que fizestes, não entre vós, mas contra eles. Era isso o que mais temiam e, por isso, fizeram tudo o que era possível para manter o medo entre vós. Ao declarar guerra contra o nacionalismo e outras divisões falsas, haveis revelado a verdadeira e única divisão importante na sociedade atual – a divisão entre a maioria que trabalha e a minoria que parasita.

E vocês ganharam!

Contudo, esta vitória acima de tudo deve ser motivo de precaução, em vez de complacência e de voltar para casa. Muitas revoluções foram arrebatadas das mãos de seus povos por não permanecer em guarda.

O governo cantonal de Tuzla caiu, mas um novo pode ser estabelecido amanhã! O primeiro-ministro renunciou, mas os magnatas permaneceram! Alguns cargos foram perdidos, mas as contas bancárias estão intactas!

A vitória que acabastes de vencer somente pode ser preservada mediante novas vitórias!

Para lograr isto, é da maior importância e urgência dar os seguintes passos:

Não abandonar as ruas! Não voltar para casa, já que com toda a probabilidade vos encontrareis com novas formações das forças armadas nas ruas quando acordarem amanhã. Mantenham contato com os demais e não permitais que os detenham nem os isolem individualmente!

Impor a ordem e a disciplina nas ruas. A violência só é útil se não é insensata e quando é utilizada para defender o povo contra o despotismo do governo. Não permitais que os sicários de pequeno porte e os provocadores da polícia sabotem os protestos com saques ou provocando o caos e o medo. A cidade é vossa – que funcione sob vossa supervisão e para vosso próprio interesse.

Organizai conselhos populares em vossos bairros, com base na democracia direta e com mandato imperativo dos delegados. Estabelecei uma democracia à altura de seu merecimento! As estruturas parlamentares existentes demonstraram por si mesmas ser um poço negro de corrupção e nepotismo, e um trampolim para o enriquecimento pessoal dos oligarcas e dos políticos sob sua folha de pagamentos. Vossa luta demonstrou acima de tudo que somente as massas organizadas de trabalhadores podem estabelecer a ordem no interesse da maioria. Dessa forma, estabelecei essa ordem e não deixeis que ninguém imponha outra vez o patrocínio de ninguém sobre vós!

Exijam a devolução do poder econômico às mãos do povo e o controle democrático da economia! Os oligarcas, que se vangloriam a si mesmos como “criadores de emprego” – apesar de que foi por causa deles que dezenas de milhares perderam seus postos de trabalho – já demonstraram o que acontece quando se deixa a economia em suas mãos. Exijam a anulação de todas as privatizações da grande indústria e do setor financeiro, assim como a colocação das fábricas, minas e bancos sob o controle democrático dos conselhos populares! No caso de que o governo federal se negue a obedecer, fazei cumprir estas demandas vós mesmos – já haveis demonstrado que podeis fazê-lo!

Não se deixem cair nas artimanhas dos políticos, tais como suas consignas “patrióticas”! Não permitais que a revolta social se converta em conflito étnico! A elite política e econômica aposta agora em um conflito nos protestos dentro das duas entidades e nos cantões que têm maioria bósnia e croata. Não vos deixeis enganar! A questão dos cantões e das entidades tem que ser resolvida como resultado de uma decisão democrática de todos os cidadãos da Bósnia e Herzegovina. Tal resolução somente é possível depois de se estabelecer um governo do povo, dirigido pelas massas de todos os povos da Bósnia. Se quiserdes um país unificado, tereis que unir todos os povos, independentemente de sua origem nacional, em uma luta social, livre das perniciosas fantasias chauvinistas!

Estamos com vocês em solidariedade e para trabalhar pela expansão de vossa luta.