“O Estado sou eu”
(Luís XIV, 1655, Rei da França).
“Se você quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é desmerecendo o soldado e o cabo, não. O que é o STF, cara? Tipo, tira o poder da caneta de um ministro do STF, o que ele é na rua? Se você prender um ministro do STF, você acha que vai ter uma manifestação popular a favor dos ministros?”
(Eduardo Bolsonaro, 2018, Deputado Federal por São Paulo).
O que é o STF?
Ao contrário do que possa parecer ao senso comum por meio das manchetes da mídia, o Supremo Tribunal Federal (STF) não é apenas a instância judiciária responsável pelo julgamento dos que têm o chamado “foro privilegiado”, dos políticos que possuem algum cargo em nível federal em um dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Aliás, essa é uma de suas atribuições mais secundárias, que alcança níveis peculiares somente no Brasil.
Na verdade, o STF é uma Corte Constitucional, órgão do Estado burguês (na atualidade chamado Estado Democrático de Direito) responsável por interpretar a Constituição Federal de 1988, teoricamente com base nos princípios nela dispostos. Trata-se da instância mais alta do Poder Judiciário que, assim como o Poder Legislativo (a nível federal no Brasil representado pelo Congresso Nacional) e o Poder Executivo (Presidência, Ministérios, Forças Armadas, entre outros órgãos), é uma das instituições criadas a partir da Revolução Francesa, liderada pela burguesia, dando fim ao poder absoluto da nobreza na França. Foi assim um marco histórico do início da hegemonia do capitalismo e da sociedade burguesa. Foi uma medida para contrapor a concentração de poder na mão do rei, literalmente expressada por Luís XIV na citação posta no início deste artigo. Contudo, mesmo com princípios de liberdade, fraternidade e igualdade, o Estado concebido pela burguesia lhe serviu como instrumento de dominação sobre o campesinato e a nascente classe proletária. A alegada separação e autonomia dos poderes estatais nada mais é que uma farsa para esconder e reforçar o domínio da burguesia, uma vez que essa detém o poder econômico por meio da propriedade privada dos meios de produção.
Desse modo, mais que interpretar a Constituição com base nos princípios nela dispostos, o papel político mais importante do STF é assegurar a manutenção do entendimento desse documento de acordo com os desígnios da classe dominante. E o STF, principalmente com o advento das transmissões televisivas de suas sessões, tem dado exemplos primorosos e inúmeros acerca disso. O julgamento da manutenção da prisão de Lula a partir da sentença em segunda instância no caso do Triplex rendeu uma variada coleção de posições aparentemente contraditórias. Mas de fundo nada mais foram que a obediência aos amos capitalistas. Um exemplo escancarado foi oferecido por Rosa Weber que interpretava os princípios constitucionais dentro do entendimento que um acusado só começaria a cumprir sua pena esgotadas todas as possibilidades de recurso. No julgamento, no entanto, Rosa confirmou a legalidade da prisão de Lula determinada pelo então juiz Sérgio Moro após o julgamento dos desembargadores do Tribunal Regional Federal (TRF) em Porto Alegre.
Um xadrez jogado com ministros, não com soldado e cabo
Algo de mais profundo que o marxismo pode ensinar é que a experiência vivida vale mais que anos de leitura de teoria pura e abstrata. Nesse sentido, a classe dominante emergente da Revolução Francesa, a burguesia, aprendendo com sua própria experiência revolucionária, observou que a manutenção de todas as instâncias do poder político e econômico nas mãos de uma pessoa foi algo que contribuiu para precipitar a queda do domínio da nobreza. Nesse caso foi necessário somente decapitar Luís XVI para estabelecer um ponto sem volta nos processos que estavam à frente. Daí a aventada separação dos poderes estatais “independentes e harmônicos entre si”, aparentemente diluindo o poder político entre várias pessoas e, principalmente, colocando o poder econômico na obscura e segura garantia da indiscutível manutenção da propriedade privada dos meios de produção.
Contudo, essa “diluição” do poder político do Estado eventualmente causa disputas entre as frações da classe dominante sobre como atingir seus interesses sociais. No caso brasileiro, o desmoronamento da Nova República é tão grande que as disputas se dão com falas como a do deputado federal Eduardo Bolsonaro supracitada – uma vez que nem o golpe de 1964 e a ditadura por ele implantada foram tão claras em relação ao papel do Judiciário. Há também ações mais concretas, tal como a realizada por Bia Kicis, deputada federal pelo PSL – que, diga-se de passagem, tem se tornado um extraordinário e infeliz exemplo de como a pauta de participação das mulheres na política dissociada da perspectiva da luta de classes só serve para reforçar o status quo. Além de retomar de maneira mais impiedosa o projeto de lei da “Escola Sem Partido” para a aprovação da Lei da Mordaça[1], a deputada tem recolhido assinaturas de parlamentares para revogar a Emenda Constitucional nº 88, de 7 de maio de 2015. Conhecida como a PEC da Bengala, a medida alterou de 70 para 75 anos a idade para aposentadoria compulsória de ministros do STF. Na eventual revogação da PEC da Bengala, Kicis conseguiria para Bolsonaro a indicação imediata de nada menos que quatro das onze cadeiras da Corte.
Considerando que o STF já possui ministros perfeitamente alinhados ao atual governo, patentemente Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes – para ficar só em dois – o governo teria maioria absoluta. Isso seria útil não apenas para garantir que suas medidas seriam legitimadas na eventualidade de serem contestadas no STF, mas também para defender-se de qualquer investida jurídica contra sua legitimidade. Além disso, a pretendida revogação da PEC da Bengala tiraria ministros que, longe de serem revolucionários, ou se quer contrários aos objetivos mais essenciais do atual governo, possuem posicionamentos que, declaradamente, apresentariam virtuais dificuldades na confirmação das ações pretendidas por Bolsonaro. São os casos de Celso de Mello, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Assim a instituição se alinharia politicamente ao status quo sem a necessidade de revelar sua fragilidade, tal como salientada por Eduardo Bolsonaro.
Não só tirar a caneta de ministros, mas acabar com o capitalismo!
A cada dia fica mais clara a insatisfação popular com respeito a tudo que se liga à democracia burguesa. Os setores da esquerda tradicional ainda não conseguiram entender isso. Porém, figuras abjetas e oportunistas do lado da burguesia, como as do clã Bolsonaro e Bia Kicis, expressam uma visão muito mais clara do que essas chamadas lideranças dos trabalhadores. A sinceridade de Eduardo Bolsonaro escancara o caráter podre e fantasioso das ditas instituições democráticas do Estado burguês. Trata-se de uma versão atualizada e brasileira do que Marx e Engels definiram como “O governo do Estado moderno não é mais que um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”. Vale também destacar Engels quando diz:
“O segundo traço característico do Estado é a instituição de um poder público que já não corresponde diretamente à população e se organiza também como força armada. Esse poder público separado é indispensável, porque a organização espontânea da população em armas se tornou impossível desde que a sociedade se dividiu em classes … Esse poder público existe em todos os Estados. Compreende não só homens armados, como também elementos materiais, prisões e instituições coercivas de toda espécie, que a sociedade patriarcal (clã) não conheceu.” (A Origem da Família, da Propriedade Privada, e do Estado)
Essas instituições do Estado brasileiro, nosso caso em questão, são parte dessa máquina repressiva de que falavam esses clássicos. Impõem ataques aos direitos e às condições de vida da classe trabalhadora e da juventude em prol da manutenção dos lucros e privilégios dos capitalistas e demais setores parasitários da classe dominante.
Devemos desvendar o caráter reacionário de manobras como a revogação da PEC da Bengala. Mas isso não significa que devamos legitimar ou defender este estado de coisas. Nossa tarefa é explicar o caráter político e de classe do STF como parte do Estado burguês, responsável por dar aparência legal às ações necessárias para reprimir a insatisfação crescente e para ampliar a exploração já impetrada e as ações da classe dominante em curso. Independente de quem segura a caneta, o caráter social de classe do STF fica evidente, e o próprio filho do presidente vai a público escancará-lo. Conseguir canalizar a insatisfação social para a organização da classe trabalhadora e da juventude é a tarefa que possibilitará suplantar o Estado burguês e o capitalismo, junto com toda a tralha ideológica e jurídica de instituições como o STF.
[1] Acerca desse tema, leia o artigo Escola Sem Partido quer atacar grêmios estudantis.