Foto: Divulgação/Ozana da Cruz

Chuvas em São Paulo: Tragédia capitalista no Litoral Norte

Artigo originalmente publicado como suplemento regional de São Paulo ao Tempo de Revolução 26. Faça sua assinatura aqui e apoie a imprensa operária.

Neste verão já ocorreram dois deslizamentos de terras com vítimas fatais no Brasil. Em todos os casos, o que observamos é um histórico de descaso do Estado, exemplificado na destinação do orçamento público para fins que não atendem os interesses da classe trabalhadora. O mais recente ocorreu em Manaus, na Comunidade Pingo D’água. Na localidade moravam cem famílias, atualmente desalojadas, em condições precárias. Com as chuvas do dia 12 de março, nove casas foram diretamente atingidas e oito pessoas morreram. Tratava-se de uma ocupação recente, e que a prefeitura sequer considerava como área de risco que necessitasse de monitoramento. A população, contudo, já ocupava a região desde 2018. O episódio com maior número de vítimas, no entanto, aconteceu durante o carnaval, em São Paulo.

No dia 19 de fevereiro uma chuva atípica devastou o litoral norte de São Paulo. Uma semana depois já somavam mais de 60 mortos, e mais de 4 mil pessoas desalojadas ou desabrigadas. Porém, a região mais afetada foi a Vila Sahy, bairro operário da cidade de São Sebastião, às margens da rodovia Rio-Santos, ao lado do bairro de luxo chamado Barra do Sahy.

A Defesa Civil Nacional reconheceu estado de calamidade pública nos seis municípios paulistas mais atingidos pelas chuvas em fevereiro – Foto: Rovena Rosa, Agência Brasil

O litoral norte ganhou um primeiro impulso entre os anos 1950 e 1970 com a construção da rodovia Rio-Santos. Foi a estreita faixa de areia entre a serra e o mar, o local escolhido para a implantação de casas de veraneio dos ricos como as mansões e hotéis de luxo da Barra do Sahy. São, portanto, casas que passam a maior parte do tempo fechadas, enquanto a população trabalhadora, que vai servir de mão de obra na região, se aglomera nos morros, como a Vila Sahy, em casas improvisadas. Esta lógica de ocupação do território é bastante comum no Brasil. Os bairros proletários da zona sul carioca reproduzem este mesmo modelo. A Vila Sahy, propriamente, surgiu nos anos 1990, ocupada por imigrantes em maioria vindos da Bahia, e outros estados do Nordeste, em busca de oportunidades de trabalho. Os dados do IBGE para a região mostram que a população do litoral norte duplicou nos últimos anos; a ocupação, contudo, quadruplicou.

Toda a região foi atingida por uma chuva sem precedentes. Em São Sebastião, entre os dias 18 e 19 de fevereiro choveu 683mm, mais do que toda a chuva do verão do ano passado. Ou seja, em apenas 15 horas o equivalente a 90 dias em 2022. A razão disso foi o encontro de uma frente fria com temperatura do mar elevada e alta concentração de umidade. Um pesquisador da agência do governo federal de monitoramento de desastres naturais admitiu, contudo, que estas altas temperatura e umidade certamente são motivadas pelas mudanças climáticas recentes provocadas pelo capitalismo: “Em outras palavras, a mesma frente fria, se tivesse ocorrido 100, 200 anos atrás, ela teria menos umidade no ar disponível para provocar precipitação. A precipitação seria menor”, afirmou.

Mas, se os desastres naturais, ocasionados pelas mudanças climáticas provocadas pelo capitalismo, atingem igualmente a todos, o seu impacto, entretanto, reflete a desigualdade de classes deste sistema. As moradias da Vila Sahy estão na encosta do morro, em área desmatada para construção e, por isso mesmo, com alto risco de desmoronamento. Enquanto isso, na Barra do Sahy, região mais plana, os moradores dispunham de helicópteros para deixar o local e contornar os bloqueios na estrada. Ambas localidades possuem dificuldades de infraestrutura, mas os moradores da Barra do Sahy contam com sistema de escoamento e prevenção de enchentes em dias de chuva.

Uma tragédia anunciada

A condição suscetível da Vila Sahy já era conhecida pelo poder público há muito tempo. Em 2009, a prefeitura assinou um Termo de Ajuste de Conduta, pelo qual se compromete com o Ministério Público Estadual a “congelar” a ocupação na região e regularizar as moradias, que já avançavam em direção à Mata Atlântica, no prazo de dois anos. Nada foi feito. Naquele momento a prefeitura reconhecia que havia no município 52 núcleos de ocupação irregular. Em 2014 a prefeitura elabora um Projeto de Regularização Fundiária Sustentável, onde a prefeitura admitiu que, de acordo com estudos realizados ainda em 1996, a Vila Sahy era uma região com risco alto de deslizamentos e inundações e, portanto, seria necessária avaliação da Defesa Civil sobre a necessidade de remoção das moradias em área de risco na região. Não há notícias de que tenham sido feitas inspeções relativas a este projeto. Sabemos, isso sim, que não houve nenhuma oferta de moradia alternativa para a população.

Foto: Prefeitura de São Sebastião/Twitter

Entre 2018 e 2019 há uma intensa troca de ofícios entre o atual prefeito, eleito em 2016, e a Defesa Civil, reconhecendo que havia na Vila Sahy 448 casas que estavam avançando no território do Parque Estadual da Serra do Mar. Ao longo de seis anos, os governos, estadual e municipal, reconheciam que não apenas a Vila Sahy, mas outras localidades como Tropicanga e Sertão de Maresias, estavam sob risco de deslizamentos e precisavam ser reassentadas. Mais uma vez, nada foi feito. Em novembro de 2020 o Ministério Público realizou inspeção na região constatando o avanço das moradias irregulares e o risco de deslizamento. As fotos do laudo mostram a extração de mata nativa e de rochas do solo que serviam de contenção natural, enquanto a ocupação subia ainda mais o morro. Diante disso, o Ministério Público impetrou ação civil pública para garantir recursos básicos e a remoção da área de risco. A resposta da prefeitura foi o reconhecimento de que o número de ocupações irregulares em 2017 já contavam 102, o dobro em relação a 2009. Os argumentos do prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto (PSDB), é de que tem trabalhado para reverter as áreas irregulares, que crescem no município há 15 anos, mas que a prefeitura não recebe recursos de prevenção de desastres naturais desde 2013. Fato é que dois dias antes das chuvas desta tragédia, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) avisou tanto ao Governo do Estado de São Paulo quanto à prefeitura de São Sebastião sobre o risco de desastres em razão dos fortes temporais. Nenhuma medida foi tomada.

Escoamento de recursos

Uma das maneiras de os governos resolverem a questão das ocupações impróprias para moradia pela classe trabalhadora passa pela construção de casas em localidades e condições apropriadas. Porém, isto implica num remanejamento da população que, na maioria das vezes, é proposto em condições desvantajosas para os trabalhadores. Seja porque as casas construídas pelos governos são aquém daquelas que os trabalhadores construíram para si, com seu próprio esforço, seja porque a localização das novas moradias propostas pelos governos afasta estes trabalhadores dos seus locais de trabalho, dos amigos e familiares. Uma outra medida necessária é a realização de obras destinadas à prevenção de desastres naturais.

O orçamento do governo federal para prevenção de desastres em 2023 é um dos menores em 14 anos, de apenas R$1,7 bilhão. Só não é o menor, porque o governo de transição de Lula-Alckmin aumentou o orçamento anteriormente previsto por Bolsonaro de apenas R$671 milhões. Estes recursos são destinados a obras de contenção de encostas, drenagem, estudos de áreas de risco e outras medidas. É oportuno sinalizar, contudo, que a previsão orçamentária também não significa que as medidas serão tomadas. Historicamente, apenas 60% das verbas destinadas para prevenção de desastres são executadas em obras e medidas efetivas.

Apesar de recursos na casa dos bilhões parecerem vultuosos, é preciso colocar as coisas em perspectiva. Em declaração recente, o governo federal reconheceu que existem hoje no Brasil 14 mil pontos de alto risco de desastre natural mapeados pela Defesa Civil. Apenas nestes pontos, fora tantos outros que não aparecem nas estatísticas, como o caso da Comunidade Pingo D’Água em Manaus, o governo estima que vivam 4 milhões de brasileiros. Ou seja, uma média de 1 milhão a 1,2 milhão de famílias em situação de alto risco. Por outro lado, apenas em 2022, o governo federal destinou R$1,8 trilhão para o pagamento de juros e amortização de dívidas, representando 48% de todo o orçamento do governo federal, e o equivalente a mil vezes o orçamento para a prevenção de desastres naturais. Apesar disso, a Dívida Pública no ano passado aumentou em R$464 bilhões, subindo de R$7.643 trilhões para R$8.107 trilhões.

Conforme explicamos, a construção de casas não é a única saída possível para a garantia de moradia digna, especialmente para os trabalhadores que hoje moram em condições precárias. A reivindicação de obras e medidas de prevenção de desastres é uma alternativa e, vimos, os orçamentos atuais estão muito aquém do que é necessário e possível para atender as necessidades da classe trabalhadora. Porém, os governos também atuam com os orçamentos de construção de moradia. A mesma PEC do governo de transição de Lula-Alckmin aumentou os recursos do programa Minha Casa Minha Vida de R$34,2 milhões para R$9,5 bilhões. As razões deste programa, porém, não são a garantia de moradia digna.

A questão da moradia

Os capitalistas não estão preocupados em resolver a questão da moradia, que tem sido tratada pela burguesia, desde sempre, como uma forma de auferir mais lucros para si. O principal programa, o Minha Casa, Minha Vida (MCMV), foi lançado em 2009 apenas sob o pretexto de acabar com o déficit habitacional do país. O objetivo era injetar recursos na indústria da construção civil, reconhecida pela baixa remuneração e mobilização de muita mão de obra, e, assim, conter os efeitos da crise do capitalismo mundial de 2008. O modelo de negócio do programa consistia, basicamente, em as empreiteiras receberem recursos e subsídios para construir casas, enquanto o governo organizava a distribuição das casas. As moradias são sempre insuficientes para o número de famílias que precisam de casas, e aqueles trabalhadores que forem sorteados, não receberão a moradia de graça. Ao contrário, estão endividados com um financiamento de longos anos. As prefeituras, por sua vez, contribuíam com a cessão dos terrenos. Obviamente, nos lugares mais afastados e sem serviços, onde a burguesia não tinha o interesse em especular.  Em termos arquitetônicos, a implantação das casas tampouco tinha preocupação com as condições climáticas do lugar em que eram implantadas. Um mesmo projeto era replicado nas diferentes regiões do país.

Foto: Rovena Rosa/ Agência Brasil

Durante o governo Bolsonaro o programa foi reformulado e ainda piorado. O programa rebatizado de Casa Verde e Amarela apenas extinguiu a faixa 1, que era destinada às famílias de mais baixa renda, de até 2 salário mínimos, que atualmente concentra 90% do déficit habitacional do país. No início do novo governo Lula o programa MCMV foi retomado, agora com esta nova faixa reabilitada. Em linhas gerais segue a mesma lógica da primeira versão. O objetivo mais uma vez é impulsionar a indústria da construção civil que tem sido prejudicada com a alta da inflação e da taxa de juros. Esta indústria, além da mão de obra barata, mobiliza toda a indústria do cimento, vidro e materiais de construção. Além disso, o déficit habitacional não significa que não existam casas disponíveis, inclusive porque mais da metade dos trabalhadores nesta condição vivem em casas alugadas.

É preciso dizer que estes programas habitacionais se revelam um negócio muito seguro para a burguesia. Um bom exemplo é o programa da prefeitura de São Paulo, intitulado Pode Entrar, lançado em julho de 2022. O edital atraiu mais de 50 construtoras. É um negócio com recursos já garantidos. A prefeitura repassa 15% do valor dos empreendimentos à vista e os demais 85% até a entrega das casas. Além disso, este programa prevê a correção dos valores repassados de acordo com a inflação, protegendo os capitalistas de qualquer aumento dos custos de materiais ou mão de obra. As construtoras contam também com a garantia de que todos os imóveis serão pagos, e não correm o risco de não conseguir vendê-los ou enfrentar inadimplência.

Ou seja, os programas habitacionais são, em primeiro lugar, uma maneira de transferência indireta de recursos dos trabalhadores para os bolsos da burguesia. Diante disso, a classe trabalhadora não tem outra alternativa a não ser acabar com este sistema que é o causador da crise climática e habitacional, que por sua vez submetem a classe trabalhadora a esses desastres cada vez mais frequentes. Os trabalhadores devem exigir do governo Lula-Alckmin, que elegeram para derrotar Bolsonaro, todas as medidas necessárias para a garantia de moradias dignas para a classe trabalhadora.

  • Todo investimento necessário para prevenção de desastres naturais!
  • Não pagamento da dívida pública!
  • Pelo congelamento dos aluguéis!
  • Nenhum despejo!
  • Moradia digna e segura para todos!
  • Abaixo o capitalismo!