Este ano, vimos elevar-se uma tensão excepcional entre os EUA e a Coreia do Norte. Uma recente prova de mísseis norte-coreanos (em 29 de agosto) lançou, pela primeira vez, um foguete através do espaço aéreo japonês, antes de explodir em local desconhecido. Isto na sequência de meses de hostilidades, enquanto a administração estadunidense repetidamente fazia ameaças contra o país.
Durante décadas, as forças armadas dos EUA e da Coreia do Sul realizaram, duas vezes ao ano, exercícios militares claramente destinados a ameaçar a Coreia do Norte e a assegurar o poderio militar dos EUA nos Mares Amarelo e Oriental. Durante décadas, a resposta da Coreia do Norte foi a de fazer provas e exibir suas próprias capacidades nucleares, ou fazer comentários agressivos quanto às consequências de um potencial ataque estadunidense. Este ano, no entanto, este delicado equilíbrio foi perturbado por Donald Trump, que prometeu “fogo e fúria como o mundo nunca viu” se o regime de Pyongyang fizer novas ameaças contra os EUA. Até hoje, o secretário de estado dos EUA, Rex Tillerson, vem repetindo reiteradamente que “todas as opções” ainda estão na mesa quando se trata dos coreanos.
Para esta administração estadunidense, e para todas que a antecederam, o direito de lançar ameaças sempre foi considerado um privilégio exclusivo dos EUA. A Coreia do Norte nunca invadiu ou lançou bombas nucleares em qualquer outro país. O imperialismo estadunidense, no entanto, tem um recorde sombrio de invadir países e derrubar regimes que não seguem os seus ditados.
Os EUA têm cerca de 25 mil tropas estacionadas na Coreia do Sul, a quem também doam toneladas de equipamento militar todos os anos. Duas vezes ao ano, realiza jogos de guerra que simulam uma ofensiva contra a Coreia do Norte. Se não for para manter a política agressiva do imperialismo dos EUA, que outra justificativa pode haver para isto? Há pouco anos atrás, George W. Bush organizou invasões do Afeganistão e do Iraque, e a Coreia do Norte se encontrava na mesma lista do “Eixo do Mal” junto com outros países como a Síria e a Líbia. A única razão por que a Coreia do Norte não foi atacada pelos EUA foi por sua aquisição de capacidades nucleares, demonstradas pela primeira vez em 2006.
A atual guerra de palavras irrompeu depois de meses de crescentes tensões em que os meios de comunicação internacionais não viram faltar “preocupações” sobre um suposto “risco de uma III Guerra Mundial”. Depois de uma prova norte-coreana de mísseis em 4 de abril, Mr. Trump ordenou a utilização, pela primeira vez, da maior arma não-nuclear dos EUA, conhecida como a “Mãe de Todas as Bombas”, contra uma filial do Estado Islâmico no Afeganistão.
Foi esta uma clara ameaça dirigida à Coreia do Norte e a outros estados que desafiam o imperialismo dos EUA, especialmente porque uma bomba dessas é muito ineficiente contra as forças guerrilheiras islâmicas. Daí, não foi nenhuma surpresa que o regime estalinista tenha respondido a esta provocação com mais um teste de mísseis, em 15 de abril, dois dias mais tarde. A isto se seguiu uma avalanche de ameaças cada vez mais severas e mais “sérias” de ambos os lados, em que garantiam basicamente a completa aniquilação do outro lado, embora o equilíbrio de forças seja totalmente diferente. Não é a mesma coisa quando a Coreia do Norte, uma nação pobre e pequena, faz ameaças contra as agressões dos EUA. Quando os EUA fazem a mesma ameaça, trata-se da maior potência militar do planeta, com uma marinha poderosa e bases militares cercando a Coreia do Norte, e com uma história prévia de invasões e bombardeio (nuclear) de outros países.
No período seguinte, a Coreia do Norte conduziu pelo menos nove testes de mísseis, com o teste do primeiro míssil balístico intercontinental (ICBM), realizado em 4 de julho. Teoricamente, este míssil poderia alcançar os EUA, embora o regime norte-coreano tenha tido muito cuidado na condução dos testes de forma que não pudessem ser interpretados como ameaça direta; ou diretamente aos EUA ou aos seus aliados regionais, a Coreia do Sul e o Japão. Em vez disso, escolheram lançá-lo no mar, em locais distantes de quaisquer vítimas potenciais.
O regime norte-coreano tentou conter a escalada e, em 14 de agosto, Kim Jong Un anunciou a decisão de se adiar indefinidamente um plano em que o regime afirmava que “engoliria” o território estadunidense de Guam sob fogo de mísseis. Por enquanto, ele afirmou que vai “assistir as tolices e a conduta estúpida dos Ianques”, referindo-se à simulação militar do jogo de guerra Ulchi-Freedom Guardian, que começou em 21 de agosto. Isto foi essencialmente um convite a negociações com os EUA. Obviamente aliviado, Trump imediatamente aplaudiu a “sábia decisão” em Twitter, mas sua administração não fez nada para aliviar a situação e reiterou que “todas as opções estão sobre a mesa”. Esta foi a razão para o recente teste de mísseis coreanos sobre o espaço aéreo japonês, que, de seu ponto de vista, não somente sublinha sua capacidade, como também continua a abalar a confiança das classes dominantes japonesa e sul-coreana na capacidade dos EUA para suprimi-los.
Então, o mundo realmente foi empurrado à beira de uma guerra mundial ou nuclear, como se reivindica por todos os lados? Não há nenhuma razão para acreditar nisso. Apesar de todas as bravatas de Donald Trump, os EUA têm muito poucas opções militares, se é que existem, para lidar com a Coreia do Norte. De fato, além de tuitar e fazer postagens em conferências de imprensa, Donald Trump não fez nada que implique em que ele está disposto a atacar a Coreia do Norte. Nenhum desdobramento de tropas ou qualquer outro tipo de passos práticos, que seriam necessários em tal situação, foram realizados. Em última análise, os EUA têm poucas opções além de chegar a algum tipo de acordo com a Coreia do Norte.
O declínio do imperialismo estadunidense
Isso revela a situação real do imperialismo estadunidense, que está em crise e em situação de declínio relativo. Este é um dos fatores mais cruciais da situação global. Por declínio, referimo-nos às crescentes dificuldades dos EUA em afirmarem-se no cenário global. Os casos da Síria, Iraque e Afeganistão demonstram a incapacidade dos imperialistas estadunidenses de realizarem seus objetivos declarados ou de, pelo menos, influenciarem decisivamente os eventos em seu favor. Isso resulta, por um lado, do cansaço das guerras da população estadunidense e, por outro, da profunda crise que ainda paira sobre a economia dos EUA. Qualquer nova guerra importante levaria imediatamente a uma profunda crise econômica e social.
Um ataque à Coreia do Norte, mesmo um ataque não-nuclear, significaria imediatamente um devastador ataque de retaliação sobre Seul, onde os especialistas militares estadunidenses acreditam que pelo menos 100.000 pessoas, muitas delas estadunidenses, seriam mortas nos primeiros dias. Além do mais, para desarmar ou derrubar o regime norte-coreano totalmente, somente uma invasão total seria suficiente. Mas, se o imperialismo estadunidense foi completamente derrotado no Iraque e no Afeganistão, dois estados em crise com um velho arsenal de armas, um ataque a uma Coreia do Norte bem organizada militarmente e armada com armas nucleares seria muito pior. Isso sem levar em conta os ataques devastadores quase certos, sobre solo estadunidense e japonês, como resposta da Coreia do Norte, e que ela é bem capaz de infligir.
Sob as atuais condições de volatilidade econômica e crise global, qualquer nova guerra dos EUA levaria a graves convulsões econômicas por todo o mundo. A burguesia de todos os países não quer isto, e torna-se duplamente perigoso se a Coreia do Sul for envolvida, na medida em que é uma das economias exportadoras mais importantes do mundo. Qualquer guerra sobre a península coreana teria imediatas e duras consequências globais. Basta pensar em empresas como Samsung, Huawei e Mitsubitchi, três das mais importantes empresas industriais do mundo, e isso se torna evidente.
Além disso, um ataque direto sobre a Coreia do Norte arrastaria imediatamente a China e a Rússia, que veem corretamente o impasse com Pyongyang como uma demonstração de força dos EUA dirigida contra eles igualmente. Uma hipotética derrota da Coreia do Norte aumentaria drasticamente a presença dos EUA na fronteira terrestre da China e eliminaria a Coreia do Norte como um meio de troca militar e político entre os EUA e a China.
O declínio do imperialismo estadunidense não é um processo unilateral. Como a natureza, a política abomina o vazio, e, assim, o declínio deste grande poder viu o fortalecimento relativo da Rússia e da China. Isto se observa em escala mundial, mais especificamente em suas áreas vizinhas, como a Europa Oriental e a Ásia Oriental. O mesmo se aplica a toda uma série de potências ascendentes em nível mais regional como o Irã e a Índia. Até mesmo a União Europeia agora parece avançar para uma posição mais independente, mais “responsável”, que não está sempre alinhada com a dos EUA.
Um dos principais objetivos do imperialismo estadunidense sob estas condições é manter a Rússia e a China sob controle. Para este fim, estão atualmente instalando um sistema Terminal de Defesa de Área de Alta Altitude (THAAD, em sua sigla em inglês) na Coreia do Sul. Isso foi justificado com a “ameaça” da Coreia do Norte, mas é óbvio que o propósito do sistema é rastrear mísseis lançados da China e da Rússia. A instalação desse sistema foi anunciada pelo Pentágono pela primeira vez em maio de 2014 e começou a sério em março e abril de 2017.
Donald Trump chegou ao poder culpando Barack Obama por ser fraco, particularmente na política externa. Prometeu “fazer a América grande novamente”. Por isso andou “levantando a voz” e fazendo ameaças. O conflito com a Coreia do Norte é uma forma de abordar o que ele acreditava que Obama era incapaz de fazer, ou seja, reafirmar o domínio dos EUA no Leste e Sudeste da Ásia. Pretendia-se que devia demonstrar aos aliados dos EUA – Japão e Coreia do Sul – que os EUA ainda são um poder em que se pode confiar, particularmente contra a crescente influência chinesa. Mas, longe de reafirmar a supremacia dos EUA na Ásia Oriental, as ameaças vazias de Trump somente serviram para expor a impotência dos EUA e o declínio relativo do imperialismo estadunidense.
Os EUA não têm opções militares a seguir em relação à Coreia do Norte. Em vez disso, estão tentando derrubar o regime por meio de pressão econômica, ao impor sanções. No caso de um colapso econômico do regime, eles esperam ser capazes de mover suas tropas direto à fronteira chinesa. Simultaneamente, outros “estados velhacos”, como o Irã, ficariam advertidos de que nenhuma arma nuclear pode protegê-los da ira dos EUA.
Na realidade, o regime estalinista norte-coreano tem suas próprias razões para ser avesso a qualquer perspectiva de guerra. Foi criado depois da II Guerra Mundial, após a libertação da Coreia da ocupação imperialista japonesa; sob a liderança de Kim Il Sung, um combatente da guerrilha anti-japonesa e avô de Kim Jong Un, a “República Democrática Popular da Coreia” (RDPC) foi proclamada em 1948. Como a China ou os estados deformados dos trabalhadores da Europa Oriental, ela começou onde a União Soviética terminou: como uma ditadura policial-militar cuja única característica revolucionária foi a introdução de uma economia nacionalizada planificada.
Depois que a RDPC foi estabelecida, uma guerra por procuração, extremamente sangrenta, logo se produziu na península na qual os EUA combateram essencialmente contra a URSS e a China pelo controle da Coreia. O imperialismo estadunidense instalou sua própria ditadura militar na metade Sul, liderada pelo anticomunista fanático Syngman Rhee, que massacrou dezenas de milhares de ativistas de esquerda e mergulhou em sangue um levantamento de massas contra seu regime fantoche. Dessa forma, os EUA criaram um posto militar permanente próximo à China.
Durante a guerra coreana, os EUA lançaram mais bombas do que as que lançou durante toda a campanha do Pacífico da II Guerra Mundial. Quase todas as edificações construídas na Coreia do Norte foram destruídas e cerca de 20% de toda a população da Coreia caíram vítimas das campanhas de bombardeio e tiroteios indiscriminados em massa de civis até que uma trégua foi declarada em 1953. Os exercícios militares conjuntos começaram no mesmo ano. De fato, a guerra ainda está tecnicamente em curso. Esses exercícios militares são um legado direto dessa guerra excepcionalmente horrorosa e brutal de extermínio em massa. O regime norte-coreano faz de tudo para relembrar seus súditos disto, enquanto o regime estadunidense e a mídia fazem de tudo para ignorá-lo.
Hoje, o regime é um monumento do potencial ilimitado de barbárie do estalinismo. O culto à personalidade em torno da família de Kim é tão fanático quanto a mais zelosa das seitas religiosas. Não há sinais de qualquer tipo de oposição política no país, cujos cidadãos são submetidos a uma barragem constante da mais intensa propaganda ultranacionalista. Seus cidadãos são constantemente intimidados por execuções públicas, enormes campos de trabalho e a iminente retomada do conflito armado com os EUA.
Depois do colapso da URSS em 1991, o país – que tinha, até então, gozado de um padrão de vida mais alto do que a Coreia do Sul – foi lançado na pobreza abjeta. Em 1995, a fome entrou em cena, vitimando cerca de 1 milhão de pessoas. O regime estava enfrentando uma situação perigosa e reagiu intensificando sua propaganda totalitária, elevando Kim Jong Il e seu pai ao nível de deuses seculares e militarizando toda a sociedade. Sem qualquer conforto material para oferecer a sua população faminta, o regime baseou sua legitimidade exclusivamente em sua tradição e argumentos anti-imperialistas.
A fome na Coreia do Norte já passou há muito e o país experimentou, de fato, um crescimento econômico bastante decente durante a última década. Mas a casta burocrática estalinista na Coreia do Norte ainda é, quase que exclusivamente, motivada pela autopreservação. O desenvolvimento de suas capacidades de mísseis nucleares serve a este objetivo de duas formas: primeiro, não importa o quanto o imperialismo dos EUA demonstre sua fúria, esse desenvolvimento os dissuade objetivamente e também reduz a sua fúria. Menos guerra significa mais estabilidade e menores possibilidades para Kim terminar executado como Muammar Kaddafi ou Saddam Hussein. Em segundo lugar, as agressões dos EUA e suas manobras “defensivas”, como a construção do THAAD e a realização de exercícios militares, por sua vez, permitem a Kim Jong Un e ao seu séquito burocrático apresentarem-se internamente como a liderança estável e necessária de uma luta anti-imperialista justa, como a única força que protegerá a população coreana do ressurgimento da Guerra da Coreia.
Mãos fora da Coreia!
Nem o sustento nem a liberdade política da classe trabalhadora na Coreia do Norte – ou em qualquer outro lugar, ademais – serão melhorados pelas ações do imperialismo estadunidense. Não deve haver nenhuma ilusão sobre isto e é suficiente olhar para os resultados de todas as intervenções imperialistas dos EUA no Afeganistão, Iraque, Líbia, Iêmen e Síria para se entender isto. O único caminho a seguir para ambos os lados da península é o de uma revolução proletária combinada, na qual a classe trabalhadora coreana esmagará os regimes que a oprimem de ambos os lados da fronteira, derrubando ao mesmo tempo tanto a burguesia quanto a burocracia estalinista; expropriando os gigantescos monopólios no Sul e colocando-os sob o controle dos trabalhadores, bem como democratizando a economia planificada no Norte. A classe trabalhadora coreana só pode realizar a tarefa da reunificação nacional por meios revolucionários.
O grande líder socialista alemão, Karl Liebknecht, uma vez proclamou com relação à I Guerra Mundial: “O principal inimigo está em casa! ” Esta fórmula, que foi chamada por Lenine de “derrotismo revolucionário”, estabelece as tarefas para os socialistas nos países imperialistas como os EUA. Isso significa que a luta contra a guerra começa em casa, isto é, que a classe trabalhadora deve sempre priorizar a luta contra “seus próprios” imperialistas, e tentar frustrar seus planos expansionistas.
A luta contra o imperialismo estadunidense na Coreia e a luta contra o capitalismo e o estalinismo, por uma Coreia unificada e socialista, não podem ser vistas isoladamente uma da outra, devem ser entendidas como interdependentes. A classe trabalhadora e o movimento dos trabalhadores na Coreia e nos EUA devem lutar juntos pela retirada total do imperialismo estadunidense de toda a península coreana.
Artigo publicado em 1 de setembro de 2017, no site da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título “U.S – Korea: World War, or War of Words?“
Tradução Fabiano Leite.