Theresa May sobreviveu para viver mais um dia depois de passar por um voto de desconfiança entre os parlamentares de seu partido com uma maioria de 200 a 117 votos. Mas embora a líder do Tory possa ter ganhado essa batalha, certamente perdeu a guerra.
O enorme número de votos contra May é um golpe mortal em sua autoridade, assinalando que ela não pode lograr que seu acordo do Brexit seja aprovado por seu próprio partido e muito menos pela Casa dos Comuns.
“Se você é primeiro ministro e um terço de seus parlamentares votam contra você”, assinalou o parlamentar eurocético Frank François, “esta é uma notícia péssima”.
A senhora May espera agora estar em posição mais forte para obter garantias e concessões dos líderes da União Europeia enquanto retoma sua interrompida turnê europeia. Entretanto, devolvendo-lhe sua própria e gasta frase: nada mudou.
A primeira ministra está de volta à estaca zero. Todos os seus esforços foram em vão. Ela pode agora estar a salvo de desafios a sua liderança por outros 12 meses. Porém, isso significa muito pouco, uma vez que ela é impotente para aprovar sua obsessiva proposta do Brexit. Apesar do drama da semana passada, May ainda está enlameada tentando vender um acordo impossível a um parlamento resistente.
“E agora?”, pergunta Robert Shrimsley no Financial Times. “Não ficou claro o que se obteve com o esforço. May continua gravemente ferida, mas ainda no cargo. Seus rebeldes podem rejeitar seu acordo, mas não podem mais removê-la”.
Um governo britânico nunca foi tão fraco, com um primeiro ministro manco liderando uma coalizão informal instável e um partido totalmente dividido. Enquanto isso, o relógio do Brexit está andando.
Mendigando na Europa
Não há muito, a Grã-Bretanha era um dos países mais estáveis. Agora se transformou em um dos mais instáveis. O Brexit, que antes era apenas uma pequena nuvem no horizonte, foi empurrado para o centro do “choque e horror” da política britânica.
“Há realmente um governo em Londres?”, perguntou um diplomata depois de observar assombrado como se desenvolviam os acontecimentos.
O Reino Unido passou por uma montanha-russa de acontecimentos nos últimos dias. Mirando uma derrota humilhante para sua proposta de acordo do Brexit, May arrastou a votação na Casa dos Comuns. Em seguida, ela se lançou em uma desesperada visita às capitais europeias para implorar aos líderes do continente a lhe darem algumas migalhas para que ela pudesse vender aos parlamentares hostis.
Com oponentes em seu próprio partido ocupados, no momento, a primeira ministra do Reino Unido retornou à Europa para continuar mendigando concessões. Mas seus homólogos deixaram claro que têm muito pouco a oferecer – e, certamente, nada que aplaque os intratáveis Tory Brexiteers (apoiadores do Tory e do Brexit).
Simbolicamente, a primeira ministra esteve em campanha nesta semana para ver Angela Merkel em Berlim, onde foi educadamente rejeitada. O principal interesse de Merkel é defender os interesses da UE27, apesar da advertência de May de que um Brexit sem acordo poderia provocar uma crise bancária europeia.
Esses sinistros sentimentos chegaram a ser ecoados por figuras importantes dentro do próprio partido da chanceler alemã. “Há um risco real de que um Brexit duro possa levar a economia global a uma crise”, disse Armin Laschet, primeiro ministro da Renânia do Norte-Westphalia, o estado mais populoso e economicamente mais poderoso da Alemanha. “Pode ser ainda mais grave do que o colapso de Lehman Brothers – se olharmos para o impacto potencial sobre o comércio.”
Porém, essas preocupações não foram suficientes para influenciar a opinião em Berlim. “Sabemos como as coisas estão difíceis para May e certamente não queremos que sua vida se torne ainda mais difícil do que já está”, explicou Katja Leikert, uma parlamentar do partido da União Democrática Cristã de Merkel que cuida dos problemas do Brexit, “mas há muito em jogo para nós”.
Declarando que as conversações haviam chegado a um beco-sem-saída, Merkel advertiu que não haveria apoio algum se as negociações do Brexit terminassem sem acordo. Achim Post, vice-líder do grupo parlamentar de parceiros socialdemocratas da coalizão da senhora Merkel, colocou a coisa toda ainda mais claramente: “Não pode haver e não haverá quaisquer descontos políticos para o caos político”.
Claramente, os europeus têm seus próprios interesses a proteger. Salvar May não é um deles.
Imprudente e descerebrado
Esse arrastar-se foi considerado por muitos Brexiters como uma humilhação nacional. É visto como a gota final, provocando acusações de traição.
O apoio já estava se afastando de Theresa May há algum tempo, – mas o processo se acelerou depois do fracasso da retirada da votação da segunda-feira (10/11). Depois disso, os Tory sem carteira ministerial decidiram que era o momento adequado de agir e enfiar a faca.
No final da noite de terça-feira, May foi informada de que o presidente do Comitê 1922, Graham Brady, receberá as 48 cartas requeridas, detonando um voto de desconfiança na líder do partido entre os parlamentares do Tory.
May implorou por sua vida política, dizendo que qualquer novo líder levaria a uma maior instabilidade. O que é mais importante, ela enfatizou que seus oponentes irresponsáveis poderiam abrir a porta para uma eleição geral e permitir a chegada ao poder de um governo trabalhista sob Corbyn.
“Vou contestar esse voto com todas as armas a minha disposição”, disse a líder do Tory. “Uma mudança de liderança no Partido Conservador agora colocará o futuro de nosso país em risco e criará incertezas quando menos podemos custeá-las.”
“Qualquer tentativa de substituir o primeiro ministro em meio a tudo isto é totalmente imprudente e descerebrado”, declarou Alan Duncan, um ministro de escalão inferior das Relações Exteriores.
Mas toda a aposta do Brexit, iniciada por David Cameron, foi “imprudente e descerebrada” desde o início, do ponto de vista do capitalismo britânico. A Europa é um mercado vital para a Grã-Bretanha. A ideia de que o Reino Unido possa navegar por mares abertos e garantir acordos comerciais por todo o mundo é uma loucura.
A questão da Europa, no entanto, já envenenou há muito o Partido Tory. Esses últimos e dramáticos acontecimentos são simplesmente a consequência dessa prolongada tensão.
Guerra civil
A votação ocorreu na noite de quarta-feira (12/11), com May, a primeira ministra sitiada, necessitando de 158 votos – uma maioria dos parlamentares do Tory – para permanecer como líder dos Conservadores e no cargo. No final, ela obteve 200 votos, com 117 votos de seu próprio partido pedindo que ela renunciasse.
Contudo, essa votação nada fez para acalmar a situação dentro do partido Conservador. De fato, somente intensificará a guerra civil que está ocorrendo há algum tempo.
“A guerra, e não a paz, explodiu”, anunciou Laura Kuenssberg da BBC. “Exatamente quando a primeira ministra necessita realmente reunir o seu partido, suas tribos rivais podem estar agora estabelecendo um curso para varrê-la – e a si mesmas – para o lado.”
O chanceler Philip Hammond, pró-permanência, já declarou que a vitória de sua líder ajudaria a “expulsar os extremistas”. Enquanto isso, esses Brexiters “extremistas” estão declarando sua própria vitória, sabendo confortavelmente que têm poder efetivo de veto sobre o acordo de May na Casa dos Comuns.
“Eles nunca se detêm”, exclamou o ministro do governo Alistair Burt referindo-se aos Brexiters. “Votos contra eles, cartas chegando atrasadas – nada preocupa ao ERG (Grupo de Pesquisa Europeia, em suas siglas em inglês). Depois do apocalipse, tudo o que restará serão as formigas e os parlamentares Conservadores queixando-se da Europa e de seu líder.”
“Além disso, mesmo essa vitória pouco convincente veio à custa de uma promessa bastante clara de que ela não competirá nas próximas eleições”, escreve Shrimsley no Financial Times. “Essa deve ser a primeira vez que um primeiro ministro ganhou um desafio à liderança transformando-se em um pato manco. Ela pagou um preço muito alto por uma péssima vitória.”
Agora existem preocupações de que os renegados kamikazes do partido Tory possam estar dispostos a explodir todo o governo a fim de destruir o acordo de May.
“No momento não há chance de que eles a apoiem”, continua Kuenssberg, discutindo o possível próximo passo dos Brexiters. “E alguns deles podem, talvez, estar dispostos a contemplar a mais drástica opção – unir-se aos parlamentares da oposição se estes pedirem um voto de desconfiança de toda a Casa dos Comuns.”
O circo Brexit
Toda a farsa é como assistir um descarrilamento de trem em câmara lenta. Ninguém parece estar no controle. O governo conservador está sendo esbofeteado pelos acontecimentos. As negociações do Brexit foram mal preparadas e mal pensadas, resultando em um remendo de acordo que não satisfaz ninguém e que está rapidamente se desfazendo.
O Partido Conservador enlouqueceu. No passado, cuidava dos interesses do capitalismo. Uma crise política como essa jamais teria sido permitida. Mas esses dias já se foram há muito. Os doidos estão agora no comando.
“[No passado] a Grã-Bretanha podia se permitir ser um adorável e singular recanto, com sua envaidecida família real e seus tabloides sensacionalistas, porque tinha o gênio de colocar pessoas sensatas no comando das coisas que importavam”, observa o colunista de Bagehot, em The Economist.
“Hoje, a visão geral no exterior é que essa fórmula está defeituosa. Os atos circenses e os charlatães tomaram o comando, na forma de Boris Johnson e Jacob Rees-Mogg, e as pessoas sensatas foram encerradas na Torre de Londres.”
Esses palhaços iludidos têm uma ideia romântica do Brexit, na qual a “soberania” é reconquistada, o Império regressa e Britannia governa mais uma vez sobre os mares.
Entretanto, uma Grã-Bretanha “independente” seria apenas um satélite do imperialismo estadunidense e nada mais. Um fracasso do acordo, aclamado pela maioria fanática dos Brexiters Conservadores, afundaria o capitalismo britânico no abismo. Mas eles não parecem se importar. O fim justifica os meios.
Isso não levará a Xangri-lá, mas, de fato, a um lugar muito desagradável. Não é de admirar que as grandes empresas estejam arrancando os cabelos diante da situação. Perderam o controle. Não controlam mais o Partido Conservador, o suposto partido dos patrões.
Governo nacional
Os Brexiters Conservadores queriam um novo primeiro ministro – um dos seus – para supervisionar a saída da Grã-Bretanha da União Europeia. Eles ainda estão dispostos a ver a Grã-Bretanha partir sem um acordo formal, se necessário.
A votação da noite da quarta-feira nada fez para resolver essas divisões dentro do Partido Conservador. O potencial para uma divisão ainda existe. A base reacionária dos conservadores se opõe firmemente a May e seus seguidores, com dois terços dos membros do partido querendo que a líder saia.
A ala “moderada” poderia acabar se separando, terminando em uma coalizão com a ala direita do Partido Trabalhista.
Isso levantou a ideia de um governo nacional em certos setores. A Grã-Bretanha está enfrentando uma emergência nacional. À medida que o prazo do Brexit se aproxima, as vozes que levantam esses apelos para que tal governo atue no “interesse nacional” só se tornarão mais barulhentas.
Nicky Morgan, um ex-ministro Conservador (e forte apoiador da Permanência) já sugeriu que “pode ser tempo para algum tipo de governo de unidade nacional” para romper o impasse do Brexit. Outro parlamentar Conservador, Nicholas Soames, também entrou na conversa: “Devo dizer que, se fosse do meu jeito, teríamos um governo nacional para lidar com isso. Esse é o problema mais sério que este país já enfrentou desde a guerra.”
Porém, isso significaria dividir também o Partido Trabalhista, com os Blairistas se alinhando com os “sensatos” Conservadores eurófilos e os liberais. Destacados Conservadores pró-Permanência já estão fazendo essas propostas a seus amigos do outro lado do corredor, com a Conservadora pró-Permanência e linha dura, Anna Soubry, declarando que:
“Pessoalmente, abandonaria a bancada do Trabalhismo e iria mais além dela e abrangeria Plaid Cymru [um partido do País de Gales, de centro-esquerda -NDT], o SNP e outras pessoas sensatas e pragmáticas que acreditam em colocar os interesses deste país em primeiro lugar.”
Segundo referendo
A possibilidade de formação de um governo nacional para resolver a paralisia parlamentar do Brexit não pode, portanto, ser descartada, mas não é o resultado mais provável.
Em vez disso, há uma pressão crescente para um “voto popular”. Isso está sendo defendido pelos Blairistas, por Lib Dems, SNP e Verdes, que querem derrubar o resultado do referendo de 2016 e permanecer na União Europeia.
O risco para o establishment é que um segundo referendo possa confirmar o Brexit, e que possa oferecer inclusive o resultado de um Brexit mais difícil e desastroso. Dada a volatilidade, o resultado estaria muito perto – perto demais para alguns aceitarem essa aposta.
No entanto, alguns dos Blairistas estão preparados para fazer uma aposta em um segundo referendo, tão cegamente estão eles comprometidos com os interesses das grandes empresas, seus reais amos.
Mesmo que a Permanência ganhe, isso polarizaria enormemente a situação. Tal polarização, no entanto, não seria entre esquerda e direita, mas entre duas alas da classe dominante. A instabilidade subjacente do capitalismo britânico não desapareceria.
Mirando o vazio
May permanece por enquanto. O mesmo acontece com a dor de cabeça do Brexit. Essa é a desordem em que se encontra o governo Conservador e qualquer coisa que ele faça dará errado. Os acontecimentos recentes estão preparando uma nova turbulência na sociedade britânica.
O que está claro é que o Brexit não pode ser simplesmente colocado de volta na caixa. Não haverá retorno ao passado. Crise política e instabilidade são a nova normalidade sob o capitalismo. O governo vai virar de um lado para outro numa tentativa desesperada de navegar na crise mais profunda da história britânica moderna.
Estão todos mirando o vazio. Um Brexit não negociável, embora seja o resultado menos provável, não pode ser descartado completamente, considerando todas as correntes cruzadas. Mais provavelmente, se o prazo de 29 de março de 2019 se aproximar sem qualquer acordo, o cabo de emergência será retirado e o Artigo 50 suspenso. Se não, todas as apostas serão apagadas.
As nuvens da tempestade estão se juntando. A Grã-Bretanha entrou em águas inexploradas. Os últimos dias e semanas foram convulsivos, mas não são nada comparados ao que estamos prestes a experimentar. Apertem seus cintos de segurança – espera-nos um passeio infernal.
Artigo publicado em 13 de dezembro de 2018, no site da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título “Britain: May’s Pyrrhic victory“.
Tradução de Fabiano Leite.