Foto: Domínio público

Índia: o receituário capitalista para um desastre pandêmico 

Na noite de terça-feira, dia 24 de março, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, um reacionário nacionalista hindu do Bharatiya Janata Party (BJP – Partido do Povo Indiano), anunciava uma quarentena nacional de três semanas a ser iniciada no dia seguinte, 25 de março. Foram medidas severas: todo o comércio fechado, com exceção aos considerados essenciais (como mercados e farmácias), a maior parte das fábricas e escritórios, todas as escolas, universidades e estabelecimentos de lazer e religiosos. Além disso, os transportes públicos pararam de funcionar e qualquer aglomeração pública, incluindo de cunho religioso, foi proibido. Quem fosse pego descumprindo a quarentena era passível de multa e prisão de até um ano. 

Literalmente da noite para o dia, milhões de trabalhadores se viram impedidos de circular nas ruas das grandes cidades, com fronteiras fechadas entre os Estados e Territórios que compõem a federação indiana, sem transporte público e, principalmente, sem emprego ou garantia de alguma renda sem trabalhar, uma vez que, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), quase 90% dos indianos atua na economia informal1, sem qualquer direito, em caso de demissão ou se impedidos de trabalhar. 

Uma onda de pânico tomou a Índia e, os que puderam, correram aos mercados para comprar e estocar alimentos antes do início da quarentena. Entre os mais pobres, na sua maioria absoluta, migrantes de regiões rurais do interior do país, iniciou-se uma trágica odisseia de regresso aos vilarejos de origem, já que sem poderem trabalhar não conseguiriam sequer pagar aluguel. Com a proibição do funcionamento dos trens, milhões se lançaram a pé pelas rodovias indianas, e casos de violência e mortes se tornaram corriqueiros durante a quarentena. 

De maneira semelhante ao Brasil, o governo indiano não perdeu tempo para salvar aquilo que lhe interessava. Assim que iniciou a quarentena, o Reserve Bank of India (RBI – Banco de Reserva da Índia, equivalente ao Banco Central do Brasil) reduziu os juros dos empréstimos feitos aos bancos, lançou uma moratória de três meses para esses pagamentos, bem como outras ações benevolentes2. Também o anúncio de previsão de isenções fiscais por 10 anos para empresas que realizassem investimentos acima de 500 milhões de dólares em áreas médicas, tecnológicas e de bens de capital na Índia3. 

Já o pacote de ajuda à classe trabalhadora só foi anunciado no dia 12 de maio, quase dois meses após o início da quarentena nacional. Vergonhosamente, a ajuda do governo indiano previa somente a distribuição de grãos e gás para os milhões de imigrantes4, oferta de crédito a pequenas e micro empresas e outras medidas pontuais equivalentes a 266 bilhões de dólares5. Enquanto isso, alguns Estados, como Uttar  Pradesh (o mais populoso da Índia) suspendiam direitos trabalhistas6 por três anos, com a finalidade de “ajudar” empregadores na situação de pandemia, e grandes empresas realizaram demissões em massa por WhastApp sem qualquer reação do governo indiano7. 

O resultado de tudo isso não poderia ser diferente: após o governo indiano ser forçado a flexibilizar a quarentena a partir de junho, em questão de semanas a Índia já era o terceiro país com o maior quantitativo de contaminação por coronavírus, ultrapassando o Brasil no início de setembro e se colocando em segundo, atrás somente dos Estados Unidos8, mas se aproximando de maneira rápida. Tanto as estimativas de contaminados como a própria contagem dos mortos são extremamente precárias e, pelas condições de vida do país, provavelmente muito maiores que as oficiais.  

As estimativas mais otimistas apontam que a economia do país encolherá 8,5% no próximo ano, enquanto o próprio RBI projeta 16,5% de retração9 

Politicamente, os efeitos do desastre pandêmico ainda não foram sentidos por Narendra Modi, que conta com a ajuda da mídia burguesa para desviar ao máximo a atenção para seus projetos de cunho nacionalista hindu, que têm promovido o crescimento vertiginoso de violência contra muçulmanos e outras minorias no país; rusgas beligerantes na fronteira com a China, principal parceira comercial do país; e insuflando as ações do governo. Contudo, a realidade da miséria e falta de perspectiva que assombra milhões de trabalhadores indianos logo baterá a porta do primeiro-ministro e cobrará cada vida perdida pela Covid-19 e pela barbárie do capitalismo. 

Referências:

1 NASCIMENTO, Bárbara. Coronavírus na Índia: com lockdown “insustentável”, Índia reabre em meio a disparada de casos e temores de “bomba-relógio”. BBC News Brasil, Cingapura, 12 jun. 2020.
2 THE TIMES OF INDIA. Rate cuts to moratorium: What RBI has done so far to deal with Covid-19 fallout. 22 maio 2020.
3 THE TIMES OF INDIA. India to plan tax holiday to win new investments. 12 maio 2020.
4 THE TIMES OF INDIA. Covid-19: Details of Rs 20 lakh crore relief package. 17 maio 2020.
5 NASCIMENTO, Bárbara. Coronavírus na Índia: com lockdown “insustentável”, Índia reabre em meio a disparada de casos e temores de “bomba-relógio”. BBC News Brasil, Cingapura, 12 jun. 2020.
6 THE TIMES OF INDIA. Central trade unions may approach ILO on labour laws suspension in some states. 11 maio 2020.
7 THE TIMES OF INDIA. Social media outrage as Indiabulls sacks 2k staff. 21 maio 2020.
8 G1. Índia ultrapassa o Brasil e se torna o segundo país com mais casos de coronavírus. 7 set. 2020.
9 PÉCHY, Amanda. Economia da Índia será uma das mais afetadas pela Covid-19 no mundo. Veja, 17 set. 2020.