Indústria 4.0: seu significado à luz do marxismo e seus impactos na luta de classes (parte 1)

O que é a Indústria 4.0 ou a assim chamada “Quarta Revolução Industrial”, seu significado teórico a partir da perspectiva marxista e seus impactos na luta de classes? A Industria 4.0 representa um desenvolvimento das forças produtivas? Ou ainda, pode uma tecnologia disruptiva significar avanço das forças produtivas? Esperamos que esse texto ajude a esclarecer a questão.

O que é Indústria 4.0?

Para nos ajudar a compreender como a Industria 4.0 ou Quarta Revolução Industrial é definida e projetada, utilizei dois autores e duas referências principais. A dissertação de doutorado em administração do professor Marcelo Gráglia, “As Novas Tecnologias e os Mecanismos de Impacto no Trabalho, de 2018, e o livro de Klaus Schwab, “The Fourth Revolution. World Economic Forum”, de 2016.

O termo Indústria 4.0 se origina na Alemanha em 2012. É uma composição, onde o termo “indústria” explica o foco neste setor, a parte “.0” é usada para associar com a tecnologia da internet, como Web 1.0, Web 2.0 e Web 3.0, e o “4” é a representação do que se chama de quarta revolução industrial, “que após o desenvolvimento do poder de vapor e água, eletricidade e tecnologia da informação para apoiar a força de trabalho humana, agora descreve o uso dos chamados sistemas ciberfísicos” (Marcelo Gráglia, 2018 p. 114). Terminologias como Internet Industrial, Smart Manufacturing e Advanced Manufacturing também são utilizadas.

Klaus Schwab, autor do livro “The Fourth Industrial Revolution” (2016) e presidente do Fórum Econômico Mundial, sustenta que o que vivemos hoje é uma nova revolução industrial, que implica nada menos que uma transformação da humanidade. Para sustentar a tese de um ponto de vista histórico, apresenta a chamada Quarta Revolução Industrial a partir das três revoluções industriais anteriores. Em sua análise, explica que a primeira revolução industrial, iniciada entre 1760 e 1840, foi desencadeada pela construção de ferrovias e pela invenção da máquina a vapor e deu início à produção mecanizada. Já a segunda revolução industrial, que começou no final do século 19 e início do século 20, originou a produção de massas pelo advento da eletricidade e da montagem. A terceira revolução industrial, com início na década de 1960, foi catalisada “pelo desenvolvimento de semicondutores, computação de mainframe (1960s), computação pessoal (1970s e 80s) e a internet (1990s)”. O período atual seria então o da Quarta Revolução Industrial, caracterizada “pela internet móvel muito mais onipresente e por sensores menores e mais poderosos, que têm se tornado mais baratos, e pela inteligência artificial e a aprendizagem da máquina”.

Essas definições ainda são debatidas entre aqueles que formulam teoricamente sobre a Indústria 4.0, sem chegarem a um consenso sobre como chamar esse fenômeno. Em termos de conteúdo, Marcelo Gráglia explica que:

A indústria 4.0 é uma nova configuração do sistema manufatureiro, fortemente baseada na tecnologia e na interligação entre as dimensões física e virtual, o chamado ciberespaço. Essa interligação, ou fusão, é tornada possível pelo uso de sistemas ciberfísicos. Sistemas ciberfísicos ou CPS (cyber-physical systems) são sistemas compostos por partes físicas e de engenharia e por elementos computacionais colaborativos que monitoram e controlam as partes físicas. Permitem que as capacidades de computação e comunicação sejam incorporadas em todos os tipos de objetivos e estruturas no ambiente físico. Esta funcionalidade foi viabilizada com o desenvolvimento e aplicação da versão 6 do IP (Internet Protocol) a partir de 2012. O Ipv6 permite a criação de uma quantidade excepcional de endereços eletrônicos. Assim, possibilita a identificação eletrônica em larga escala de produtos, equipamentos, máquinas, sensores, instrumentos etc. que se pretenda monitorar, rastrear e mesmo controlar e, ainda, a formação de uma rede de recursos, informações, objetivos e pessoas conectadas através da internet. Este avanço tecnológico, junto com a computação em nuvem, é a base sobre a qual se apoia a internet das coisas e serviços. (Marcelo Gráglia. 2018. p. 115)

Há ainda algumas definições dos princípios da Industria 4.0 utilizados por ele: interoperabilidade, virtualização, descentralização, capacidade em tempo real, orientação a serviços, modularidade.

A interoperabilidade é a conexão de sistemas ciberfísicos e humanos através da Internet das Coisas (IoT) e Internet dos Serviços (IoS) no ambiente empresarial, envolvendo fabricantes de máquinas, setores de engenharia e software. A virtualização é a capacidade de monitoramento dos sistemas ciberfísicos sobre os processos físicos, a partir dela, uma cópia do mundo físico é criada virtualmente, permitindo em caso de falha em algum processo que uma pessoa possa ser notificada, por exemplo. A descentralização é a tomada de decisão dos sistemas ciberfísicos por sua conta própria, levando o planejamento central e o controle a serem desnecessários. A capacidade em tempo real permite que o status da planta produtiva seja permanentemente rastreado e analisado, trazendo a possibilidade de reação em caso de falha e o redirecionamento da produção. A orientação a serviços processa informações especificas do cliente atendendo a demandas cada vez mais próximas das definições da demanda. E, por fim, a modularidade refere-se a sistemas com capacidade de adaptação à mudança de requisitos, podendo ser alterados para atender às mudanças sazonais ou alterações das características do produto (Marcelo Gráglia, 2018. p. 118-119).

Klaus Schwab aponta que a impulsão da “Indústria 4.0” está ligada ao desenvolvimento de algumas tecnologias nas dimensões física, virtual e biológica, através de megatendências, que representam o poder generalizado da digitalização e informação tecnológica. 

No campo físico, as principais tecnologias impulsionadoras da chamada quarta revolução industrial são os veículos autônomos (drones, caminhões, aviões e embarcações), impressora 3D, robótica avançada, novos materiais. A utilização de veículos autônomos está associada ao desenvolvimento de tecnologia de sensores e o progresso da inteligência artificial para aumentar as capacidades de máquinas autônomas que possam ser aplicadas em diferes ramos da produção. A impressora 3D, que também é chamada de manufatura aditiva, consiste em criar um objeto físico imprimindo camada sobre camada a partir de um desenho digital 3D, o que é substancialmente diferente de como as coisas têm sido feitas até agora, onde as camadas são retiradas até se chegar ao objetivo 3D desejado.

A robótica avançada tem progredido rapidamente e tem sido usada em uma ampla gama de setores, desde a agricultura de precisão até a enfermagem. Para ele, o rápido progresso da robótica avançada vai, em breve, fazer a colaboração entre humanos e máquinas uma realidade cotidiana. Um aspecto completamente revolucionário da robótica avançada é a capacidade de adaptação e flexibilidade.

Imagem: Gerd Altmann
A colaboração entre humanos e robôs já é uma realidade para algumas empresas, onde se combina a precisão dos robôs com a criatividade dos seres humanos para corrigir os erros que as máquinas não podem perceber. É possível notar esses avanços na exposição “Robot – Making Machines Human” no Tekniska Museet (Robôs, tornando as máquinas humanas” – Museu da Técnica) em Estocolmo, Suécia.

Os novos materiais são mais leves, mais fortes, recicláveis e adaptáveis, no entanto, ainda muito caros. Um exemplo é o grafeno, “200 vezes mais forte que o aço, um milhão de vezes mais fino que um cabelo humano e um condutor eficiente de calor e eletricidade” (Klaus Schwab, 2016. p. 20-21) que pode ser usado na produção de painéis solares, mecanismos para desintoxicar água contaminada e para filtrar a água salgada dos oceanos etc. Ao mesmo tempo, um floco micrometro custa mais de US$1000, o que torna toda a sua capacidade pouco utilizada ou limitada a um número muito pequeno de capitalistas imperialistas.

No campo digital, a Internet das Coisas (IoT) pode ser descrita como uma relação entre as coisas (produtos, serviços, lugares etc.) e as pessoas.  Essa relação é dada, principalmente, por sensores, entre outros meios de conexão do mundo virtual com o mundo físico, onde sensores menores, baratos e inteligentes estão sendo instalados em casas, cidades, rede de transporte e energia e processos de fabricação. Com a instalação desses sensores, transmissores ou etiquetas de identificação, há o controle total sobre o processo produtivo (onde está, como está e para onde vai).

Tecnologias como o Blockchain, que tem como uma de suas “melhores” aplicações os Bitcoins, podem mudar radicalmente a forma como registramos informações de compra e venda.

Por fim, a chamada Economia de Compartilhamento ou Economia sob Demanda, de plataformas como Uber, Facebook, Alibaba, Airbnb, iFood, Rappi etc., oferece novos serviços com baixo custo, onde os fornecedores e consumidores podem utilizar recursos antes subutilizados e fornecer feedback entre eles. Interessante observar como o autor compreende essas tecnologias advindas da chamada economia de compartilhamento sem apontar seus efeitos nas relações e condições de trabalho. Isto ainda será objeto da nossa análise.

O último campo onde a chamada Quarta Revolução Industrial se apresenta é no biológico, principalmente na genética. A biologia sintética é o próximo passo dessa revolução que irá “nos fornecer a capacidade de personalizar organismos escrevendo DNA. Deixando de lado as profundas questões éticas que isso suscita, esses avanços não irão somente ter um profundo e imediato impacto na medicina, mas também na agricultura e produção de biocombustíveis” (Klaus Schwab, 2016. p. 24-26).

Por causa desse tipo de desenvolvimento na biologia, será possível determinar de maneira econômica e eficiente nossa composição genética individual, possibilitando o cuidado personalizado no tratamento da saúde.

Essas tecnologias aplicadas na biologia, medicina e agricultura podem mudar radicalmente a forma como vivemos e suas consequências podem trazer problemas sociais, médicos, éticos e psicológicos para os quais nós ainda não estamos preparados, aponta Schwab de maneira radicalmente honesta. Ambos os autores, embora discordem de como chamá-la, concordam que é uma revolução no modo capitalista de produzir a vida material. O que nós pensamos sobre isso?

A Revolução Industrial do século 18 e a “Quarta Revolução Industrial”

Para dar um alicerce histórico à análise do fenômeno atual (a Indústria 4.0) buscamos em Marx uma caracterização da Revolução Industrial e seu significado não só em termos do capital constante, como também do capital variável. Para essa análise, tornou-se indispensável voltar à Marx em seu capítulo sobre a maquinaria e grande indústria em “O Capital”.

No primeiro item do capítulo, “O Desenvolvimento da Maquinaria”, Marx esclarece o objetivo da maquinaria na produção capitalista e a diferença da grande indústria com relação à manufatura.

Igual a qualquer outro desenvolvimento da força produtiva do trabalho, ela se destina a baratear mercadorias e a encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador precisa para si mesmo, a fim de encompridar a outra parte da sua jornada de trabalho que ele dá de graça para o capitalista. Ela é o meio de produção de mais-valia. (O Capital, Karl Marx. 1974. p. 7. Destaque meu)

Esse ponto inicial é importante, pois demonstra de forma muito clara que a produtividade do trabalho aumentada significa que da jornada total de trabalho, com o desenvolvimento da maquinaria, uma parte maior é dada de graça ao capitalista, aumentando, portanto, a mais-valia por ele explorada.

Para Marx, o ponto em que essa mudança crucial na técnica ocorre é em 1735, quando John Wyatt anuncia sua máquina de fiar. A diferença fundamental na invenção dessa máquina que anuncia a Revolução Industrial necessita uma explicação sobre a máquina-motriz, o mecanismo de transmissão e a máquina-ferramenta (partes da maquinaria desenvolvida). A primeira atua como força motora de todo o mecanismo. O segundo regula o movimento, modifica sua forma onde necessário, e a terceira necessita das duas primeiras para se apoderar do objeto do trabalho e modificá-lo de acordo com a finalidade. Segundo Marx, “É dessa parte da maquinaria, a máquina-ferramenta, que se origina a revolução industrial do século XVIII.”

Isso se deve ao fato de que a Revolução Industrial substituiu os ossos e músculos humanos pelas máquinas, justamente na parte em que cabia ao homem o papel de máquina-ferramenta, substituindo uma só ferramenta por muitas iguais ou semelhantes ao mesmo tempo e que é movimentada por uma única força motriz.

Para Marx, a Revolução Industrial não se deu a partir da criação da máquina a vapor, que foi criada ainda no período manufatureiro, no final do século 17. Ocorreu o contrário, foi a criação das máquinas-ferramentas que tornou necessária a máquina a vapor revolucionada.

Quando o homem, em vez de atuar com a ferramenta sobre o objeto de trabalho, atua apenas como força motriz e uma máquina-ferramenta, torna-se casual a força motriz revestir-se de músculos humanos e o vento, a água, o vapor etc. podem tomar seu lugar. (…) O aumento do tamanho da máquina de trabalho e do número de suas ferramentas operantes simultaneamente exige um mecanismo motor mais volumoso, e esse mecanismo, para superar sua própria resistência, precisa de uma força motriz mais possante do que a força humana; isso sem considerar que o homem é um instrumento muito imperfeito de produção de movimento uniforme e contínuo. (O Capital, Karl Marx. 1974. p. 10)

Era necessário à grande indústria revolucionar as bases que recebeu do período manufatureiro, período este que desenvolveu os primeiros elementos científicos e técnicos para o salto ocorrido com a Revolução Industrial, qual seja, a criação de uma máquina que não só substituísse a máquina-ferramenta movida por trabalho humano, mas também produzisse sua própria força-motriz. Isso se dá com a segunda máquina de fiar de Watt, que foi chamada de máquina de ação dupla, pois com ela foi lançado o primeiro motor que produzia sua própria força motriz e, portanto, não só não dependia mais das condições locais (como no caso da força hidráulica, que dependia da existência de rios próximos das fábricas, o que levava às instalações fabris para o interior), mas também se emancipava dos limites da força humana. O grande passo em direção à indústria moderna conquistado a partir desse ponto foi que “uma máquina motriz podia agora mover, ao mesmo tempo, muitas máquinas de trabalho.”

A Revolução Industrial, desse ponto de vista, representou mesmo uma revolução para o capitalismo, pois tornou os meios de produção correspondentes ao modo de produção propriamente capitalista, possibilitando a produção em larga escala. “A produção mecanizada ergueu-se, portanto, de maneira natural sobre uma base material que lhe era inadequada.” Por outro lado, executou essa revolução às custas do deslocamento (desemprego) de milhares de trabalhadores, não só isso, mas também barateando sua força de trabalho, conferindo ao capitalista uma parte ainda maior de sua jornada de graça.

Desse desenvolvimento surgiu a necessidade de revolucionar outros segmentos e ramos da produção. “Assim, a mecanização da fiação tornou necessária a mecanização da tecelagem, e ambas tornaram necessária a revolução mecânica e química no branqueamento, na estampagem e na tinturaria”. Essa sucessão de revolucionamentos levou à necessidade de uma revolução nas condições gerais do processo de produção social, nos meios de comunicação e transporte vindos do período manufatureiro, que já eram insuportáveis para a grande indústria.

A grande indústria teve, portanto, de apoderar-se de seu meio característico de produção, a própria máquina, e produzir máquinas por meio de máquinas. Só assim ela criou sua base técnica adequada e se firmou sobre seus próprios pés. Com a crescente produção mecanizada das primeiras décadas do século XIX, a maquinaria se apoderou, pouco a pouco, da fabricação das máquinas-ferramentas. Só durante as últimas décadas, no entanto, a colossal construção de ferrovias e a navegação transatlântica a vapor deram à luz ciclópicas máquinas para a construção dos primeiros motores. (O Capital, Karl Marx. 1974, p. 16)

A condição necessária para esse processo se realiza com a criação da slide-rest no início do século 19 por Henry Maudslay, que podia “produzir formas geométricas rigorosas, como linha, plano, círculo, cilindro, cone e esfera, de maneira mecanizada.” Com esse dispositivo mecânico, a própria mão humana foi substituída.

É neste ponto que a maquinaria desenvolve o caráter cooperativo e social do processo de produção propriamente capitalista que, do momento em que nasce, torna-se uma das contradições mais flagrantes deste modo de produção: produção extremamente socializada com apropriação extremamente privada. No item três do capítulo, “Efeitos imediatos da produção mecanizada sobre o trabalhador”, Marx sistematiza como efeitos a introdução do trabalho feminino e infantil no sistema fabril, que se dá através da desvalorização da força de trabalho masculina e lança toda a família ao constrangimento da venda de sua força de trabalho; o prolongamento da jornada, pois o desgaste da máquina é duplo (tanto pelo uso, como pela não utilização), além de que sua produtividade é inversamente proporcional à grandeza de valor que transfere à parcela do produto produzido, ou seja, quanto mais ela funciona menos valor irá transferir à mercadoria individual.

A máquina produz mais-valia não só ao desvalorizar diretamente a força de trabalho e, indiretamente, ao baratear as mercadorias que entram em sua reprodução, mas também em suas primeiras aplicações esporádicas, ao transformar em trabalho potenciado o trabalho empregado pelo dono de máquinas, ao elevar o valor social do produto da máquina acima de seu valor individual, possibilitando ao capitalista assim substituir, com uma parcela menor de valor do produto diário, o valor diário da força de trabalho. Durante esse período de transição, em que a produção mecanizada permanece uma espécie de monopólio, os lucros são, por isso, extraordinários e o capitalista procura explorar ao máximo essa “lua-de-mel” por meio do maior prolongamento possível da jornada de trabalho. (O Capital, Karl Marx. 1974. p. 31)

Há uma contradição da produção mecanizada que se expressa no trade-off, uma escolha que exclui outra, entre produtividade e a quantidade de trabalhadores. Uma vez que se expanda a produção mecanizada e com ela o aumento da produtividade do trabalho, esse mesmo resultado só é alcançado pela redução dos trabalhadores, pois a maquinaria transforma parte do capital que antes era variável em capital constante. A consequência direta desse processo é a criação da superpopulação relativa, excedente ou o exército industrial de reserva – uma massa de desempregados. O prolongamento desmedido da jornada leva a uma resposta da classe operária por meio de revoltas, o que obriga o Estado a impor limites legais ao capital, fixando a jornada de trabalho. Tão logo isso tenha sido feito, o capital procura um novo meio de compensar suas perdas e lança-se “com força total e plena consciência à produção de mais-valia relativa por meio do desenvolvimento acelerado do sistema de máquinas.” (O Capital, Karl Marx, 1974. p. 33)

A intensidade da exploração do trabalho é, portanto, o terceiro efeito mais importante da produção mecanizada, que leva ao “preenchimento mais denso dos poros da jornada de trabalho, isto é, impõe ao trabalhador uma condensação do trabalho a um grau que só é atingível dentro da jornada de trabalho mais curta” (O Capital, Karl Marx, 1974. p. 33). A extração de mais-valia relativa se dá, fundamentalmente, através da aceleração das máquinas e ampliação da maquinaria a ser supervisionada pelo mesmo operário.

O capítulo mencionado é bastante extenso e vale a pena sua leitura, mas no que concerne ao centro do nosso estudo (compreender o que foi e o que caracterizou a Revolução Industrial), após essas breves notas partimos para a conclusão, onde Marx é bem categórico sobre o sentido da Revolução Industrial em seus efeitos para a principal força produtiva, a classe operária:

Não há a menor dúvida de que a tendência do capital, uma vez que o prolongamento da jornada de trabalho lhe é definitivamente vedado por lei, é de ressarcir-se mediante sistemática elevação do grau de intensidade do trabalho e transformar todo aperfeiçoamento da maquinaria num meio de exaurir ainda mais a força de trabalho, o que logo deve levar a novo ponto de reversão, em que será inevitável outra redução das horas de trabalho. (O Capital, Karl Marx. 1974. p. 39. Destaque meu)

No item 4 e 5 do capítulo, “A fábrica” e “Luta entre trabalhador e máquina”, baseando-se em Friedrich Engels, Marx expõe de que maneira esse sistema fabril ataca as condições de saúde dos trabalhadores e conclui que a “autovalorização do capital por meio da máquina está na razão direta do número de trabalhadores cujas condições de existência ela destrói” (O Capital, Karl Marx. 1974. p. 48).

A máquina não atua, no entanto, apenas como concorrente mais poderoso, sempre pronto para tornar trabalhador assalariado ‘supérfluo’. Aberta e tendencialmente, o capital a proclama e maneja como uma potência hostil ao trabalhador. Ela se torna a arma mais poderosa para reprimir as periódicas revoltas operárias, greves etc. contra a autocracia do capital. (O Capital, Karl Marx. 1974. p. 51. Destaque meu)

Encontramos aqui o sentido mais profundo e claro do desenvolvimento da técnica e da produtividade ocorrido com a Revolução Industrial. Com essa demonstração, esperamos esclarecer que o aumento da produtividade é uma maneira do capital de opor-se à classe operária, de destruir sua organização através do aumento do exército industrial de reserva, de prolongar a jornada, aumentando a extração de mais-valia e, do momento que isso torna-se impossível, intensificá-la de toda maneira.

A Revolução Industrial do século 18 carrega um significado importantíssimo, pois a partir dela foi possível, pela primeira vez, despir o processo de produção dos ossos e músculos humanos, liberando os seres humanos da necessidade do trabalho, ao mesmo tempo que forneceu as bases para o conhecimento e a satisfação das necessidades da humanidade em seu conjunto através da produção em larga escala e do mercado mundial. Esse é o sentido do desenvolvimento das forças produtivas liberado pela Revolução Industrial e pelo modo de produção capitalista.

Essa foi a grande contribuição deste sistema para o caminho de emancipação da humanidade: dar as bases que necessitávamos para um grande salto rumo ao reino da liberdade. No entanto, a contradição é flagrante. Chegando às portas do “reino de liberdade”, o capital para na porta e não permite a humanidade entrar. O motivo é claro: a manutenção da propriedade privada, da divisão da sociedade em classes e da exploração do homem pelo homem que dela decorre. Mesmo com toda a enorme massa de tempo agora disponível para a humanidade se desenvolver, nunca se trabalhou tanto e em ritmo tão frenético; mesmo com toda a riqueza criada, massas de famintos e miseráveis circulam pelas ruas; mesmo com tamanha produtividade, as necessidades mais elementares não são atendidas; mesmo com tanto o que fazer para satisfazer essas mesmas necessidades, milhões de desempregados. Mantendo esses entraves, o capital luta encarniçadamente para se manter mesmo contra o desenvolvimento das forças produtivas que ele próprio engendrou, afasta assim a humanidade do céus na terra. “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos céus” (Bíblia Sagrada, Mateus 19:16-30, Marcos 10:17-31 e Lucas 18:18-30).

Indústria 4.0 e lei de tendência à queda da taxa de lucro

A missão fundamental do sistema capitalista é garantir as taxas de lucro e aumentá-las sempre que possível. Sendo assim, torna-se uma missão complementar aumentar a produtividade do trabalho, de modo que seja possível colocar mais capital em movimento por uma quantidade relativamente menor de trabalhadores. O ápice desse processo é a robotização e a automação da produção.

A produção capitalista necessita de adiantamento de capital. É através da exploração do capital variável (força de trabalho) que a burguesia pode, ao adiantar todas as condições de produção (meios de produzir, insumos, maquinaria, salários), valorizar seu capital. A valorização do capital, no entanto, só se realiza na circulação da mercadoria até que ela seja efetivamente vendida. ‘‘Nesse processo de circulação, surge ao lado do tempo de trabalho o tempo de circulação das mercadorias como fator que limita a massa de mais-valia realizável em determinado intervalo de tempo’’ (O capital, Karl Marx. 1974. 1984. p.35). Disso decorre não só a preocupação do capitalista com a diminuição do tempo socialmente necessário para produzir uma mercadoria qualquer através das inovações tecnológicas como também a necessidade de diminuir o tempo de circulação, transporte e comunicação, facilitando a realização da mais-valia, que nada mais é que um excedente em relação ao capital global.  Toda a tagarelice de que a inovação tecnológica tem como objetivo satisfazer a demanda é pura ilusão. O capital só tem por objetivo se valorizar.

Para se valorizar, o capital necessita ampliar a taxa de mais-valia, o que só é possível através do aumento da produtividade via prolongamento da jornada de trabalho, o que chamamos de mais-valia absoluta, e/ou através da inovação tecnológica que, com o mesmo número de trabalhadores, amplia a produção, o que chamamos de mais-valia relativa.

O fato é que a Industria 4.0 em seus diferentes conceitos aumenta a automação e robotização do trabalho, reduzindo a participação da força criadora e de onde é possível extrair mais-valia, a força de trabalho.

Ao aumentar exponencialmente o incremento em máquinas e deslocar força de trabalho, a Indústria 4.0 tem como consequência o que Marx chamou de lei tendencial à queda da taxa de lucro, que não nasce de uma diminuição absoluta da parte variável do capital, mas sim de uma diminuição relativa da parte variável em relação à parte constante. É o mesmo que dizer que os investimentos em capital constante (máquinas, automação, robótica, nanotecnologia, computação quântica etc.) serão muitas vezes superiores à parte variável do capital, a força de trabalho empregada. Isso pode ocorrer mesmo com o aumento absoluto da população trabalhadora.

O número de trabalhadores empregados pelo capital, portanto, a massa absoluta de trabalho posta em movimento por ele, portanto, a massa absoluta de mais-trabalho absorvida por ele, portanto, a massa de mais-valia produzida por ele, portanto, a massa de lucro produzida por ele pode, por conseguinte, crescer, e crescer progressivamente, apesar da progressiva queda da taxa de lucro. Isso não apenas pode ser o caso. Tem de ser o caso – descontadas as oscilações transitórias – na base na produção capitalista. (O Capital, Karl Marx. 1984 p. 167)

O modo de produção capitalista possui, no entanto, algumas formas de contrariar a lei de tendência à queda da taxa de lucro que não são necessariamente absolutas.  Aparecem descritas no Capital como ‘‘Causas Contrariantes’’. São elas: 1) Elevação do grau de exploração do trabalho, através do prolongamento da jornada e intensificação do trabalho, sendo esse o movimento que leva ao enfraquecimento da lei de tendência à queda da taxa de lucro, conferindo-lhe somente um caráter tendencial; 2) Barateamento dos elementos do capital constante, propiciado pelo aumento da produtividade que a elevação da composição do capital realiza; 3) Superpopulação relativa, que se manifesta de forma mais aberta em um país onde o modo de produção capitalista tenha se desenvolvido mais, pois nessas existem ramos de produção de luxo, que incorporam os trabalhadores que outrora foram liberados dos ramos onde se emprega mais capital constante. Como a taxa de lucro é uma equalização das taxas de lucro em ramos específicos, a existência e o aumento da superpopulação relativa neutralizam a lei; 4) O comércio exterior, através da ampliação da escala de produção, eleva a taxa de lucro ao baratear os elementos do capital constante e elevar a taxa de mais-valia. Outro ponto é a diferenciação dos capitais investidos no mercado internacional, que podem ter taxas de lucros mais elevadas, devido a serem investidos em países com menos facilidades de produção, por exemplo. Por fim, 5) aumento do capital por ações, que representa uma parte não calculada na equalização da taxa de lucro.

A relação que guarda o desenvolvimento das forças produtivas é, sob o estágio atual do modo de produção capitalista, uma relação de contradição. Essa contradição se dá quando o modo de produção capitalista, ao elevar a composição do capital, deprecia o capital constante existente. Desse modo:

Os métodos com que alcança esse objetivo implicam decréscimo da taxa de lucro, depreciação do capital existente e desenvolvimento das forças produtivas do trabalho à custa das forças produtivas já criadas. A depreciação periódica do capital existente, meio imanente ao modo capitalista de produção de deter a queda da taxa de lucro e de acelerar acumulação do valor-capital pela formação de capital novo, perturba as condições dadas em que se efetua o processo de circulação e reprodução do capital, e, assim, é acompanhada de paradas súbitas e crises do processo de produção. (O Capital, Karl Marx. 1984, p. 188)

Nesse sentido, sob as limitações das relações de produção deste modo de produção, o resultado da Indústria 4.0 é o desenvolvimento de crises em uma escala ainda mais ampla do que as que conhecemos hoje. É dessa forma que se explicam as preocupações dos economistas que têm analisado os possíveis impactos da implementação da inovação tecnológica proporcionada pela Indústria 4.0. Eles têm razão de se preocupar pois, no estágio da produção capitalista, o fato histórico que representa o surgimento da Indústria 4.0 significa para a classe operária sua destruição gradativa. Isso porque, ao se obter os ganhos da produtividade aumentada advinda da Indústria 4.0, barateia-se os elementos da reprodução da força de trabalho, portanto, um aumento da população de modo geral, mas, ao mesmo tempo, uma redução da classe operária, da população de onde se extrai a mais-valia, o que significa uma nova redução da taxa de lucro e, como vimos, se repõem os elementos para uma nova crise na produção, dessa vez ainda maiores.

CONCLUI NA PARTE 2.