Alerta: O artigo contém spoilers do filme e da série.
Corria o ano de 1966 e um dos grupos políticos que foi fundado (outubro/1966) nos EUA eram os Panteras Negras, uma organização que reunia principalmente os negros e se reclamava do marxismo[i]. E a Marvel e seu principal animador, Stan Lee, procurando uma ponte para chegar aos negros, criou um “herói negro”. O símbolo usado (Pantera Negra) foi utilizado por um batalhão de negros (segregado dos brancos) que lutou na 2ª Guerra Mundial e posteriormente foi adotado por um grupo de defesa dos direitos humanos, do qual participaram Huey Newton, nascido em Monroe (Louisiana), e Bobby Seale, nascido em Dallas (Texas), que se encontraram em Merritt College, em Oakland (Califórnia), em 1961.
Frustrados com impotência do grupo para enfrentar o racismo, os dois jovens fundaram o Partido Panteras Negras de Auto Defesa. Stan Lee, em diversas entrevistas, sempre negou que o símbolo e o nome tivessem uma ligação com o movimento de defesa dos direitos humanos que usava o símbolo e, é claro, muito menos com o partido. A editora tentou, inclusive, em 1972, mudar o nome do herói para Leopardo Negro, mas não funcionou e tiveram que voltar ao nome anterior.
Como vários personagens em quadrinhos, ele nasceu como um personagem secundário, que aparece em várias revistas, irregularmente (duas vezes em 1966, uma vez em 1967, uma vez em 1968) e só vai ter uma revista onde é protagonista central em 1973. Luke Cage, por sua vez, nasce já como um personagem negro que tem uma revista sua (“Luke Cage, herói de aluguel”) em 1972. Foi criado por Roy Thomas, Archie Goodwin e John Romita Sr. Os dois heróis têm trajetória distinta nos quadrinhos e, ao mesmo tempo, representam duas tendências de quadrinhos bastante distintas.
Nem todo herói é rico (à noite, nem todos os gatos são pardos)
“Qual é seu poder? Eu sou rico” (Batman)
“Com grandes poderes, grandes responsabilidades” (Homem-Aranha)
A maioria absoluta dos super-heróis não tem problemas com dinheiro ou em sustentar-se na vida. Batman era um milionário que resolve combater o crime. Arqueiro Verde, idem. Flash tem um emprego estável na vida. Os X-Men moram em uma mansão com uma sala de perigo ultra-sofisticada que ninguém explica de onde veio. Os Vingadores tem uma mansão e um mordomo. Homem de Ferro é um industrial. A Liga da Justiça tem satélites e várias sedes. E o Super-Homem, bom, ele é o Super-Homem, pode fazer qualquer coisa, não precisa de dinheiro, seu poder vem do sol, ele se alimenta de luz. Uau!
E então, pouco a pouco, nesse universo tão burguês, tão bem estruturado, a realidade dura da luta de classes começa a aparecer, de uma forma um pouco estranha, distorcida e esmaecida, como convém a toda história de super-herói. O Homem-Aranha, meu herói preferido de infância, é órfão, perde o tio na primeira história e tenta usar seu poder para ganhar dinheiro com luta-livre. Afinal, ele é um garoto no ensino médio que tenta melhorar de vida, no meio de outros que têm um padrão de vida bem superior. Foi, pelo menos que eu saiba, o primeiro herói que tem problemas de trabalho. É um repórter (fotográfico) free-lancer, não consegue um emprego estável tipo Clarck Kent, mas leva a vida de dureza e dificuldades.
O segundo que aparece nesse mesmo estilo é Luke Cage. Esse não é adolescente, é um adulto. E como um grande número de negros norte-americanos, ele saiu direto da prisão para a vida de herói. Como a maioria dos negros, é “formado” na prisão e não nos colégios e nas universidades. É lá que ganha os seus poderes, usado como cobaia em uma experiência não-autorizada em seres humanos. Da prisão para as ruas. Assim nasce o “Herói de Aluguel”, primeira versão em quadrinhos do personagem. Primeiro personagem negro que tem uma revista própria, ele precisa sobreviver e tenta, igual ao Homem Aranha, ganhar a vida vendendo a sua força.
Sim, o universo dos super-heróis tem que incorporar a luta de classes, apesar de todo o esforço para apagá-la. Contrapostos aos reis, ricos, super-ricos, super-homens, mansões e reinos imaginários, nascem os pobres e trabalhadores que também, coitados, têm poderes. A vida real escorre para dentro das revistas de fantasia, que nem por isso deixam de ser menos fantasiosas.
A África do Pantera Negra e a riqueza de Riquinho
“Wankanda First” (Luiz Bicalho)
Nem só de super heróis vivem os quadrinhos. Também existem outros quadrinhos, alguns mais fantasiosos, outros mais terra a terra. Um dos quadrinhos que fazia sucesso era Riquinho, que rendeu até filmes. Em uma das histórias é contada a origem da riqueza do personagem. Trabalho duro igual ao do Tio Patinhas (que esconde a exploração até dos seus sobrinhos)? Exploração do trabalho alheio? Nada disso, a origem da riqueza (em uma das histórias) é que um ancestral do dito cujo (na idade da pedra, parece) achou uma mina de ouro e conseguiu com isso, por pura sorte e depois com um pouco de maestria, tornar-se rico e a riqueza da família vem até hoje. Uau, que bom que sabemos que a burguesia não nasce da pobreza, mas da riqueza. E o que tem isso a ver com o Pantera Negra? Reconhecem algo?
O primeiro Pantera Negra (o primeiro Fantasma, se me permitem a lembrança) obtém o seu poder após a queda de um meteorito que traz um minério super poderoso (Vibranium) que vai garantir a riqueza das tribos, assim que conseguem se unificar. Tudo explicado? Explicado como conseguiram escapar da exploração e invasão da África, apesar de serem muito pouco solidários a seus vizinhos que são explorados e eles nem aí com isso? Bom, quase tudo.
A verdade é que a África é rica de minerais. Petróleo, ferro, diamantes, ouro. Tudo estava lá e muito estava sendo explorado antes das invasões europeias e árabes. Então porque nenhum dos reinos da África (e eram muitos, alguns deles maiores que os reinos da Inglaterra e da França, no auge da Idade Média) conseguiu explorar essas riquezas e se tornar uma nação independente que competia com os países europeus, como nenhuma conseguiu ser não uma Wakanda, mas algo parecido?
A história não é uma mãe bondosa, mas uma madrasta cruel. Os reinos da África estavam entre o estágio de reinos com um sistema escravagista, na maioria dos casos e, em alguns casos, com um sistema feudal. Não sobraram muitos registros, embora a história hoje tenha conseguido resgatar alguns fragmentos, sobretudo do norte da África, onde a disputa pelo poder entre árabes e europeus deixou mais vestígios históricos. Mas a realidade foi que o sistema de produção capitalista, a introdução das armas de fogo produzidas em massa, levaram a que os europeus tivessem uma vantagem que não podia ser superada pelos africanos. A cultura, os costumes, a organização social, foi ou comprada (e geralmente quem vendia não era a melhor parte da sociedade, era justamente a parte mais podre, os comerciantes de escravos e os que tinham sido derrotados em alguma disputa tribal) ou submetida a ferro e a fogo. Milhões foram massacrados, outros milhões foram escravizados e no final toda a África foi colonizada e repartida entre as potências europeias. De nada adiantou as riquezas ou seu domínio. As armas de fogo e o capital, o preço baixo das mercadorias, levou a tudo de roldão e destruiu tudo que o continente tinha construído. Algo semelhante aconteceu nas ilhas do Pacífico e na Austrália. Somente na Ásia, cuja população era muito superior à europeia, sobreviveram cacos da cultura anterior, de preferência aquilo que podia ser importado como “novo”, “oculto”, “sabedoria antiga” ou “milenar”, como o confucionismo ou o budismo.
Nenhuma grande riqueza ou metal misterioso teria sobrevivido ao capitalismo. Mas, como explicam os comentaristas, se existe a fantasia para os brancos, porque não pode existir a fantasia para os negros? Daí nasce Wakanda, seu reino miraculoso, que desenvolve uma tecnologia fantástica: “EUA…” ops…, “Wakanda Primeiro”, é a nova palavra de ordem da moda inventada por um branco de cabeleira vermelha que é proclamada aos quatro ventos como o novo empoderamento negro. Sim, e vários que querem que os negros se sintam melhores, sem que mude um centésimo em suas condições de vida, organizam filas e movimentos para que todos vão ao cinema assistir maravilhados ao novo reino, a nova burguesia negra, que é tão compadecida de seus irmãos pobres na América! Perdão, esqueceram a pobre África tão sofrida? Uau, que pena. Mas não se pode fazer tudo, mas se pode dar parquinhos lindos para as crianças negras que serão os próximos a serem explorados no capitalismo que segue.
Da prisão para o Harlem e de volta à prisão
Luke Cage é um ex-presidiário. E a série da Netflix trata o personagem de uma forma bem melhor que os quadrinhos. A criatura superou o criador. Aqui o personagem começa tendo dois empregos: limpa uma barbearia durante o dia e atende em um bar à noite. Essa é a vida real da maioria dos trabalhadores do “grande irmão” – subempregados, mal pagos, tendo que trabalhar mais de 60 horas por semana. E os negros, como no Brasil, sofrem e padecem mais que os brancos. Bem entendido, os conceitos de “negro”, “estrangeiro” e “branco” são elásticos e dependem da época e da luta de classes. Até o ano de 1920, irlandeses e italianos não eram “brancos”. Sofriam da segregação, menos que os negros, mas ainda assim segregação.
Luke Cage não vive em um reino fictício, em um conto de fadas. Ele vive no Harlem, o bairro negro ícone de New York. A série começa mostrando uma placa de rua com o nome de Malcon X e não é à toa. Aqui, não temos uma história de redenção, de superação, mas a história do dia a dia dos moradores do Harlem, do sofrimento dos negros, da especulação imobiliária, do tráfico de drogas, de sofrimento e da dor de pessoas normais. Nada das belezas de reinos fictícios de Wakanda, de Asgard, dos arranha céus de Metrópolis, ou das sombras de Gotham City. Aqui é o bairro dos negros, duro, sujo, condomínios aonde se amontoam pessoas, carros velhos e novos, a polícia violenta do dia a dia. This is USA, baby. Harlem é onde se mora, onde se vai após fugir da prisão, e de onde se voltará à prisão. Assim vivem os negros reais, não o Obama ou o Pantera Negra. Aqui é o proletariado, sua vida dura e crua, e neste mundo as fantasias da pequena burguesia com os reinos míticos escorrega no asfalto duro. Luke Cage lê Chester Himes, talvez o melhor intérprete deste bairro e de sua realidade.
Se eu gostei do Pantera Negra? Uau, eu vi vários filmes da Marvel e da DC e, sinceramente, não me empolgaram. O melhor, já escrevi há algum tempo, foi Homem de Ferro 3, aonde o diretor faz uma sátira cruel com os “terroristas” árabes e sobre quem os paga. Nessa trama, o vice presidente paga a um terrorista que é a cara de Bin Laden, mas que não comete nenhum crime, é apenas um ator dos EUA, de terceira categoria, que é pago para fazer o papel em vídeos mal produzidos. Os crimes são feitos por uma unidade paramilitar para forçar um golpe de Estado. O resto, é quase lixo.
Ah, a música. Palmas para o cineasta que fez Pantera Negra, palmas para quem fez Guardiões da Galáxia. Tem bom gosto musical, tem um bom senso estético, mas a defesa escancarada da burguesia, negra ou branca, não faz o meu tipo. Luke Cage (Cage de prisão) faz. A música é linda, os tons sombrios muito melhores que os de Batman, a cidade crua vivendo e pulsando na nossa frente. Pessoas reais, vivendo e morrendo.
Uma cena épica, que foi extraída, modificada, do gibi Guerra Civil: a polícia persegue Luke Cage (que não tem nenhum uniforme, apenas uma blusa de moleton com capuz, furada de balas ou do mal uso) e a maioria dos habitantes do Harlem saem às ruas com blusas iguais para confundir a polícia. Nada de exércitos, heroínas super-humanas ou super-inteligentes, super-sexys (aliás, prestem atenção nos personagens, nada da exibição de roupas colantes, decotes e curvas que caracterizam a maioria das histórias de super heróis, pessoas simples e normais). Luke Cage é do Harlem, o Harlem é Luke Cage: o personagem maior não é o herói, é o bairro, vivo, pulsante, que te atrai e te repele.
[i] Para saber mais, leia o artigo “Sobre o Programa do Partido dos Panteras Negras: Que caminho seguir para os trabalhadores e jovens negros?“