Ontem (4/7) à noite, um acordo de compartilhamento do poder foi alcançado entre o Conselho Militar de Transição (TMC), a junta militar atualmente no poder, e as Forças para a Liberdade e Mudança (FFC), que inclui os principais líderes do movimento revolucionário que entrou em erupção em dezembro do ano passado.
O acordo estabelece um “conselho soberano” composto de 11 pessoas: cinco militares, cinco civis e um membro de “compromisso” acordado por ambos os lados. Inicialmente, este último foi apresentado como civil, mas então foi revelado que este “civil” era um oficial militar reformado. Assim, a maioria do conselho será leal ao TMC e a todos os membros do velho regime do agora deposto ditador, Omar Bashir.
Ademais, para os primeiros 21 meses, o chefe desse conselho soberano será indicado pelo TMC. Depois, em teoria, durante 18 meses, o chefe de estado será indicado pelo FFC. E somente então, segundo o acordo, depois de mais de três anos, as eleições serão organizadas – se forem organizadas!
Segundo alguns rumores, o TMC indicará seu líder, Abdel Fattah al-Burhan, como chefe de estado. Este é o mesmo homem que, junto com Mohamed Hamdan Dagalo “Hemeti”, desencadeou uma campanha de terror contra o povo sudanês no mês passado.
O acordo também inclui a instalação de uma “investigação transparente e independente” sobre a violência que começou em 3 de junho. Nesse dia, as Forças de Apoio Rápido (uma milícia Janjaweed comandada por Hemeti), começou uma campanha de terror, atacando, inicialmente, o principal acampamento revolucionário de Cartum, e depois aterrorizando as massas revolucionárias desde então. O número total de mortes é de centenas, enquanto milhares foram espancados ou brutalizados de uma forma ou de outra. Muitas das vítimas eram mulheres que foram estupradas pelos fanáticos Janjaweeds. Como pode uma investigação desses acontecimentos ser independente e transparente quando seus principais autores estão encabeçando o estado e controlando todas as agências policiais, militares e de inteligência? Se a polícia e as forças armadas fossem de alguma forma independentes, nunca teria acontecido o banho de sangue que experimentamos no mês passado. Para comprovar isso, o acordo não menciona a retirada das forças Janjaweed das ruas.
O TMC é um descendente em linha direta do velho regime. À cada volta dos acontecimentos, ele comprovou sem sombra de dúvidas que não se comprometerá com as massas revolucionárias, a quem veem como uma ameaça à posição da classe dominante. Tendo à frente suas tropas de choque Janjaweed, estiveram aterrorizando as massas durante a revolução. Em todas as etapas, seu objetivo foi o de ganhar tempo para desorientar e cansar o movimento, a fim de lançar novos contra-ataques. O atual acordo é uma continuação dos mesmos métodos. O acordo não toca no poder do TMC e do resto do velho regime, que é deixado completamente intacto. Mas, sob seu disfarce, o TMC tentará desmobilizar as massas e criar as condições de restauração da “ordem” – isto é, de total submissão das massas ao regime. Se as eleições forem de alguma forma organizadas (e aqui cabe um grande “se”!) pelo regime atual, a classe dominante se certificará de que seja realizada de uma forma que não represente qualquer ameaça a seus privilégios.
É trágico que os líderes da revolução estejam agora apoiando essa fraude e ajudando esse governo como sócio minoritário da contrarrevolução! Apoiarão um governo dos Burhans e dos Hemetis, os açougueiros da revolução, que estão meramente esperando por novas oportunidades para desencadear o seu terror. Temos de dizer as coisas como elas são. Esse acordo é uma traição total às massas revolucionárias. É uma traição a todos aqueles que arriscaram suas vidas e a perderam lutando por justiça e por uma sociedade melhor. A todos aqueles milhões de pessoas que, nos últimos 8 meses, em condições de extrema dificuldade econômica, sacrificaram o seu hoje por um amanhã melhor.
Desde dezembro passado, a revolução poderia ter tomado o poder em várias ocasiões. Em primeiro lugar, durante os eventos de abril visando a remoção de Omar Bashir. Depois, durante as duas greves gerais, em maio e em junho. E mesmo nas últimas semanas que antecederam e se seguiram à Marcha dos Milhões de Homens do último domingo, o movimento teve força e ainda está presente para se organizar para tomar o poder.
Mesmo depois de 3 de junho, enquanto os soldados Janjaweed percorriam as ruas caçando os revolucionários, as massas lançaram um contra-ataque impressionante que resultou em provavelmente o maior protesto da história do Sudão, na semana passada. Em todas essas ocasiões, o poder esteve ao alcance do movimento. Mas os líderes da Associação Profissional Sudanesa (SPA), que é a liderança real da revolução, hesitaram e se recusaram a dar os passos necessários.
Apesar de que a maioria dos soldados está contra o TMC, o SPA se recusou a apelar às fileiras do exército para romper com seus generais contrarrevolucionários. Com base em manter os assuntos “pacificamente”, se recusou a organizar comitês de autodefesa ou apresentou qualquer tipo de plano para desarmar o RSF e outras milícias contrarrevolucionárias que agora controlam grandes partes do Sudão. Em vez disso, eles lançaram rodadas após rodadas de negociações. Devemos perguntar honestamente: os resultados foram pacíficos?
Agora, o SPA se juntou a um governo com a junta. Acreditam realmente que isso levará a um curso mais pacífico dos acontecimentos? E como satisfará esse acordo qualquer uma das necessidades das massas?
O povo sudanês se levantou contra a ditadura militar de Omar Bashir, contra décadas de repressão e humilhação. Contra uma classe dominante que, apesar de toda a riqueza do país, só conseguiu mergulhá-lo no cada vez mais profundo atraso. É uma revolução por pão e justiça para os pobres e contra a enorme concentração da riqueza entre uma pequena minoria. Mas nenhum desses problemas foi resolvido. Todas as principais alavancas do poder na sociedade – o estado e a economia – ainda estão sob o controle do velho regime.
No momento em que parece haver muita confusão nas ruas em torno do acordo, seria natural que muitas pessoas ficassem aliviadas. Depois de oito meses de luta implacável sem nenhum plano específico apresentado pela liderança de como alcançar a vitória, algumas camadas estariam cansadas e desorientadas. Na ausência de quaisquer propostas alternativas, poderiam ver o acordo como uma vitória parcial para a revolução. Mas, mais cedo ou mais tarde, o engodo ficará evidente.
As massas mostraram o seu enorme potencial e criatividade repetidas vezes durante o curso dessa revolução. Em condições de extrema dificuldade, elas construíram um movimento impressionante, organizado em comitês por todo o país e com um poder incontrolável. Isso deve se expandir às forças armadas e ser absorvido pelos comitês locais de defesa como uma forma de se defender da violência Janjaweed. Ao mesmo tempo, devem estar conectados em nível nacional para se prepararem para os inevitáveis confrontos futuros com a contrarrevolução.
Os interesses dos trabalhadores, dos camponeses e dos pobres não pode se reconciliar com os dos generais e ricos. As massas só podem confiar em seu próprio poder. Nenhuma negociação ou protestos de rua pode “convencer” esses contrarrevolucionários a agir no interesse das massas. A única solução é a revolução tomar o poder e remover esses parasitas de todas as posições estratégicas dentro do aparato estatal, das forças armadas e da economia.
Não ao compromisso podre!
Não à coalizão com Burhan e Hemeti, os açougueiros da revolução!
Abaixo o TMC!
Abaixo o regime contrarrevolucionário!
Texto original de 5 de julho de 2019.
Traduzido por Fabiano Leite