Martin Luther King e Malcolm X / Imagem: Marion S. Trikosko

O legado de Malcolm X e a luta revolucionária contra o racismo

Como resultado de décadas de pesquisas em fontes históricas, o Banco de Dados do Tráfico de Escravos Transatlânticos, organizado por universidades de todo mundo, nos apresenta que, entre 1501 e 1900, 4,86 milhões de africanos foram forçosamente desembarcados no Brasil. Estes pesquisadores apontam que o país foi o líder isolado desta criminosa tabela de classificação, com o dobro de pessoas escravizadas na comparação com o restante das Américas.

Uma realização das classes dominantes do colonialismo europeu, por meio de suas companhias mercantis – fator de acúmulo de capital da burguesia – e dos Estados nacionais monárquicos, a escravização africana ofereceu força de trabalho para o Novo Mundo, deu vida às suas economias e moldou suas sociedades. Do Cone Sul à América do Norte populações foram dizimadas e os negros transformados em animais para o trabalho forçado.

Se a América Portuguesa recebera mais de 4 milhões de africanos, o Caribe britânico trouxe 2,31 milhões, o francês mais 1,12 milhão e a América Espanhola os seus 1,29 milhão de humanos escravizados. Somam-se ainda os quase 450 mil nas colônias holandesas no continente e os 388.746 negros capturados pelo o que se tornaria o maior Império do mundo, os Estados Unidos da América.

Dito isso, embora a diferença na quantidade de escravizados no Brasil e nos EUA tenha sido, de fato, abissal, a barbárie foi bastante semelhante, guardadas as devidas características de cada território. Desde a destinação aos cultivos agrícolas, o violento apagamento das culturas originárias dos escravizados, a divisão feita entre eles – tanto no desmembramento familiar, quanto na segregação de “negros da casa-grande” e os “da lavoura” -, compreende-se paridades e dessemelhanças nos processos escravizatórios no Brasil e nos Estados Unidos.

Mas ressaltamos que a antiga tese da historiografia burguesa que divide estes processos como “colônia de exploração” e “colônia de povoamento” já não se sustenta como gostariam os liberais. A exploração e a opressão estiveram presentes lá e cá, ao mesmo tempo das reações das populações negras, indígenas e de trabalhadores brancos. Em especial, há os paralelos da luta entre as classes, que ultrapassaram as gerações de ambos os países, produzindo revolucionários antirracistas que cresceram e se formaram em complexas sociedades, repletas de dificuldades objetivas e subjetivas. Neste sentido, aos 57 anos do assassinato de um dos maiores revolucionários negros da história, oriundo desta conexão África-América, faz-se fundamental apontarmos o legado de Malcolm X e a questão racial nos dois países.

X em movimento

O homem que trocou seu sobrenome pela incógnita – o X da matemática – para ensinar aos jovens negros de seu país que suas histórias foram liquidadas pelos escravagistas, foi um lutador confuso, histórico, mas sempre defensor “por qualquer meio necessário” dos explorados e oprimidos.

Normalmente, fala-se sobre Malcolm X a partir da dicotomia liberal da violência. Isto é, enquanto Martin Luther King Jr. seria o exemplo de luta antirracista a ser seguida, X deveria ser negado, combatido e condenado como “extremista”, “violento” e até “antissemita”. Evidentemente, esta não é uma análise materialista-histórica, nem sobre Malcolm nem qualquer outra personagem ou processo na luta de classes. Os marxistas possuem uma moral e ela é distinta da burguesa e de seus ideólogos liberais, tratando-se de uma moral que serve única e exclusivamente aos interesses revolucionários da classe trabalhadora.

Sendo assim, compreendemos que os “arroubos violentos” de Malcolm X, em seus discursos inflamados, possuíam um caráter de reação do oprimido. Não de um terrorista. Mas, nem por isso, nos furtamos em apontar os graves erros políticos e ideológicos deste militante, especialmente enquanto ministro de uma seita islâmica obscura e de “capitalismo negro”. Isto é uma demonstração da complexa trajetória deste revolucionário.

Sua vida, iniciada em 1925, em Omaha, no Nebraska, foi constituída pelas tragédias e a cólera do racismo. Na tenra infância, cresceu com o pai, pastor e ativista antirracista, e uma mãe negra, mas de tez embranquecida por ter sido fruto de um estupro com o proprietário de sua mãe-avó de Malcolm. Neste lar, conviveu com o ímpeto do pai, que enfrentava a Ku Klux Klan e, por isso, primeiramente, teve sua casa consumida pelo fogo ateado pelos supremacistas brancos e, depois, assassinado por eles. Com isso, Malcolm passou pela extrema pobreza com sua mãe e seus 8 irmãos, até que foi separado deles e levado para uma família branca que o adotou não como um filho, mas feito um animal de estimação, como escreveu em sua autobiografia.

Mesmo assim, sua ambição era tornar-se advogado e suas ótimas notas, sendo o único negro na escola em que foi posto pelos pais adotivos, aumentavam essa vontade. Mas, em plena segregação norte-americana, seu caminho acabou sendo outro: roubos, drogas, jogos ilegais, tráficos, extorsões e toda sorte de mais violência. Acabou preso aos 21 anos, em 1946, permanecendo até 1952. Foi neste período de prisão que sua trajetória adulta reencontrou a luta antirracista de seu pai, atrelada à religião. Porém, diferente do pastor batista Earl Little, Malcolm Little se converteu a um Islamismo muito específico, chamado Nação do Islã, fundado em 1930, em Detroit, por Wallace Fard Muhammad e popularizado por Elijah Poole Muhammad, que se tornou o seu guia espiritual e político.

Esta vinculação seguiu até seu rompimento com a seita, em 1964, após meses de conflitos, desencadeados por punições impostas pelos ministros da Nação do Islã, primeiro por ele ter organizado uma resposta contundente à polícia de Los Angeles, que havia atirado em sete muçulmanos e prendido dezesseis, e depois por ter feito declarações sobre o assassinato de John Kennedy. Junto a isso, deu-se conta que seu líder era, além de um charlatão, um estuprador das suas fiéis e adolescentes. Mas, na realidade, Malcolm buscava uma resposta material e revolucionária para a situação dos negros e seu combate ao racismo; ele não cabia mais naquele grupo místico o qual ofereceu 14 anos de sua vida.

Inegavelmente, nesses anos ele realizou enfrentamentos importantes, como o combate às drogas e ao alcoolismo entre os jovens nos bairros pobres, além de organizar grandes mobilizações contra a violência policial. Mas seus atos eram guiados pelo misticismo de Elijah, que afirmava os brancos como “demônios” e os negros como “anjos”. Isto é, ontologicamente, todos os brancos estariam presos ao mal e a culpa pelos 400 anos de escravidão. Assim, não haveria possibilidade de qualquer atuação conjunta entre negros e brancos contra o racismo; era preciso a total separação entre as etnias, resultando na criação do território da Nação do Islã e do retorno dos negros para a África – elemento que também estava presente nas crenças batistas de Earl Little, que seguia as orientações de Marcus Garvey.

Entretanto, enganam-se aqueles que imputam ao pensamento político de Malcolm apenas o que ele processava e aceitava do “capitalismo negro” e da fé de Elijah Muhammad. Em 1964, nos seus últimos meses de vida, o ministro da Nação do Islã se transformou em peregrino pela África e o Oriente Médio, se vinculando ao Islã sunita, mas também se aproximando do socialismo, a partir das lutas de libertação nacional e anticolonial que ocorriam em África naquela década.

Evidentemente, é um erro considerá-lo um socialista, muito menos um marxista. Porém, seus textos, entrevistas e ações de 1960 até seu assassinato pelas mãos de fanáticos da Nação do Islã, em 21 de fevereiro de 1965, deixaram claro que Malcolm X havia compreendido que “não existe capitalismo sem racismo” e que a superação deste regime só poderia ser feita pelo socialismo.

Ao retornar aos EUA fez questão de combater o que defendia no passado quanto a segregação de negros e brancos, afirmando consequentemente a unidade entre a classe trabalhadora negra e branca contra a burguesia americana. Todavia, ressaltava que era preciso uma unidade entre os trabalhadores negros para que estes não se tornassem submissos em suas reivindicações e posições diante aos trabalhadores brancos, mas que ele ajudaria a organizar, incansavelmente, todos – negros, brancos, indígenas, asiáticos, quaisquer um – no combate contra os capitalistas e seus representantes.

É preciso deixar claro que os marxistas não são adeptos da metodologia do “e se…”, por isso não devemos propagar, por exemplo, que este revolucionário se tornaria um dirigente socialista, orientando milhões de jovens e trabalhadores contra o capitalismo no coração do dragão. Mas o que podemos afirmar é que X sentia suas crenças místicas se desmancharem no ar, compreendendo a necessidade de organizar a luta anticapitalista. Seu assassinato, onde foi cravejado por mais de 20 balas disparadas pelos seus inimigos da Nação do Islã, infelizmente, findou uma vida valiosa para a classe trabalhadora e extremamente perigosa para a burguesia norte-americana.

Conexão EUA-Brasil

A trajetória de Malcolm X se assemelha às vidas de muitos combatentes negros brasileiros. Mesmo que não no sentido da dimensão de sua influência e legado, pois Malcolm tornou-se um exemplar singular do século 20, falamos pelo processo confuso e de busca incessante de uma solução para a barbárie mercantil e capitalista, em cada tempo.

No Brasil, as religiões também sempre ocuparam um papel central na vida social, sendo neste caso não o islã, mas o cristianismo e as religiões de matriz africanas em seus mais variados sincretismos. Seja no Brasil Colônia, seja no Império, os negros utilizaram-se do cristianismo para professar suas crenças, a partir do que recordavam do seu continente. Além deste cunho religioso, suas culturas ancestrais também serviram como resistência e ação direta por meio das lutas, como a capoeira, por exemplo, que eram armas contra as forças repressivas dos senhores brancos.

Ultrapassando as questões religiosas, no Brasil de Aqualtune, Zumbi e Aleijadinho a Luiz Gama, Francisco José Nascimento e Francisco Xavier da Costa, diversos revolucionários negros foram predecessores de Malcolm, cada qual por meio de suas possibilidades de intervenção e agitação social. Um paralelo importante destes personagens históricos, revolucionários que deram suas vidas para transformações profundas das sociedades brasileira e norte-americana, é a ausência de uma formação científica nas causas das questões raciais e econômicas. Alguns não tiveram porque viveram em períodos históricos pré-capitalistas e do socialismo científico. Já outros foram pela ausência de possibilidades, como acesso aos livros, discussões e organização operária, como nos casos de abolicionistas brasileiros que expressaram em suas trajetórias a sanha por revolução, mas chegaram ao limite possível de suas condições. Porém, mesmo assim foram lutadores responsáveis diretos pelas lutas anticoloniais, pela abolição da escravatura e pela organização da classe trabalhadora, tal como X auxiliou para a mobilização dos Direitos Civis e a extinção das Leis de Segregação nos Estados Unidos.

Devemos compreender o papel de cada um desses revolucionários, de suas lutas e aprender com seus erros e acertos para organizar os trabalhadores, brancos e negros, no Brasil e no mundo contra o racismo, o racialismo e o capitalismo. No Brasil,  78% dos mortos por armas de fogo possuem a pele negra e são os que possuem os piores salários, os empregos mais precários, sofrem com piores condições de habitação e não acessam plenamente os serviços públicos que deveriam ser universais.

No estágio de crise e decadência do regime burguês não há mais solução para o capitalismo e um dos seus elementos ideológicos: o racismo. Tanto aqui, quanto nos Estados Unidos ou em qualquer parte do mundo, a barbárie se alastra contra os negros e contra toda a classe trabalhadora. Neste processo de selvageria, se aprofunda também a reação dos explorados e oprimidos contra o Estado capitalista e sua classe dominante. Assim, os legados de revolucionários como Malcolm X e dos lutadores de cada país, como os brasileiros, vêm nutrindo especialmente a juventude. Este setor da sociedade que carrega consigo a chama da revolução, a vontade de transformar sua realidade e das próximas gerações, aproxima-se da história, conhece seu passado e busca uma direção para que os erros não se repitam e o novo mundo – onde o racismo e qualquer tipo de opressão não sejam mais pauta de luta, mas apenas velharias jogadas na lata de lixo da história – seja construído.