E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte Severina:
que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte Severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida).
(João Cabral de Melo Neto)
No sábado (24 de março) de madrugada, no final de um baile, por volta das 5 horas da manhã, a polícia entrou na favela da Rocinha. Na “comunidade”, dizem os jornais. Também explicam que, segundo a PM, foram recebidos a tiros e só revidaram. Estranho confronto esse, em que nenhum PM foi ferido, nenhum carro foi mostrado com marca de bala, mas que seis moradores, a maioria jovens, morreram na hora. Bem mais tarde, os moradores depositaram mais dois corpos em uma passarela que passa por cima da Lagoa Barra e permite que os moradores atravessem a via.
No domingo, relatam os jornais, o dia amanheceu tranquilo. Na Rocinha é claro. Porque em Maricá, num conjunto habitacional do Minha Casa, Minha Vida, a milícia, segundo os próprios atiradores, deu as caras e mostrou que a vida se morre de ave-bala antes dos 20, com cinco jovens que foram assassinados.
O que têm esses assassinatos em comum? Pra começar, a Rede Globo no dia 24 à noite relatava que a intervenção da polícia matou desde outubro muitos bandidos, um morador e um turista. Sim, a Rede Globo, coitadinha, aquela mesma que fala em todo momento da morte da vereadora Marielle, esquece que ela foi morta exatamente por denunciar as mortes feitas por PMs em uma favela da Zona Norte. Ah, mas aqui é Zona Sul, aqui, morou na favela é suspeito, se tem passagem na polícia então é criminoso e merece morrer porque, afinal, como diz o Bolsonaro, bandido bom é bandido morto, certo?
Mas nesta hora as coisas não são tão fáceis de esconder assim. Vários moradores relatam que a PM chega desrespeitando os habitantes, batendo na cara dos meninos e dos homens. Sim, essa é a velha PM de sempre, que bate nos manifestantes quase todos os dias, que joga bomba nas greves, que invade igrejas atrás de jovens que foram buscar seus direitos. A única diferença para os morros e favelas é que lá as balas são de aço, ao invés de revestidas de borracha.
Essa PM que foi denunciada por Marielle por estar matando gente na favela do Acari, dois dias antes de sua execução. Agora, com Marielle morta, em que a sua voz não pode mais denunciar e repercutir na Câmara dos Vereadores as mortes na Rocinha, em que só assim meio de contrabando chega a voz das mães dos mortos, em que o medo faz com que os mortos sejam depositados em uma passarela ao invés de chamar a polícia para ver como foram mortos, a gente entende que para esses ela tinha que morrer.
Ela tinha um nome meio chique, mas era mais uma Severina, morta por emboscada em que a ave-bala chegou antes da fome chegar. E continuam a morrer nos morros e até nas escolas as crianças pela ave-bala, continuam a morrer nos morros de fome, de doenças, de má nutrição, os Severinos que já nasceram predestinados, marcados.
Direitos Humanos? O único direito dos Severinos é trabalhar para a burguesia, é produzir a mais valia e, quando reclamam, apanhar da polícia. Que aliás já bate neles desde crianças, para que aprendam o seu lugar na sociedade, que a propriedade privada dos meios de produção separa os que têm direitos dos que só tem deveres.
Amanhã, provavelmente, mais mortos, todos eles classificados como bandidos. Amanhã, com certeza, a direita voltará a clamar pela execução dos bandidos, enquanto passa o tempo e a imagem da vereadora morta começa a esvair nas brumas do passado. Amanhã, Bolsonaro e Cia, em suas campanhas políticas, estarão aí mesmo clamando por mais segurança.
Hoje, é o tempo das mães chorarem, carpirem a dor da perda dos filhos, como mais mães vão chorar amanhã, enquanto voam as aves-bala, mais achadas que perdidas pelos pobres corpos Severinos.
Ah, e quem sabe, existirão também os que esquecem que as aves-bala são produzidas pelo capitalismo e seu estado repressor e aí dirão que:
“Marielle foi assassinada por ser negra, mulher, trabalhadora, moradora de favela, bissexual e também por ser lutadora, de esquerda, de um partido socialista que defendia a pauta dos direitos humanos e causa dos oprimidos e explorados. Marielle era mulher negra, que desafiou o machismo e ousou enfrentar a escalada de violência crescente entre as mulheres negras.“ (Nota da Executiva Nacional do PSOL).
As mães dos que morrerão, os seus irmãos e irmãs, os seus camaradas, sabem muito bem que morreu a vereadora que denunciou a PM. Sabem muito bem que essa polícia só serve aos poderosos e nada serve para os trabalhadores. Eles estão na dura estrada da vida, da vida Severina que espera a morte em cada esquina e, mais cedo ou mais tarde, aprenderão que o único caminho para se manter vivo é juntar todos os Severinos em comitês de autodefesa, sem PM e sem traficante. Que a ave que um dia veio também um dia pode voltar.
* Severino é morador da Zona Norte do Rio, bancário nos dias de trabalho e escritor por raiva da repressão.