Imagem: Fotos Públicas - Maicon Veirick
Imagem: Fotos Públicas - Maicon Veirick

O que a polícia não quer investigar no ataque ao MST em Tremembé?

No breu da noite de 10 de janeiro, cerca de 30 homens fortemente armados, em cinco carros e cinco motos, invadiram um assentamento de reforma agrária em Tremembé (SP) e de forma vil e covarde atiraram contra os assentados. 15 militantes faziam uma vigília do serviço de ordem para impedir que um lote fosse invadido por pessoas de fora da sua comunidade e que já estavam criando conflitos contra os assentados.

O ataque vitimou oito pessoas, com duas vítimas fatais: o militante do MST, Valdirzão, coordenador do assentamento e referência na luta camponesa no Vale do Paraíba, e o jovem Gleison de Carvalho. Os tiros foram disparados principalmente na cabeça das vítimas, acertaram quarto delas, Valdirzão levou três tiros na cabeça. Os assassinos procuraram as pessoas no mato, com lanternas. Uma sobrevivente que se escondeu no capim alto e escutou um dos homens dizer “mata tudo, mata todo mundo”. A esposa de Valdirzão, escondida e protegida pela escuridão, conseguiu ligar para dirigentes nacionais do MST enquanto os tiros ainda eram disparados. (1)

O assentamento Olga Benário, criado em 2006, conta com 50 famílias numa área de 690 hectares (960 campos de futebol). Eles produzem alimentos para o mercado local e para sua subsistência. Há casos com boletins de ocorrência por ameaças e violência nesse assentamento e em Taubaté (SP), município vizinho.

As pressões e ameaças foram informadas pelo MST:

“O Assentamento Olga Benário enfrenta uma intensa disputa com a especulação imobiliária voltada para o turismo de lazer, devido à sua localização estratégica na região do Vale do Paraíba. Há anos, as famílias assentadas vêm sofrendo ameaças e coerções constantes, mesmo após diversas denúncias feitas aos órgãos estaduais e federais, que seguem sem uma resposta efetiva para garantir a segurança e a permanência dessas famílias no território.” (3)

No dia seguinte, 11, um homem foi preso, identificado pelas vítimas e confessou participação. Depois, outra pessoa foi presa. O MST explica que elas não fazem parte do assentamento:

“Em dezembro do ano passado, um mutirão realizado pelo INCRA regulamentou quase todos os lotes do assentamento, mas o suposto mandante do ataque não tinha participado da ação, nem apresentou documentação para a regularização. Ele não pertence à comunidade e, na semana passada, havia retirado uma bomba d’água de uso coletivo do lote, prejudicando o abastecimento das famílias e da comunidade local.” (4)

O delegado de Taubaté registrou o caso apenas como homicídio, tentativa de homicídio e porte ilegal de arma. O delegado deu entrevista no dia seguinte e já apontou, em tom conclusivo, a motivação do crime como um desentendimento local dentro do assentamento descartando motivação política, mesmo antes de todos os criminosos serem identificados. Uma posição contraditória já que foi um ataque externo, a pessoa presa não faz parte do assentamento.

O MST exige que se investigue a participação de empreiteiras e conluios entre políticos e milícias armadas locais (5). A superintendente do INCRA em São Paulo, também declarou nesse sentido:

“Não é algo isolado. Não foi simplesmente uma disputa por um lote vago. (…) Faz parte de um processo de invasões que vêm acontecendo desde a omissão do governo federal no período Temer e Bolsonaro”. (1)

A polícia federal também investiga o crime de forma independente por determinação do presidente Lula. Os agentes federais estranharam e criticaram a pressa da polícia civil de SP em descartar a possibilidade de o crime estar relacionado à presença do MST no Vale do Paraíba. (2)

Os assentados relatam que dias antes foram procurados por uma imobiliária. E horas antes do massacre, num diálogo conflituoso no assentamento, um dos invasores disse que tinha autorização de um vereador para se instalar no lote. O aparato dos pistoleiros não era pequeno. Eram dez veículos e pesado armamento. Isso indica que houve uma organização e financiamento. Quem são os donos dos veículos? Cadê as câmeras na estrada, os celulares dos pistoleiros? Quem mandou? Quanto custou? Quem pagou? Quais as relações que têm com os políticos locais? Quais relações têm com o setor imobiliário? A polícia tem o deve de investigar tudo isso. (9)

O companheiro Altamir Bastos, da direção do MST, denunciou que o massacre não se trata de uma ação localizada, um grupo ligado aos pistoleiros de Tremembé está tentando se apropriar de outro lote num assentamento em Taubaté (SP). (1)

O Governo Federal é responsável indireto pelo conflito e pelas mortes, não foi só Temer e Bolsonaro que foram hostis e omissos com a reforma agrária. Depois de muita luta com sangue e sacrifício esse assentamento foi legalizado pelo INCRA, em 2006, mas 20 anos depois ainda não foi totalmente regulamentado em nome de seus legítimos ocupantes, essa morosidade favorece os conflitos e os inimigos dos camponeses.

Há uma antiga prática no Brasil chamada “grilagem de terras”. Os grileiros adentram nas terras públicas, se apossam da terra e a subdividem em lotes para vender ilegalmente em pedaços, divulgam até nas redes sociais. As chamadas milícias fazem isso, por exemplo, em áreas de preservação ambiental no Rio de Janeiro e Baixada Fluminense. E normalmente as negociações são feitas por laranjas em locais mais isolados do Cerrado e da Amazônia. Esses grileiros não são empresários, eles são os chamados testa de ferro que fazem o serviço sujo do crime inicial com ajuda da corrupção. Muitas vezes quando eles se instalam, rapidamente consegue energia elétrica e água encanada, em locais que os movimentos sociais demoram anos para serem atendidos pelas empresas que prestam esses serviços. Depois repassam a terra para empresas do agronegócio, por exemplo. Então, aparentemente, o grande capital não comete o crime. Mas depende muito da polícia e da justiça para proteger seus interesses. Por isso, a raiz do problema tem relação direta com a propriedade privada que condiciona a terra como mercadoria.

Gilmar Mauro, da direção do MST, denuncia a grilagem em Tremembé e a conivência do Estado:

“Aqui, num primeiro momento, foram invadidos lotes de reservas florestais dentro do assentamento Conquista. Com a anuência e vista grossa por vezes do poder judiciário e do Ministério Público (…) Mas a questão é mais profunda. Tem ocorrido em áreas já regularizadas de quilombolas, por exemplo, e também do programa Minha Casa, Minha Vida”. (1)

Lembramos que no Brasil, existem dois tipos de títulos definitivos para beneficiários da reforma agrária. São eles o TD e a Concessão de Direito de Real de Uso (CDRU). O primeiro dá ao assentado a propriedade da terra, mas ele tem de pagar por ela. Feito o pagamento e depois de um período de inalienabilidade, ele tem permissão para vender o lote. O assentamento viraria um conjunto de pequenas propriedades.  O segundo é gratuito: a terra segue sendo do Estado, mas o título dá o direito definitivo ao uso dela por parte daquela família, incluindo as gerações seguintes. Nessa modalidade, a terra não pode ser vendida.

Temos que fazer pressão para a polícia ir até o fim nas investigações. Por que será que um dia depois a polícia já descartou a possibilidade de motivação de grilagem de terras para o massacre? É um tipo de crime que serviu aos poderosos desde a era colonial. Uma trama entre pistoleiros, Estado e capital que condiciona a desigualdade extrema no acesso a terra no Brasil.

O ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) de Paulo Teixeira (PT) tem o mapa na palma da mão de todos os assentamentos, acampamentos e as áreas de conflitos agrários do país. Para os fazendeiros de terras reivindicadas pelos movimentos sociais, Paulo Teixeira deveria exigir os documentos que comprovem a sua titulação com os limites da propriedade em georreferenciamento, exigir também o pagamento de suas dívidas com o Estado e o cumprimento das normas de produtividade e sustentabilidade. Isso não precisa de uma lei nova, o governo tem os instrumentos para colocar essas medidas em prática agora. Aqueles que estiverem ilegais e não cumprirem a função social da terra devem ser desapropriados para fins de reforma agrária. A luta contra a direita, o bolsonarismo e um Brasil mais democrático começa com atendimento das reivindicações dos trabalhadores. Por que Paulo Teixeira não organiza isso para ontem? Por que não se demite do governo?

Estamos numa conjuntura de crise do capital internacional e crise das instituições. O capital se sente confiante no seu desejo de liquidar fisicamente aqueles que lutam. Sua fúria atinge também os servidores do Estado.

Dia 8 de janeiro ocorreu um atentado a tiros contra o alojamento de auditores fiscais federais agropecuários em Alta Floresta (MT). Esses fiscais (INDEA e MAPA) são responsáveis pela inspeção de produtos de origem animal e vegetal nas fazendas. Atividades que garantem a qualidade e a segurança dos alimentos aos consumidores (6). Semana passada foi preso o mandante da chacina de Unaí (MG), 21 anos depois desse crime que executou quatro servidores públicos que fiscalizavam denúncias de trabalho escravo. E a Justiça demorou 19 anos para determinar a prisão dos mandantes… Essa impunidade, na prática, é outro incentivo indireto aos ataques. Essa é a democracia de que se fala no Brasil? O primeiro direito democrático é o direito à vida. O regime político atual é incapaz de garantir esse direito elementar. (7)

João Pedro Sdédile, coordenador do MST, afirmou que existem 90 mil famílias acampadas em barracos de lona. Em entrevista questiona o governo de porque a reforma agrária não avança (8). Um ano depois da tragédia de Parauapebas (PA), que vitimou nove pessoas, apesar das promessas de Paulo Teixeira e Lula, os camponeses acampados se dizem abandonados pelo governo (10). E além de precisar se proteger da repressão policial que trata os movimentos sociais como bandidos, os movimentos sociais precisam enfrentar ataques violentos como esse num assentamento legalizado pelo INCRA há 20 anos. A organização de comitês de autodefesa armada se faz necessária hoje.

Lembramos também que a reforma agrária é um poderoso instrumento para a preservação do meio ambiente. Lula quer se consolidar como uma liderança ambiental global garantindo o domínio do capital financeiro e seus lucros com a exportações de commodities? Ou quer reduzir as desigualdades sociais no campo, promove mais equilíbrio com a natureza, proteger a terra contra o desmatamento e exploração intensiva e predatória dos recursos, promover a produção agroecológica com alimentos mais saudáveis, fortalecer indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais?

Prestamos nossa solidariedade ao MST. Exigimos que o Estado investigue e prenda com urgência todos os pistoleiros e mandantes do massacre de Tremembé. Exigimos que o governo Lula faça a Reforma Agrária sob o controle dos trabalhadores, mas sabemos que, em última instância, a Reforma Agrária será feita através da organização e mobilização independente dos trabalhadores. Nossas bandeiras são pela distribuição igualitária e uso sustentável da terra, e pela expropriação e controle democrático da agroindústria.

1 – MST cobra avanço na investigação de massacre em Tremembé e diz que caso é ‘ponta de iceberg’. Brasil de Fato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/01/17/mst-cobra-avanco-na-investigacao-de-massacre-em-tremembe-e-diz-que-caso-e-ponta-de-iceberg

2 – Investigação de ataque a assentamento do MST gera atrito entre governos Lula e Tarcísio. Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2025/01/investigacao-de-ataque-a-assentamento-do-mst-gera-atrito-entre-governos-lula-e-tarcisio.shtml

3 – Assentados são assassinados durante ataque no assentamento Olga Benário, em Tremembé/SP. Site do MST. Disponível em: https://mst.org.br/2025/01/11/assentados-sao-assassinados-durante-ataque-em-assentamento-em-tremembe-sp/

4 – Solidariedade ao assentamento Olga Benário une vozes por Reforma Agrária e Justiça. Site do MST. Disponível em: https://mst.org.br/2025/01/16/solidariedade-ao-assentamento-olga-benario-une-vozes-por-reforma-agraria-e-justica/

5 – MST pede que polícia investigue empreiteiras em assassinatos em assentamento. Repórter Brasil. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2025/01/mst-pede-que-policia-investigue-empreiteiras-em-assassinatos-em-assentamento/

6 – Atentado a tiros contra alojamento reforça preocupação com a segurançados auditores fiscais federais agropecuários. Blog do Pedlowski. Disponível em: https://blogdopedlowski.com/2025/01/14/atentado-a-tiros-contra-alojamento-reforca-preocupacao-com-a-segurancados-auditores-fiscais-federais-agropecuarios/

7 – Mandante da chacina de Unaí é preso dias antes de o crime completar 21 anos. Repórter Brasil. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2025/01/mandante-da-chacina-de-unai-e-preso-dias-antes-de-o-crime-completar-21-anos/

8 – ‘Estamos putos da cara com a incompetência do governo’, diz Stédile, do MST. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2024/12/stedile-mst-entrevista/

9 – Representantes de imobiliária e vereador foram ao assentamento do MST antes de ataque, diz ministro. Canal UOL no Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jpZnn1vSZ7Y

10 – Um ano após tragédia que vitimou nove militantes no Pará, MST denuncia abandono. Canal Brasil de Fato no Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=R7vBvO7kt2o