Há 30 anos, em 5 de outubro de 1988, era promulgada a atual Constituição Federal, a oitava do Brasil em pouco mais de 160 anos desde a Independência. A promulgação do atual texto constitucional foi saudada pelos mentores da “Nova República” como a Constituição Cidadã, o documento que encerraria o período de transição colocando o Brasil definitivamente no caminho da democracia.
Em verdade, ela é o produto de um pacto da burguesia com o recém organizado movimento operário, em que os mecanismo repressivos da ditadura militar foram mantidos. O seu suposto caráter progressista (o rol de direitos e garantias individuais e os direitos sociais) pouco se concretizou nestes 30 anos.
A transição conservadora
Nas décadas de 1960 e 1970, não só o Brasil, mas vários países da América Latina foram governados por ditaduras militares. Todas oriundas de golpes de Estado patrocinados pelo imperialismo como reação violenta da agudização da luta de classes em todo o mundo, mas em especial neste continente.
A partir de 1973 a economia mundial entra em novo período de crise. O Brasil sofre os efeitos da crise, agravado pelo endividamento externo, aumento da inflação, desemprego e ampliação das desigualdades sociais.
A luta de classes aquece. O movimento sindical se reorganiza e as greves no ABC adquirem projeção nacional. A ditadura militar a cada dia se torna mais insustentável.
O governo do General Ernesto Geisel, penúltimo ditador de plantão, quando assume em 1974, ainda no auge da repressão, promete uma abertura do regime que se daria de forma lenta, gradual e segura. O último General presidente, João Batista Figueiredo, no seu primeiro ano de mandato sanciona a Lei da Anistia. Ao contrário da propaganda da época, a anistia não foi ampla, nem total, nem irrestrita, pois anistiava os presos políticos, mas não os condenados pela suposta prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal. Contudo, o mais grave é que a Lei da Anistia serviu, sobretudo, para isentar os agentes do Estado que praticaram crimes comuns, como homicídio, tortura, estupro, ocultação de cadáver etc. Assim, ao final da ditadura, nenhum agente do Estado foi responsabilizado pelas atrocidades cometidas.
No início da década de 1980 a luta de classes se intensifica e o PT é fundado como partido operário independente. Em 1983 é fundada a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e em 1984 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Entre 1983 e 1984 o país registra as grandes manifestações pelas Diretas Já, que exigiam o imediato fim da ditadura militar com a eleição direta para presidente da república, o que não ocorria desde 1960.
Porém a Proposta de Emenda Constitucional que determinava eleições presidenciais para 1984 foi derrotada no Congresso Nacional. O primeiro presidente civil, após 21 anos de ditadura militar, foi eleito por um colégio eleitoral no início do ano de 1985. A chapa vencedora, Tancredo Neves (presidente) e José Sarney (vice), foi produto de um grande acordo entre os partidos burgueses e a cúpula militar. Tancredo adoeceu pouco antes da posse e faleceu cerca de um mês depois. Assim, o primeiro presidente civil pós-ditadura era nada mais nada menos que o ex-presidente do PDS, partido de sustentação da ditadura.
O processo de transição foi tutelado pelos militares. A Nova República, período inaugurado pelo governo Sarney, constitui-se em um pacto entre a oposição consentida pela ditadura, os setores de sustentação da própria ditadura e o nascente movimento operário representado pelo PT.
A Assembleia Nacional Constituinte
Através de uma Emenda Constitucional é convocada a Assembleia Nacional Constituinte, que teria a incumbência de elaborar uma nova constituição, concluindo assim a chamada “transição democrática”. A constituinte não foi exclusiva e muito menos soberana, ou seja, os constituintes não foram eleitos exclusivamente para elaborar a constituição. Em vez dela enfeixar os poderes em suas mãos (soberania), o Executivo (Sarney) continuava governando através de decretos, decretos-leis e outros mecanismos da constituição ditatorial. O Supremo modificado pela indicação de ministros em mais de 20 anos de ditadura continuava a garantir a “Lei e Ordem”. A Assembleia Nacional nada mais era do que a composição dos deputados federais e senadores eleitos nas eleições gerais de 1986.
Essa assembleia possuía pouquíssima representação dos trabalhadores. O PT, que na época ainda mantinha certa independência de classe, elegeu 16 deputados e nenhum senador. Lula foi o deputado eleito com a maior votação do país.
Embora tenha ocorrido mobilização popular durante os anos de 1987 e 1988, enquanto perdurou a Assembleia Constituinte, o texto final não resolveu os grandes problemas da classe trabalhadora e dos demais setores explorados, apesar de que muito se tenha falado a respeito do caráter democrático e social da constituição.
Como dito, o fim da ditadura militar no Brasil não foi acompanhado de qualquer responsabilização dos agentes do Estado que praticaram crimes comuns. Nas disposições transitórias apenas ficou definida a ampliação da anistia para o período compreendido entre 1946 a 1988, bem como a possibilidade de ressarcimento dos prejuízos daqueles que foram atingidos pelos atos da ditadura.
O Artigo 142 da Constituição estabelece que “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Normalmente o papel das forças armadas é restrito à defesa nacional, mas o dispositivo permite sua atuação para garantir a própria constituição e a defesa da lei e da ordem.
A partir daí, chega-se a cogitar a possibilidade de intervenção militar diante da crise política do país, argumento semelhante ao utilizado durante o golpe de Estado de 1964. Por essa via, mantém-se a tutela política por parte dos militares.
O direito de propriedade e a reforma agrária
O Estado moderno foi constituído em razão do capitalismo. Tanto no modo produção escravocrata como no feudal, o domínio dos explorados se dava pela força direta sem a necessidade de uma instituição aparentemente neutra para regular as relações de trabalho. Assim, uma das instituições jurídicas mais importantes do Estado Moderno é a propriedade e esta se encontra devidamente garantida na Constituição entre os direitos fundamentais, ou seja, entre as normas de patamar hierárquico mais elevado.
Ao direito de propriedade foi inserida a cláusula da função social, para dar uma aparência menos ofensiva a esse direito. Porém, na prática, pouquíssimas modificações ocorreram nesse direito que é uma das bases fundamentais do capitalismo.
A defesa da propriedade ficou muita clara no capítulo relacionado à reforma agrária. De acordo com o texto, a propriedade rural que não cumprir a função social pode ser desapropriada. Além da desapropriação pressupor a indenização, em outro dispositivo a Constituição proíbe a desapropriação para fim de reforma agrária da propriedade produtiva. Com isso se impede qualquer reforma na estrutura fundiária do país, herança da escravidão.
Os direitos sociais: uma carta de boas intenções
A Constituição elenca uma série de direitos sociais, tais como saúde, educação, moradia, transporte, lazer etc. Além disso, define boa parte dos direitos trabalhistas como fundamentais. A grande lista de direitos leva os mais ingênuos a acreditarem que a efetividade da Constituição elevaria o padrão de vida dos trabalhadores do país.
“De boas intenções o inferno está cheio”. A velha expressão se aplica muito bem à constituição. A regulamentação de certos dispositivos da Constituição sequer foi cogitada. Um exemplo é a proteção do emprego, ao proibir os patrões de demitirem os trabalhadores sem justa causa. Outro é o valor do salário mínimo. De acordo com o DIEESE, o salário mínimo que atenderia os pressupostos constitucionais, no mês de setembro de 2018, deveria estar na ordem de R$ 3.658,39, muito além dos R$ 954,00 em vigor.
Outro ponto que merece destaque é que uma das principais reivindicações da classe trabalhadora também não foi atendida: a jornada de trabalho de 40 horas. A constituinte fixou a jornada em 44 horas semanais.
Além disso, a suposta proteção dos direitos sociais não impediu o ultrarreacionário Congresso Nacional de aprovar em 2017 a contrarreforma trabalhista, que suprimiu direitos históricos dos trabalhadores. Ou seja, foi sob a égide da mais “democrática e social” constituição que se realizou o maior retrocesso em termos de direitos sociais da história da república.
O PT na Assembleia Constituinte
A bancada petista, embora pequena, possuía forte peso político. Olívio Dutra, Florestan Fernandes, José Genoíno, Paulo Paim, Plínio de Arruda Sampaio, além do próprio Lula, estavam entre os deputados constituintes.
Como boa parte das propostas apresentadas pela bancada não foram aprovadas, entre as quais a jornada de trabalho de 40 horas e uma reforma agrária mais abrangente, formou-se um grande movimento no interior do Partido dos Trabalhadores pela não assinatura da Constituição. Mas a direção do partido decidiu por assinar, apenas votando contra o texto final.
Com o passar dos anos e o aprofundamento da política de conciliação de classes, os setores majoritários do PT tornaram-se grandes defensores da Constituição, ou seja, um partido da ordem. Esse pode ser considerado um dos fatores que levaram a extrema direita a ocupar o espaço do inconformismo em relação às instituições.
30 anos depois
Os marxistas não depositam qualquer ilusão no Estado. Marx e Engels escreviam no Manifesto Comunista que “o governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”.
Após 30 anos de sua promulgação a Nova República se dissolve e com ela a própria Constituição. Não tínhamos qualquer ilusão de que uma suposta ordem democrática iria resolver os grandes problemas dos trabalhadores. A Constituição não resolveu, pois sequer implementou os direitos sociais nela contidos e, hoje, as próprias liberdades democráticas estão ameaçadas, como tem demonstrado o Poder Judiciário quando procura assumir o protagonismo político.
Diante da atual crise que corrompe o sistema, o aprendizado dos trabalhadores ocorre com a perda da ilusão nas instituições ditas democráticas pois o verdadeiro progresso civilizatório só será possível a partir do fim do sistema capitalista.