Por gratuidade no ensino para meu colega com renda maior que 30 salários mínimos

Há uma onda de apoio nas redes sociais ao Projeto de Lei do Senado número 782 de 2015, inclusive de muita gente honesta que se reivindica de esquerda. De autoria do senador Marcelo Crivela, a propositura prevê a cobrança financeira em instituições públicas para o estudante cuja renda familiar for superior a trinta salários mínimos.

Há uma onda de apoio nas redes sociais ao Projeto de Lei do Senado número 782 de 2015, inclusive de muita gente honesta que se reivindica de esquerda. De autoria do senador Marcelo Crivela, a propositura prevê a cobrança financeira em instituições públicas para o estudante cuja renda familiar for superior a trinta salários mínimos. Este artigo busca expor porque a proposta é antagônica à concepção de democracia e de educação como direito universal da humanidade.

De um ponto de vista formal, a proposta vai na contramão do que define a Constituição Federal de 1988. A seção que trata sobre a educação começa descrevendo a mesma como um direito de todos. Entretanto, a cobrança financeira para o exercício de tal direito corresponde ao assassinato do princípio republicano da igualdade formal e jurídica. Esse já se encontra ultrajado com o modelo educacional implantado no Brasil. No ensino básico, a estrutura definha diante dos desprezíveis investimentos públicos, precarizando todo ensino ofertado. Isso combinado com taxas de evasão escolar que mantém fora do ensino médio um terço da juventude entre 15 e 24 anos. Já no ensino superior, as vagas são suficientes para apenas 13% da juventude brasileira e, dessas vagas, 90% são ofertadas por instituições privadas.

Essa situação gera indignação em muita gente que sofre para estudar e, especialmente, àquela multidão que vê frustrada sua possibilidade de acesso ao conhecimento. Porém, o que a proposta de Crivela representa é uma restrição ainda maior do conhecimento como um bem universal da humanidade. Contudo, o senador a apresenta com o verniz de “punir os ricos por serem privilegiados na atual sociedade”. Como se o acesso dos filhos das classes dominantes às universidades públicas estivesse ameaçado com um eventual pagamento. Ignorando também o fato de que os filhos da grande burguesia estão majoritariamente em instituições particulares de alto nível ou mesmo em universidades internacionais, não nas universidades públicas brasileiras.

A retrógrada ideia da cobrança pelo conhecimento está ligada a todo um período histórico, no qual o mesmo constituiu não só uma mercadoria, mas também um instrumento político. O controle das informações surgiu com as primeiras formações sociais em classes, atravessou o desenvolvimento das civilizações, viveu períodos áureos – como os mais de 1.200 anos de monopólio da Igreja Católica –, sobreviveu às revoluções burguesas – que pregavam seu fim – e continua vigorando durante o capitalismo.

No Brasil, esse fenômeno ocorre desde o início de sua colonização. Começou 50 anos depois da chegada dos portugueses, com o trabalho da Companhia de Jesus. Depois foi substituído pelo império em 1759. A Primeira República, proclamada em 1889, manteve um modelo elitista e restrito para o ensino. Em meados de 1900, o governo incentivou a oferta de educação para instruir a multidão de trabalhadores analfabetos. Com a subida de Getúlio Vargas ao poder, o ensino público adquiriu caráter de massa, para atender às demandas estruturais do desenvolvimento capitalista. A Ditadura Militar adequou esse quadro aos interesses do imperialismo norte americano. Os governos da Nova República deram continuidade a esse movimento, sob novas formas, explorando o caráter do crédito e usando financiamento público para a oferta privada.

Nessa trajetória, as classes trabalhadoras do Brasil sempre foram – e continuam sendo – assediadas por um ensino voltado para o adestramento técnico profissional. Enquanto isso, os filhos das classes dominantes recebem uma formação geral, tanto técnica como política, com instrumentos para leitura da realidade e constituição de sujeitos capazes de organização e de plena participação social. As atuais instituições brasileiras de ensino de ponta cumprem essa função para as classes dominantes, correspondendo a isso a presença ostensiva de estudantes com renda superior a trinta salários mínimos.

Essa situação decorre da existência objetiva de divergentes classes sociais nas sociedades, que ocuparam papéis diferentes em cada etapa dos distintos modos de produção sociais. O atual regime, capitalista, mantém todas as características que condicionam às relações que se estabeleceram historicamente no que diz respeito à educação. A cobrança pelo acesso a determinados conhecimentos e a existência de toda uma estrutura guiada pela exploração privada da educação no Brasil estão coerentes com esse desenvolvimento.

Uma sociedade pode se considerar verdadeiramente democrática na medida em que garante pleno e completo acesso à informação a todos os indivíduos, sem imposição ou restrição de qualquer forma. Em outras palavras, precisa ofertar educação pública, gratuita e para todos. Isso significa, também, abolir toda e qualquer forma de restrição, como a representada pelo Projeto de Lei do Senado 782/2015, apresentado por Marcelo Crivela.

Porém, a aplicação real – e não apenas formal – de tal princípio pressupõe também a superação efetiva – e não somente abstrata – das condições sociais que sustentam a atual ordem das coisas. Eliminando as classes sociais da atual sociedade e o abismo existente entre os trabalhadores e o conhecimento, seremos capazes de – no mesmo ato – extinguir as bases materiais da obscuridade mística, do conservadorismo e de toda espécie de absurdo ideológico advindo da crise e decadência da civilização atual.

Com essa bússola, acredito que estaremos muito melhor guiados para interpretar as diferentes propostas educacionais que nos são apresentadas. Uma coisa é certa: o Projeto de Lei do Senado 782/2015 representa uma parte de todo o modelo educacional que precisamos abolir.