A economia mundial está mergulhada em uma profunda crise desde 2007. Os burgueses já tentaram de tudo para sair da crise, a partir da quantitative easing [flexibilização quantitativa], passando desde a taxa zero de juros, até a socialização das perdas bancárias, que nada adiantaram. Por que uma versão moderna do Keynesianismo não pode funcionar?
As velhas receitas, baseadas no mantra da globalização, estão em ruínas. Isto está claro para todos que enxergam e torna-se claro não só nas publicações especializadas, como também nos meios de comunicação mais amplamente lidos. O que não se indica com clareza, no entanto, é o que a burguesia tem como alternativa. Isto não se dá por acaso, já que não existe alternativa.
Depois de anos de otimismo panglossiano (otimismo exagerado, em referência ao Dr. Pangloss, personagem de Voltaire – Nota do Editor) sobre o destino do capitalismo, a crise deu um fim, de forma abrupta, a todas as ilusões de um desenvolvimento ininterrupto da economia de mercado. Tudo que fazia parte da história de êxitos da globalização, agora se converteu em seu contrário e se mostra como o fator determinante da crise. Isto é particularmente verdadeiro para a selva financeira que preparou o colapso. Neste artigo, vamos nos concentrar em um aspecto particular da crise política e ideológica da classe capitalista: a vã tentativa de aplicar o Keynesianismo nas condições concretas da crise atual.
Que o capitalismo enfrenta uma crise profunda é algo que agora os Marxistas não precisam mais explicar. As modernas teorias ortodoxas (monetarismo, expectativas racionais, hipótese do mercado eficiente e assim por diante) estavam baseadas na ideia de que o laissez-faire (expressão-símbolo do liberalismo econômico, pode ser traduzido como “deixem fazer” – NdoE) e as desregulações eram tudo o que a economia mundial necessitava para se desenvolver. Deixemos as grandes corporações governarem o mundo sem que o estado lhes criem obstáculos e os mercados ajustarão tudo e tudo andará bem. Neste sentido, como Keynes assinalou, Jeremy Bentham [filósofo britânico, 1748-1832] usou a expressão ‘laissez-nous faire’ (deixem-nos trabalhar), o que, na verdade, soa completamente diferente e mais claro que laissez-faire apenas.
Na época, a classe capitalista estava fortalecendo seu controle sobre as forças produtivas e não queria que o velho Estado absolutista se interpusesse no seu caminho. Esta ideia, poderosa contra as velhas monarquias, já era uma relíquia inútil no tempo de Keynes. Desde então, mais de uma vez, a ideologia do laissez-faire veio abaixo junto à economia mundial. Todas as graves crises do capitalismo forçaram os estrategistas burgueses a repensar os dogmas que usavam para explicar a realidade. Quando o capitalismo tem uma fase de expansão, não importando como ela se dá, reina o otimismo descerebrado: as coisas estão funcionando e não há obstáculos no caminho. Quando o capitalismo se vê bloqueado, os estrategistas burgueses são obrigados a buscar alternativas, e este foi o significado do Keynesianismo. A questão atual é: pode-se encontrar hoje uma nova forma de Keynesianismo, que ofereça à burguesia algum tipo de política alternativa para manter o sistema funcionando?
O Keynesianismo original
Keynes era um dos produtos mais típicos da burguesia britânica. Nascido em Cambridge, filho de um professor de Cambridge, educado em Eton, trabalhou na Índia no interesse do Império Britânico e, em seguida, como funcionário do Tesouro. Como teórico, sua mais importante contribuição foi a de destruir os dogmas do velho laissez-faire após a I Guerra Mundial e durante a Depressão dos anos 1930. Ele nunca se interessou realmente em desenvolver uma explicação coerente de como o capitalismo funciona, embora o tenha tentado fazer, especialmente com o seu Teoria Geral, em 1936. A questão para ele era sempre uma questão prática: forçar a classe capitalista a entender a realidade da grande crise em que estava imersa. Nas páginas introdutórias da Teoria Geral, Keynes aclara este objetivo: persuadir os economistas da corrente predominante a reexaminar a teoria econômica e mudar de direção. Já muitos anos antes, Keynes tinha chegado à conclusão de que o pensamento econômico ortodoxo tinha fracassado: “Os economistas colocam para si mesmos uma tarefa demasiado fácil, demasiado inútil, se, em tempos tempestuosos eles somente podem nos dizer que depois da tormenta o oceano fica calmo novamente” [[i]]. Se não são capazes de estabelecer uma nova tendência, são inúteis como assessores burgueses e deviam ser marginalizados, como aconteceu nos anos 1920 e 1930.
Keynes teve êxito em seus esforços para mudar o curso porque a burguesia não tinha outra escolha senão seguir seu conselho de rejeitar as velhas ideias anteriores à crise. Não vamos tratar aqui da questão de como e se o Keynesianismo, por si mesmo, foi útil na superação do Crash de 1929. Vamos nos limitar apenas a assinalar que a reorganização ideológica foi profunda e de longa duração. Isto se deu porque Keynes interpretava uma nova etapa do desenvolvimento capitalista.
Esta mudança irreversível do capitalista significa que criticar a intervenção estatal como se o capitalismo fosse o mesmo como nos dias de Adam Smith era um disparate. A socialização das forças produtivas se havia desenvolvido enormemente; e, desta forma, um capitalismo sem regulações simplesmente não era mais possível. Os velhos mecanismos automáticos, como o padrão ouro, não podiam funcionar mais. De uma forma ou de outra, o estado teria que tomar a iniciativa. Este é o coração, o núcleo, do Keynesianismo.
As receitas práticas individuais do Keynesianismo oferecidas aos governos (redução das taxas de juro, o gasto deficitário e outras) ajudaram somente até certo ponto. O verdadeiro ponto do Keynesianismo era o de superar a contradição entre os interesses dos capitalistas individuais e os da classe capitalista como um todo; salvar o sistema capitalista de suas próprias contradições. Abraçar a intervenção estatal, explicava Keynes, não era o fim da burguesia; pelo contrário, era a única forma viável de salvar o capitalismo.
Indubitavelmente, esta nova etapa implicou em uma importante reorganização intercapitalista. No capítulo final da Teoria Geral, chamado famosamente de “Notas Finais sobre a Filosofia Social para a qual a Teoria Geral pode Conduzir” [[ii]], Keynes é bastante radical em suas opiniões. Ele começa afirmando: “as falhas pendentes da sociedade econômica na qual vivemos são sua falha em prover pleno emprego e sua distribuição arbitrária e desigual da riqueza e da renda”. Keynes sustentava que o capitalismo tinha melhorado sobre estes problemas, mas só até certo ponto e que para sobreviver o capitalismo necessitava da “eutanásia do rentista”, que é a redução do poder da renda financeira através de impostos mais elevados, taxas de juro mais baixas e assim por diante. Secundariamente, ele sustentava que o investimento deve ser socializado na medida em que seja necessário para o pleno emprego. Isto não implica uma economia estatal, no entanto:
“Não é a propriedade dos instrumentos de produção que é importante para o Estado assumir. Se o Estado pode determinar o valor total dos recursos destinados a aumentar os instrumentos e a taxa básica de recompensa para quem seja o dono, terá realizado tudo o que é necessário. Além disso, as medidas necessárias de socialização podem ser introduzidas gradualmente e sem uma ruptura nas tradições gerais da sociedade”.
Esta ideia parecia muito radical, mas foi porque o capitalismo não tinha nenhuma alternativa: a socialização do investimento pelo Estado é somente um reflexo da tendência histórica em direção à socialização das forças produtivas, que o capitalismo acarreta. Portanto, estas ideias são compatíveis com uma ampla variedade de formas políticas. Tanto o fascismo quanto a socialdemocracia clássica promoveram enormes intervenções estatais na economia e procuraram o pleno emprego, pelo menos em seus programas. Portanto, o Keynesianismo pode ser a teoria econômica básica de agendas políticas muito diferentes, desde que delimitado pelas fronteiras do sistema capitalista.
Os méritos científicos de Keynes
Ao criticar os elementos débeis da escola clássica (Smith, Ricardo etc.), Marx levou este marco teórico as suas conclusões lógicas mostrando a inevitável luta de classes que emerge sob o capitalismo. Isto significava que a velha teoria não era mais útil para promover o domínio da burguesia. Dessa forma, depois da Comuna de Paris, ela foi substituída por outra, a chamada “revolução marginal”, uma ideia surgida em meados do século XIX. A mais importante característica teórica deste novo paradigma era que estaria supostamente baseada no indivíduo. É uma teoria microeconômica.
De acordo com esta teoria, nada existe se não se pode justificar por razões individuais. A dinâmica da sociedade e da economia deve ser explicada e remontar-se às ações dos indivíduos (“individualismo metodológico”). Esta é uma abordagem completamente inútil na medida em que as metas do indivíduo mudam completamente quando colocadas juntas, em escala social. Por exemplo, para o capitalista individual, reduzir os salários para elevar os lucros é uma boa ideia, mas quando todos os capitalistas reduzem os salários, o mercado entra em colapso e os lucros vêm abaixo. Da mesma forma, se um trabalhador aceita fazer horas extras para elevar sua renda é bom para ele, mas se todos os trabalhadores fizerem horas extras, o desemprego sobe e os salários vêm abaixo para todos. De forma ainda mais clara, a dinâmica tecnológica do capitalismo se baseia sobre este aspecto contraditório. O capitalista individual investe para reduzir custos, ganhar cotas de mercado e obter lucros, mas quando a inovação se generaliza, os lucros caem novamente. Incapaz de entender a diferença entre a lógica individual e o resultado social de uma ação, a moderna economia burguesa é inútil para explicar os mecanismos do capitalismo; nem é usada para este fim.
O mérito de Keynes foi o de partir desta contradição e reintroduzir na teoria econômica a análise da sociedade como um todo. Isto é vital, particularmente para se entender as crises. Isto mostra que, no longo prazo, é inútil reduzir salários para aumentar os lucros como se estivéssemos considerando empresas isoladas, como explicou Keynes. Isto também é verdadeiro quando analisamos o investimento. O capitalista individual deve normalmente poupar antes de investir, mas para a economia, tomada globalmente, as poupanças são criadas a partir do investimento. De passagem, podemos ver como as chamadas “medidas de austeridade” presentes se originam da confusão entre microanálise e macroanálise. Seja como for, Keynes enfatizou a dimensão social: desemprego, investimento e consumo. A partir desta análise agregada, vem a explicação teórica da crise. Naturalmente, as medidas práticas para combater a crise são muito anteriores a Keynes; ele apenas proporcionou um adorno teórico para o que muitos governos já vinham fazendo, embora muitos se recusassem a intervir seguindo a “Visão do Tesouro”, isto é, que a política fiscal não tinha nenhum efeito geral sobre a atividade econômica, uma ideia sustentada em particular pelo Tesouro Britânico.
Keynes também foi responsável pela introdução na teoria econômica de certo número de conceitos subjetivos (espírito animal, o estado das expectativas, o mecanismo de concurso de beleza e assim por diante). Isto não foi por acaso. A concentração de capital, a fusão do capital industrial e bancário, a separação dos capitalistas de qualquer papel direto na produção, e o crescente papel do Estado (isto é, as características básicas do capital financeiro), também significaram a completa subjetivação da teoria econômica. Todos estes conceitos foram utilizados para estimar o ciclo de investimento, que é o motor da dinâmica capitalista.
A decisão de investir depende da perspectiva de um retorno. Lucros futuros, por sua própria natureza, sempre foram incertos. Mas, no século 20 a concentração de capital havia crescido a tal grau que um único investidor poderia desempenhar um grande papel no mercado – grandes monopólios têm poder de mercado. Além disso, a diferenciação, no seio da burguesia, entre rentistas puros e gestores, também se refletiu na teoria econômica no peso cada vez maior concedido aos aspectos psicológicos em detrimento das estruturas objetivas.
No frigir dos ovos, o capitalismo se desenvolve se os capitalistas investem. Mas a lógica do capitalismo, com a concorrência entre os capitalistas reduzindo salários para aumentar os lucros, cria uma contradição fundamental: a contradição da superprodução, na qual a classe trabalhadora não pode se permitir comprar de volta as mesmas mercadorias que o capitalismo produz. Produção – e, portanto, também o investimento – se paralisa à medida em que as mercadorias ficam invendáveis. Quando as coisas vão mal, o Estado deve investir diretamente de forma que a economia possa se recuperar e os capitalistas privados possam se manter de pé. É disto que se trata o Keynesianismo. Ferramentas específicas constituem um problema menor em comparação ao papel de salvar a burguesia das contradições de seu próprio sistema.
Também vale a pena assinalar que a concentração de capital e a trustificação da economia também produziram um debate em torno da planificação social, à medida em que as empresas gigantes requerem a planificação para sobreviver e o instinto do capitalista não é mais suficiente [[iii]].
De todas estas teorias, Keynes extraiu certo número de instrumentos específicos. Como dissemos, seria um erro reduzir o Keynesianismo a um conjunto específico de medidas econômicas. No entanto, é tradicionalmente associado a um certo número de políticas. Podemos dividir estas políticas em quatro áreas principais: política fiscal, política monetária, política industrial e regulação financeira. Tentaremos mostrar porque nenhuma delas pode funcionar agora.
Os quatro pilares do Keynesianismo
O primeiro e mais relevante conjunto de medidas ligadas ao Keynesianismo é o das políticas fiscais que devem ser usadas com dois objetivos principais em mente: distribuição da renda e gasto público. Em poucas palavras, a ideia é taxar os ricos para haver uma distribuição mais igualitária da renda e para aumentar os recursos para a construção do estado do bem estar. Na medida em que os trabalhadores gastam mais ou menos toda sua renda, taxar os ricos significa um incentivo ao consumo. De fato, nos EUA, a taxa impositiva máxima alcançou 91% nos anos 1940. Taxas similares prevaleceram na Europa. Na época, a política fiscal foi verdadeiramente um meio de redistribuição da renda às pessoas mais pobres. Este não é mais o caso hoje. A partir dos anos 1980, as políticas fiscais mudaram de tal forma que os impostos dos trabalhadores subsidiam as empresas através de certo número de meios legais e semilegais, revelando que, como afirmou Marx, a luta fiscal é parte da luta de classes – e a mais antiga. Essa completa reversão na política fiscal está profundamente ligada às necessidades vitais do capitalismo. Não é somente uma questão de baixa rentabilidade, mas da forma como os governos tentaram escapar disto durante décadas: na forma de uma crescente dívida. Estamos na época da dívida e há pouca margem para uma política fiscal forte e ativa como explicamos anteriormente [[iv]]. Ver o gráfico a seguir:
É evidente que o aumento da dívida é algo muito anterior à crise. Está ligado ao declínio histórico do capitalismo. É isto que torna a política fiscal menos efetiva, e não uma fixação ideológica de políticos “neoliberais”. Desnecessário dizer, no entanto, que a crise piorou a situação dramaticamente, na medida em que a administração dos EUA foi forçada a usar centenas de bilhões de dólares para salvar os grandes bancos:
“Desde o início da crise financeira, os níveis de dívida pública dos países industriais aumentou espetacularmente. E vão continuar aumentando no futuro (…). Nossas projeções das proporções da dívida pública levam-nos a concluir que o caminho empreendido pelas autoridades financeiras em alguns países industriais é insustentável. Medidas drásticas são necessárias para controlar o crescimento rápido dos passivos atuais e futuros dos governos e para reduzir suas consequências nefastas para o crescimento e estabilidade monetária no longo prazo” [[v]].
No contexto deste desequilíbrio estrutural, a política fiscal expansionista somente serve para adiar o problema, e o piora no longo prazo. Nas décadas anteriores à crise, deixando de lado toda a conversa fiada ideológica sobre a necessidade de o Estado se retirar da economia, seu peso global nos países desenvolvidos não mudou muito.
A reação da direita contra a intervenção estatal, contudo, tinha um propósito do ponto de vista burguês. No geral, o Estado não produz nada, por isso é um fardo sobre a economia. O problema é que quanto mais se desenvolve o capitalismo menos este é capaz de operar sem intervenção estatal. O processo de concentração do capital e de financialização da economia se reflete neste permanente papel do Estado. Depois de um quarto de século da chamada globalização do livre mercado, o gasto público e as dívidas públicas não se reduziram. A ideia de que a desregulação do tipo Thatcher-Reagan desfaz o papel do Estado é um produto da imaginação burguesa, como mostra o gráfico abaixo [[vi]]:
Está claro que privatizações, desregulações, monetarismo e assim por diante eram na verdade uma tentativa de limitar a queda da rentabilidade à custa da classe trabalhadora. A dívida pública e a dívida como um todo nunca foram seriamente reduzidas. Este fato é uma clara indicação da crescente natureza parasitária do capitalismo que os fanáticos do laissez-faire não podem reverter. Um homem de 70 anos de idade pode se vestir como um adolescente e ir às discotecas fingindo ser jovem, mas não enganaria ninguém.
O peso total da despesa pública na economia não mudou significativamente, mas seu papel mudou consideravelmente. Os capitalistas queriam que os trabalhadores pagassem e toda a política econômica foi construída em torno disto. O que mudou foi a direção da intervenção do Estado: seus recursos foram cada vez mais utilizados para aumentar a lucratividade, e não para proporcionar serviços públicos. Isto é verdade para todas as políticas estatais, a começar pelo sistema de tributação.
Agora, os economistas Keynesianos se queixam de que isto é uma loucura, que é injusto e que contribuiu para o desastre. Sim, é injusto usar os impostos dos trabalhadores para ajudar grandes empresas; sim, é uma loucura baixar os salários de forma direta ou indireta numa situação de excesso de capacidade produtiva, mas há um método nesta loucura. Para garantir um futuro ao capitalismo, os governos tiveram que elevar a taxa de lucro por todos os meios possíveis. Não tem sentido, portanto – como fazem os reformistas de esquerda –, se queixar das consequências desagradáveis desta necessidade vital da burguesia, se não se está disposto a lutar contra o capitalismo como um todo.
Como vimos, o Estado não desapareceu da economia mesmo no período da euforia do “livre mercado”, mas quando a crise golpeou, isto levou a um grande aumento de sua intervenção. Por exemplo, nos EUA:
“O equilíbrio do orçamento federal como percentagem do PIB caiu de um excedente que tinha alcançado 3% do PIB, em 2000, a um déficit de 3,6% do PIB, em 2003, um aumento surpreendente do endividamento de 6,6% do PIB – ou cerca de 700 bilhões de dólares – em apenas três anos, um enorme subsídio adicional à demanda agregada. No mesmo intervalo, as autoridades econômicas dos EUA acolheram uma importante desvalorização do dólar, cuja efetiva taxa de câmbio real declinou em 8% (embora a queda do dólar contra os principais parceiros comerciais da Ásia foi mais limitada). No total, isto foi um incitamento a um crescimento econômico sem precedentes na história dos EUA, exceto em tempo de guerra” [[vii]].
Mas todas essas medidas tiveram êxito? Se êxito significa evitar o colapso imediato do capitalismo, a resposta é sim. Contudo, a situação está longe de ser estável e novas contradições se acumularam no coração do sistema. O Estado, as empresas privadas, os bancos e as famílias estão todos afogados pela dívida; e usar a política fiscal para adiar os problemas é de fato muito perigoso.
Política monetária e inflação
Esta explosão da dívida também afetou a política monetária. No esquema Keynesiano, a política monetária tem dois objetivos principais: promover o investimento e reduzir os salários. O primeiro objetivo é óbvio: quanto menor a taxa de juro, maior o investimento, desde que tudo o mais permaneça igual. O problema é que ninguém se interessa em investir onde há excesso de capacidade e dinheiro barato pode produzir enormes problemas de excesso de capacidade, lição esta que o Japão aprendeu da maneira mais dura.
Depois de vinte anos de política de taxa zero, retornou o Japão ao alto crescimento? De forma alguma, como já explicamos muitas vezes [[viii]]. O novo governador do Banco do Japão, Kuroda, anunciou agora um pacote sem precedentes de estímulo envolvendo a compra de títulos do governo na escala de mais de 500 bilhões de dólares por ano. Isto, sem dúvida, oferecerá mais alguns meses de alívio; mas, e depois, o que acontecerá?
Durante os últimos 20 anos eles tentaram todo tipo de políticas de estímulo, mas não adiantou de nada. A política de taxa zero, a flexibilidade quantitativa, os vinte pacotes de estímulos e a desvalorização nada produziram! Depois de todos estes anos, a dívida pública do Japão é agora a maior do mundo (mais de 250% do PIB). Isto significa que de 20 a 25% do gasto governamental já são destinados a pagar a dívida. Bastaria as taxas subirem a 2-3% para que todo o orçamento seja gasto em juros da dívida. Em outras palavras, não há mais liberdade para se elevar as taxas de juro.
O que ontem era verdade para o Japão, hoje é, em maior ou menor escala, verdade em toda parte. Cada banco central reduziu as taxas de juro para mínimos históricos e comprou toneladas de dívida pública. Vejamos os EUA: o FED compra mais de 500 bilhões de dólares de títulos do Tesouro de um ano. Ele já possui 1,86 trilhões de dólares em títulos do Tesouro. Isto representa um sexto da dívida pública dos EUA e está crescendo. Isto significa que, se o FED fosse um país, poderia estar entre os dez maiores países do mundo em termos de PIB.
As coisas estão indo tão mal que os bancos centrais estão pensando o impensável: o estabelecimento de taxas de juro negativas. Por exemplo, o Banco da Inglaterra poderia decidir que os bancos paguem por acumular o dinheiro da Old Lady [a Velha Senhora, a Inglaterra]. Escusado dizer que, “introduzir uma taxa negativa de juro no Reino Unido seria um significativo passo à frente, e um passo sem muitos precedentes” [[ix]]. Na Dinamarca, esta estranha ideia já é um fato e também o Banco Central Europeu está pensando em cobrar dos bancos que mantêm o dinheiro ocioso [[x]]. A situação é séria porque o “coeficiente do serviço da dívida está agora em 13,6%, que é também o mais alto nível de todos os tempos. E isto ocorre com as mais baixas taxas de juro em 50 anos” [[xi]]. A situação, em muitos aspectos, é pior que nos anos 1930:
“A comparação com 1929 acende todos os sinais de alarme. Em 1929, havia muito pouca dívida familiar na economia dos EUA. A dívida das empresas em relação ao lucro era aproximadamente a metade do que é hoje. E, naturalmente, não havia nenhuma dívida externa – os EUA eram credores líquidos do mundo em 1929” [[xii]].
O crescimento sem fim da dívida significa que os bancos centrais já não são livres para definir as taxas de juro. Pelo contrário, estão sendo empurrados cada vez mais para o canto e se tentarem escapar, aumentando as taxas de juro, tudo poderia desmoronar como um castelo de cartas. Acabou-se a política das taxas!
Os bancos centrais estão agora tão assustados com suas próprias políticas que estão tratando de se agarrar à única âncora real: o ouro. No ano passado, compraram a maior quantidade de ouro desde 1964 e agora são proprietários de aproximadamente 19% de todo o metal extraído das minas [[xiii]].
Mas, na prática, as políticas fiscal e monetária do Keynesianismo provocaram desagradáveis efeitos secundários na forma de inflação. O gasto governamental prolongado sobre os serviços públicos, infraestrutura e armamentos – tudo em nome da “gestão da demanda” – era uma política inflacionária, isto é, dinheiro que não existia foi gasto (e, no caso da produção armamentista, sem criar qualquer aumento correspondente de valor em circulação). Esta inflação chegou aos anos 1970 precipitada pela crise do petróleo de 1973-74. Os fenômenos inéditos de estagflação emergiram: recessão econômica acompanhada de alta inflação – algo que os Keynesianos tinham negado anteriormente podia acontecer, uma vez que a falta de demanda em uma recessão deve colocar uma pressão descendente sobre os preços.
Para a classe trabalhadora, esta inflação alta significa uma redução real nos salários. Apesar das muitas lutas amargas por parte dos sindicatos para o aumento dos salários combinado ao aumento dos preços, os salários não poderiam se manter com a inflação. Para os capitalistas, a inflação criou incerteza e instabilidade – tanto econômica quanto política, na forma de greves etc. Daí a virada em direção às políticas anti-inflacionárias – para o “lado da oferta” –, políticas monetárias na forma de thatcherismo e reaganismo. No entanto, para que tais políticas funcionassem, os capitalistas necessitavam controlar os sindicatos e reduzir os salários em favor dos lucros.
Este truque foi compreendido de início pelo movimento dos trabalhadores. Já podemos constatar isto na Plataforma da Internacional Comunista (1919):
“As lutas dos trabalhadores por aumentos salariais, mesmo onde têm êxito, não resultam no aumento previsto do nível de vida, porque o aumento dos preços de todos os bens de consumo cancelam quaisquer ganhos. As condições de vida dos trabalhadores somente podem melhorar quando a produção for administrada pelo proletariado em vez da burguesia” [[xiv]].
A depressão de 1929 afastou a inflação como ameaça imediata, mas quando a II Guerra Mundial se aproximava as coisas mudaram e Trotsky, no Programa de Transição, explicou como se combater seriamente a inflação:
“Nem a inflação monetária nem a estabilização podem servir de palavras de ordem ao proletariado, pois são as duas faces da mesma moeda. Contra a carestia de vida, na medida em que a guerra for se aproximando, adquirirá um caráter cada vez mais desenfreado, só se pode lutar com a palavra de ordem de escala móvel de salários. Os contratos coletivos devem assegurar o aumento automático dos salários, correlativamente à elevação dos preços dos artigos de consumo” [[xv]].
Na presente época de alto desemprego estrutural e de excesso de capacidade, muitos Keynesianos estão novamente relaxando sobre os riscos de inflação; mas com as enormes quantidades de dinheiro que estão sendo bombeadas no sistema na forma de quantitative easing [flexibilização quantitativa], a ameaça de inflação permanece no caso de que este dinheiro encontre seu caminho, para além dos bancos, na economia em geral. Devemos também acrescentar que, quanto mais o capital financeiro domina a economia mundial, menos palatável a inflação é para a classe dominante, na medida em que o capital financeiro deriva seus lucros do crédito e dos ativos financeiros, que são afetados negativamente por ela.
Política industrial
Necessitamos de uma política industrial! Este é o mantra de todo político de “esquerda” desde o início da crise. No apogeu do Keynesianismo, o estado controlava diretamente um grande pedaço da indústria e dos serviços públicos básicos, como transporte e energia, mas também a indústria do aço e assim por diante. Devemos nos perguntar primeiro porque isto não é mais o caso.
Keynes afirmou:
“A mais importante Agenda do Estado não diz respeito às atividades que indivíduos privados já estão cumprindo, mas àquelas funções que estão fora da esfera do individual, àquelas decisões que não são tomadas por ninguém, se o Estado não as toma. O importante para o governo não é fazer coisas que os indivíduos já estão fazendo, e fazê-las um pouco melhor ou um pouco pior; mas realizar as coisas que na atualidade não se realizam em absoluto” [[xvi]].
Quando Keynes propôs socializar parcialmente o investimento, estava expressando um fato histórico que o Marxismo tinha explicado muito antes dele: desenvolvimento capitalista significa uma crescente socialização das forças produtivas. Contudo, embora necessário, o envolvimento direto do Estado na produção cria um problema para o capitalismo. Seja porque administre empresas fortes, subtraindo lucros dos capitalistas privados, seja porque administre empresas em quebra, mediante impostos para mantê-las em funcionamento. Em ambos os casos, os capitalistas não estão felizes. Esta é a contradição básica do Keynesianismo enquanto política industrial. Na época dourada do pós-guerra, isto não era muito importante por diversas razões. Os lucros eram bons e os capitalistas necessitavam do estado para reconstruir suas indústrias. Em terceiro lugar, o estado foi usado para administrar setores que não eram rentáveis em si mas que rendiam lucros para outros. Nesse momento, a burguesia podia aceitar o óbvio argumento teórico de que as indústrias que são monopólios naturais devem ser de propriedade estatal, uma vez que a concorrência não é possível em tais casos. Esta intervenção direta de longo prazo por parte do estado criou uma espécie de planificação capitalista com agências estatais, planos multianuais e assim por diante. Esta foi a era da “planificação indicativa”, como a chamavam os franceses. Nos países desenvolvidos, a planificação foi até mais importante, uma vez que tiveram de construir a indústria a partir do zero [[xvii]].
Logo veio a crise dos anos 1970, o colapso de Bretton Woods, a crise do petróleo e luta de classes em ascensão. Os lucros estavam caindo, com o estado sendo forçado por todos os lados a salvar empresas privadas por razões de emergência, e não por qualquer plano preconcebido, e as finanças públicas agravadas para o exercício. Nos anos 1980, embora houvesse uma recuperação, a taxa de lucro não retornou à da era dourada dos anos 1950 e início dos anos 1960. Os capitalistas estavam desesperadamente buscando formas de fazer dinheiro fácil. Isto explica porque o estado foi forçado a liquidar seus melhores ativos para capitalistas privados. Uma liquidação generalizada era um conselho que nenhum governo poderia recusar e basicamente tudo foi privatizado. Setores econômicos inteiros foram desmantelados e liquidados. Mas as finanças públicas não melhoraram nem um pouco por estes meios; muito pelo contrário.
O principal ponto que devemos compreender é que o processo de privatização não foi o resultado de algum tipo de ódio ideológico para com as empresas estatais. A questão é muito simples: privatização é um componente básico da restauração da taxa geral de lucro, como o são também a grande redistribuição da renda em favor do rico e a destruição do estado do bem-estar-social. Os capitalistas não estão mais em posição de permitir que um setor rentável seja administrado publicamente; necessitam ocupar qualquer espaço econômico possível para sobreviverem; não podem permitir salários elevados e bons serviços públicos. Básica e literalmente necessitam fazer lucros de tudo, da água à saúde, das escolas às rodovias. É por isto que uma política industrial orgânica nos países ocidentais está hoje descartada.
Mesmo quando o estado é forçado a salvar empresas privadas, isto não envolve uma verdadeira “intervenção” se excluirmos o dinheiro em si que é entregue aos empresários. No passado, depois de ter nacionalizado um banco, por exemplo, o estado enviaria seus funcionários para estabelecer uma nova estratégia, o conselho diretor seria demitido e assim por diante. Nada do tipo acontece agora. Tomemos o banco gigante RBS, nacionalizado em 2008. Após cinco anos, o que mudou em sua forma de operar? Nada! Nem mesmo no que se refere ao escândalo dos bônus dourados [[xviii]]. O RBS não é diferente do Barclays ou do HSBC, e de outros grandes bancos. Seu caráter estatal não muda nada. De fato, a coalizão de governo Lib-Com está pensando em criar outro banco para financiar Pequenas e Médias Empresas porque não pode usar o RBS para fazer isto. Os grandes bancos dos EUA, salvos pelo governo com o TARP (o “programa de resgate de ativos problemáticos”), se apressaram a pagar ao estado para se verem livres mesmo das condições suaves que vêm com o programa. Mais uma vez, vemos como este aspecto do Keynesianismo também não pode ser aplicado nas atuais condições.
A regulação financeira e a financialização da economia
O quarto elemento do ideário Keynesiano foi a regulação financeira, um conjunto de fortes controles sobre o sistema financeiro, em consequência da crise dos anos 1930. Em primeiro lugar, o setor bancário foi estritamente dividido entre bancos comerciais e bancos de investimento (com o Glass-Steagal Act, nos EUA e leis similares em outros lugares). Em segundo lugar, em muitos países, o setor bancário foi principalmente estatizado (Itália, França), ou tão fortemente regulado pelo estado, que o resultado foi o mesmo: a banca se tornou uma atividade estável e previsível. Nos EUA, durante 30 anos esta indústria era tão previsível, que os observadores descreveram-na como operando de acordo com a regra 3-6-3: os banqueiros juntos depositavam 3%, tomavam emprestados 6% e iam jogar golfe às 3 horas da tarde. Os estritos controles sobre o fluxo de capital e as taxas de câmbio fixas faziam parte da estrutura. Os resultados foram bons: as crises financeiras, que eram parte inevitável da paisagem durante séculos, desapareceram:
“Até a Grande Depressão, as grandes crises golpeavam aproximadamente a cada 15-20 anos – 1792, 1797, 1819, 1837, 1857, 1873, 1893, 1907, e 1929-33. Mas, então, as crises pararam. De fato, os EUA não sofreram outra grande crise financeira durante exatamente 50 anos – de longe o maior período na história da nação. Embora houvesse muitas razões para isto, é difícil ignorar o papel ativo do governo federal na administração de riscos financeiros” [[xix]].
É simplesmente muito fácil para um economista Keynesiano observar como era estável a situação na era da regulação financeira, e lamentar a situação atual. O forte controle estatal era algo que o capital financeiro poderia se permitir em uma época de extraordinário crescimento econômico. Depois do colapso de Bretton Woods, da crise dos anos 1970 e assim por diante, a regulação financeira foi desmantelada peça por peça. As taxas de câmbio se tornaram flexíveis, os controles de capital foram demolidos, e o Glass-Steagal Act foi abolido (diga-se de passagem, por um presidente Democrata). Desregulação, auto-regulação, a regulação epidérmica, todo tipo de políticas em favor dos bancos foram adotadas. O grande peso dos bancos e das finanças sobre a economia mundial começou a crescer. Fusão após fusão criaram bancos tão grandes que, em 1984, o termo “grande demais para falir” foi cunhado para descrever esta nova situação. Quando este termo foi inventado nos EUA, um só banco tinha ativos totais de mais de 3% do PIB. Em 2007, havia nove desses bancos – e isto na primeira potência econômica do mundo. Nos países da União Europeia, a situação se tornou uma farsa, com alguns bancos maiores que o país que os hospedava, de modo que, agora, é bastante óbvio que o país é refém de seus grandes bancos. A Islândia e Chipre vêm à mente. O peso do setor bancário cresceu em nível sem precedentes [[xx]]:
Como observado por Crotty:
“O valor de todos os ativos financeiros nos EUA cresceu de quatro vezes o PIB, em 1980, a dez vezes o PIB, em 2007. Em 1981, a dívida familiar era de 48% do PIB, enquanto em 2007 já era de 100%. A dívida do setor privado era de 123% do PIB, em 1981, e 290% no final de 2008. O setor financeiro está em frenesi de alavancagem: sua dívida aumentou de 22% do PIB, em 1981, a 117% no final de 2008. A participação dos lucros corporativos gerados no setor financeiro aumentou de 10%, no início dos anos 1980, a 40%, em 2006, enquanto sua cota de valor no mercado de ações cresceu de 6% a 23%” [[xxi]].
Parte dessa loucura foi a colossal bolha imobiliária, que, no geral, foi a maior bolha da história.
Visto que o equilíbrio de forças entre capitalistas é estabelecido pelos lucros, o melhor quadro da dominação financeira sobre a economia mundial é dado pela distribuição dos lucros. Embora os bancos empreguem uma pequena fração do total da força de trabalho, atualmente eles levam entre um terço e a metade dos lucros totais [[xxii]].
A decadência crescente do capitalismo significa o peso crescente do capital financeiro. Entender esta tendência é a chave para se entender o capitalismo hoje, incluindo a impossibilidade de trazer os bancos de volta à regulação financeira. Os estrategistas burgueses não lidam com esta questão, como observamos quando olhamos para o documento do FMI acima citado.
A questão está clara: a dívida (ou o crédito) é a única ferramenta que o capitalismo encontrou para deter uma crise que resulta de suas próprias contradições internas: a queda anterior na taxa de lucro dos setores desenvolvidos, superprodução e baixo crescimento econômico. Embora a rentabilidade das empresas tenha se recuperado na década de 1980, devido a um certo número de razões que já explicamos muitas vezes, isto só foi obtido com uma enorme e crescente expansão do crédito, isto é, da dívida. A dívida foi necessária para fazer as coisas se moverem. Esta foi mais uma ajuda aos grandes bancos para tomar o comando da economia mundial.
Primeiramente, eles conseguiram se livrar de qualquer controle público sério (“desregulação”). Em segundo lugar, os supervisores públicos (bancos centrais etc.) foram aconselhados – pelos políticos e pelos próprios bancos – a cuidar de seus próprios negócios, chegando à farsa de aceitar os próprios métodos dos bancos de calcular os riscos de suas atividades (o chamado acordo “Basel 2”). A inovação financeira, isto é, a criação de todo tipo de derivativos estranhos para fazer dinheiro, floresceu.
Alguém poderia pensar que os estrategistas sérios teriam antecipado o colapso deste gigantesco cassino de cartões financeiros. Pelo contrário, uma orgia de otimismo foi celebrada. Greenspan & Cia eram os heróis do dia. Um pouco antes de tudo vir abaixo, Greenspan explicou em sua autobiografia: “Eu diria ao público que estávamos diante não de uma bolha, mas de uma espuma – muitas bolhas pequenas, localizadas, que nunca cresceriam a uma escala que pudesse ameaçar a saúde da economia global” [[xxiii]]. Quão inteligente, de sua parte!
Era fácil de se ver, há uma década atrás, como, quanto mais o sistema financeiro era desregulado, mais ficava propenso a produzir ciclos de bolha-colapso, com crises que eram cada vez mais frequentes e maiores, até que tudo explodiu em 2008. Algumas vozes tímidas de dissenso começaram a se fazer ouvir um pouco antes da crise:
“Existem sérias reservas quanto à sustentabilidade do processo da financialização. As duas últimas décadas foram marcadas por um aumento rápido da razão dívida-renda das famílias e da razão dívida-patrimônio líquido das empresas. Esses desenvolvimentos explicam tanto o crescimento do sistema quanto o aumento da fragilidade, mas também indicam a insustentabilidade da dívida porque seus limites devem eventualmente ser alcançados” [[xxiv]].
Este dissenso passou despercebido. Então, de repente, todos os bancos centrais, todos os economistas, e todos os responsáveis políticos acordaram para a realidade: os grandes bancos estavam colocando o capitalismo mundial em risco. Correram para voltar à regulação dos bancos e toda uma série de novas regras estão sendo discutidas ou já foram adotadas.
E, no entanto, nada mudou significativamente, porque nada poderia mudar realmente. Os bancos não estão arruinados porque seus altos administradores são vorazes. O capitalismo dos dias modernos não pode funcionar mesmo com banqueiros que não sejam vorazes ou loucos por lucros. Nenhuma quantidade de novas regras mudará isto. Pelo contrário, se forçarem os bancos a se tornarem mais prudentes, cortando seus lucros, vão empurrá-los a comportamentos ainda mais arriscados, posteriormente.
Os grandes bancos consideram as novas regulamentações um aborrecimento, mas sabem que, na realidade, os governos nacionais estão em seus bolsos, e que só têm de esperar algum tempo antes que as coisas voltem ao business as usual [‘negócios, como sempre’], incluindo os bônus dourados e assim por diante. Mesmo agora, após anos de crise, depois de os bancos terem sido salvos com dinheiro público, fazem o que querem. Os economistas Keynesianos estão muito zangados com isto, mas sua zanga não pode mudar a situação histórica do capitalismo.
A trajetória histórica do Keynesianismo
Quando a Primeira Guerra Mundial irrompeu, o estado foi forçado a mobilizar todos os recursos econômicos e sociais que estavam disponíveis para o esforço de guerra. Uma forte presença do estado na indústria era imperativa nestas circunstâncias e a dívida pública explodiu em consequência. Depois da guerra, a economia europeia estava em má situação. As alavancas “automáticas” do pré-guerra que tinham sido postas em funcionamento para assegurar crescimento econômico não estavam mais lá. Depois de anos de vãs tentativas para se retornar ao padrão ouro e ao capitalismo liberal, o Crash de 1929 pôs um fim a esse mundo para sempre. A intervenção estatal (e os líderes reformistas do movimento dos trabalhadores) salvou o capitalismo do abismo. Não importando a posição política dos governos, todos foram forçados a se apressar para salvar a indústria. Os êxitos da economia planificada na URSS também desempenharam um papel para este fim.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a forte intervenção pública na economia estava em vigor em todos os lugares. De um pacote de resgate de emergência, agora o Keynesianismo se tornou a política ortodoxa em todos os países capitalistas. A burguesia ocidental aceitou a forte intervenção do estado por razões políticas, mas também porque a lucratividade era boa. As economias estavam crescendo, os lucros eram altos, então tudo estava bem. O estado investiu em infraestrutura, em serviços públicos e em setores econômicos que eram dificilmente rentáveis no curto prazo. Os salários estavam crescendo e o desemprego era baixo, razão pela qual o consumo cresceu rapidamente. Muitos bancos eram de propriedade estatal, a especulação financeira era irrelevante e Bretton Woods era uma boa imitação do padrão ouro. Tudo parecia estar sob controle. Nos países subdesenvolvidos, a intervenção estatal era a única forma de criar indústrias modernas do zero, mas também nos países capitalistas avançados o estado era necessário para reconstruir a economia depois da guerra e para melhorar o ambiente geral onde os capitalistas privados pudessem florescer. Independentemente de serem democracias ou ditaduras, subdesenvolvidos ou desenvolvidos, os regimes burgueses em todos os lugares contavam com a massiva intervenção pública para alcançar o crescimento.
Essas intervenções não eram simplesmente monetárias ou fiscais; implicavam em um forte papel do estado, direto e por longo prazo, como proprietário e desenvolvedor de setores inteiros da economia, a tal ponto que até tivemos planos quinquenais em países imperialistas, como a França. O boom foi tão forte que todos os críticos de Keynes, entre os burgueses e na esquerda, foram marginalizados. Houve mesmo “Marxistas” que escreveram livros elogiando as políticas econômicas Keynesianas como sendo responsáveis pelo boom. Contudo, embora esses mesmos críticos das políticas Keynesianas não estivessem conscientes disto, devido ao êxito que esses métodos pareciam obter na regulação do ciclo, os chamados “estabilizadores automáticos” Keynesianos introduziram enorme rigidez no funcionamento da economia capitalista. Bretton Woods, pleno emprego, o estado do bem-estar-social, eram todos coisas que o capitalismo poderia tolerar devido ao mais poderoso auge econômico de sua história:
“Mantendo as economias capitalistas avançadas relativamente estáveis, a gestão Keynesiana da demanda, contudo, também as deixou cada vez mais estancadas, já que, com o passar do tempo, os governos poderiam garantir um crescimento adicional do PIB progressivamente menor para um dado aumento de déficit do gasto – no jargão da época, menos pelo seu dinheiro. O crescimento da dívida pública, assim como o endividamento privado adicional que ela torna possível, sustentou o poder de compra, e desta forma evitou que a lucratividade caísse ainda mais do que, de outra forma, poderia cair. As resultantes adições ao poder de compra foram particularmente críticas para reverter as graves crises cíclicas de 1974-5, 1979-1982 e no início dos anos 1990, que foram de longe mais sérias do que qualquer outra durante os primeiros vinte e cinco anos do pós-guerra e que provavelmente teriam levado a profundos deslocamentos econômicos, na ausência do grande aumento no endividamento do governo e do setor privado, que ocorreu no seu rastro. No entanto, o crescente endividamento que sustentou a demanda agregada também levou a uma cada vez maior acumulação da dívida, que, com o tempo, deixou as empresas e as famílias menos sensíveis a novas rodadas de estímulo e tornou a economia cada vez mais vulnerável aos choques” [[xxv]].
Seu fracasso como um meio de evitar crises significava também que, no nível teórico, o Keynesianismo estava agora sendo marginalizado. O ponto mais alto da rejeição científica de Keynes veio nos anos 1980, quando a economia ortodoxa reverteu para o mantra do “livre mercado”. Agora, na melhor política econômica não havia nenhuma política em absoluto, com o desemprego visto como algo trazido para os trabalhadores pelos próprios trabalhadores, e sua cura era a eliminação dos sindicatos e assim por diante. Já explicamos por que esta tentativa de voltar atrás, aos bons e velhos tempos do livre mercado capitalista, estava condenada desde o início.
Agora, após décadas de justificativa teórica da globalização, estamos de volta ao Keynesianismo, embora sob nova forma. Então, temos dezenas de artigos sobre um retorno a Keynes, até mesmo a Marx [[xxvi]]. A velha ortodoxia foi exposta como inútil e a crise tem sido, “tanto uma crise econômica quanto intelectual” [[xxvii]]. Mais uma vez, os economistas burgueses são forçados a retornar à realidade do mantra cíclico que, como disse um famoso livro, “desta vez é diferente”. Recentemente, Borio, Diretor de Pesquisas do Banco Internacional de Pagamentos, destacou o problema:
“As chamadas ‘lições’ são aprendidas, esquecidas, reaprendidas e esquecidas de novo. Conceitos se elevam à proeminência e caem no esquecimento antes de possivelmente ressuscitar. É assim porque o ambiente econômico muda, algumas vezes lenta, mas profundamente, em outras súbita e violentamente. Mas isto acontece também porque a disciplina não é imune a modismos e manias” [[xxviii]].
Isto é verdade, mas a questão é porque motivo estes modismos e manias ocorrem periodicamente. A resposta é que eles estão enraizados nas necessidades de lucro dos capitalistas. Nos anos 1960 as indústrias administradas pelo estado foram boas para os lucros. Mas este não era mais o caso nos anos 1980, e, mesmo assim, o estado é agora mais decisivo do que nunca para reforçar os lucros, e as teorias anti-Keynesianas são, mais uma vez, consideradas irrelevantes, na medida em que a burguesia está cada vez mais irritada com seus próprios teóricos.
Entretanto, o que estes últimos têm para ajudá-los a entender a situação é a experiência histórica. Isto pode parecer óbvio para todos, mas não é assim. Para os economistas burgueses a história é anátema, uma inútil série de fatos que não interessa a ninguém. Isto porque, para a classe dominante, a própria existência da experiência histórica é um fato desagradável, enquanto mostra que as diferentes sociedades nascem, vivem e morrem, e que, dessa forma, o capitalismo também não vai continuar para sempre. Agora, no entanto, desesperados por não entenderem os atuais acontecimentos, até a história voltou à moda [[xxix]]. Naturalmente, isto não é suficiente para se aceitar que a história é parte das ferramentas necessárias para se estudar a sociedade, para se entender realmente o capitalismo. Muito pelo contrário. Em geral, o presente estado das ciências sociais é de profunda crise, exatamente como o capitalismo, sem nenhuma alternativa viável à vista.
Poderia parecer que os economistas Keynesianos estariam melhor posicionados. Como zumbis de um filme de terror, a crise exumou-os do túmulo. Sem dúvida, eles estão mais próximos do mundo real do que a média dos economistas burgueses que consideram mais concorrência como a solução para qualquer enfermidade social. E, mesmo assim, quais são suas propostas? Se olharmos para as propostas dos mais conhecidos entre eles, como Stiglitz ou Krugman, propuseram qualquer medida válida? São contra a austeridade, o que é um bom ponto inicial, mas sua solução – crescimento econômico baseado no gasto governamental e na dívida – é precisamente o que está fazendo a crise ser tão profunda e demorada. E o problema da dívida atual não é um problema pequeno. Ele não pode ser resolvido pela inflação sem se enxugar o sistema bancário. As consequências políticas de tal alternativa seriam enormes. E as desvalorizações competitivas, com os países desvalorizando suas moedas para estimular a exportação? Esta é a solução mágica para a estagnação, de acordo com o padrão Keynesiano. Desnecessário será dizer que isto somente funcionaria se apenas um par de países de menor porte econômico tomasse este caminho, numa tentativa de exportar para sair da crise. Quando todas as nações rebaixam suas moedas, a ferramenta é ineficaz e produz guerras comerciais e ressentimento político.
Nas condições concretas em que o capitalismo se encontra hoje em dia – com a maior crise na história do sistema; uma crise verdadeiramente global e em escala sem precedentes – as políticas Keynesianas, e as políticas reformistas em geral, são completamente utópicas.
O exemplo da moderna China, que adotou políticas Keynesianas em enorme escala – a criação de uma bolha imobiliária, os insustentáveis níveis de dívida, e o aumento dos problemas de excesso de capacidade em setores chaves – somente serve para mostrar a impossibilidade das políticas Keynesianas na situação concreta do momento atual. Do mesmo modo, a implementação das medidas de austeridade, em vez das políticas Keynesianas, pelos governos socialdemocratas da Grécia, Espanha, Portugal e, agora, na França, também mostra que não há nenhum espaço para o reformismo e muito menos para o reformismo Keynesiano. Não há nenhuma alternativa sob o capitalismo além da austeridade. A questão não é sobre este ou aquele imposto, esta ou aquela regulação, esta ou aquela reforma – a questão real é: que classe decide a política econômica; em outras palavras: qual é a natureza social do estado?
Isto sempre foi o ponto fraco do Keynesianismo. Ao contrário do preconceito Socialdemocrata, uma maior intervenção do estado na economia não é em si mesma uma política de “esquerda”. Já nos anos 1970, o economista Marxista O’Connor explicava, usando estudos comparativos de países avançados, que não havia nenhuma correlação entre o fortalecimento da esquerda e um maior papel do estado [[xxx]]. “Mais Keynes” não significa, automaticamente, salários mais altos, uma sociedade mais justa, mais estado do bem-estar-social e assim por diante. Somente a luta de classes – e em última instância a transformação socialista da sociedade – pode produzir estes resultados.
As políticas Keynesianas são inviáveis porque estão enraizadas numa época do capitalismo que já passou. Enquanto os grandes bancos e os monopólios capitalistas dominarem o estado, o pleno emprego, um eficiente estado do bem-estar-social etc., são somente sonhos.
Os reformistas exigem uma forte presença pública no setor bancário, para o investimento público reduzir o desemprego e assim por diante. Naturalmente, estamos todos a favor de reduzir o desemprego, de aumentar os gastos nos serviços públicos e de elevar os salários – quem pode discordar de tais reformas e medidas? O problema é que estas medidas não podem fazer retornar o mundo aos anos 1960, mais do que ao ouvirmos os Beatles. O Keynesianismo hoje está descartado. O que se necessita é uma mudança fundamental das leis sob as quais a economia opera: abolir a anarquia e o caos do capitalismo; tomar o comando dos bancos e das grandes empresas e colocá-los sob um plano racional de produção; em resumo, realizar a transformação socialista da sociedade. Esta é a única alternativa.
[i] J. M. Keynes, 1923, A Tract on Monetary Reform, Chapter 3.
[iii] Ver P. Baran e P. Sweezy, 1965, Economics of Two Worlds.
[v] Cecchetti et al., 2010, The future of public debt: prospects and implications, http://www.bis.org/publ/work300.pdf.
[vi] Cecchetti et al. cit.
[vii] R. Brenner, 2009, What is Good for Goldman Sachs is Good for America The Origins of the Present Crisis, http://www.sscnet.ucla.edu/issr/cstch/papers/BrennerCrisisTodayOctober20
[viii] Ver http://www.marxist.com/bad-bad-and-ugly-imf.htm.
[ix] “BOE discussed Negative Interest Rates”, WSJE 27.2.2013.
[x]“The negative option”, The Economist, 1.6.2013.
[xi]Moseley F., Is the U.S. Economy headed for a Hard Landing? , https://www.mtholyoke.edu/courses/fmoseley/HARDLANDING.doc.
[xii]Moseley, cit.
[xiii] http://www.bloomberg.com/news/2013-04-24/gold-rout-for-central-banks-buying-most-since-1964-commodities.html.
[xvi] Keynes, cit., Chapter IV.
[xvii] Ver por exemplo, o caso da Coreia e de Taiwan:http://www.marxist.com/how-capitalism-developed-in-taiwan-pt-one.htm.
[xix] E. Stockhammer, 2010, Financialization and the Global Economy,http://www.peri.umass.edu/236/hash/c054892e7a23115bfbd0c22c9e90f57c
[xx] Graph from Taylor, The Great Leveraging, 2012.
[xxi] J. Crotty, 2008, Structural Causes of the Global Financial Crisis: A Critical Assessment of the ‘New Financial Architecture’,http://scholarworks.umass.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1017&context=econ_workingpaper.
[xxii] Graph from Stockhammer, cit.
[xxiii] A. Greenspan, 2007, The Age of Turbolence, p. 231.
[xxiv] T. Palley, 2007, Financialization: What It Is and Why It Matters,http://www.levyinstitute.org/pubs/wp_525.pdf.
[xxv] Brenner, cit.
[xxvi] For instance, see the recent article of the Time about “Marx’s revenge” (http://www.marxist.com/the-resilience-of-the-ideas-of-karl-marx.htm, andhttp://business.time.com/2013/03/25/marxs-revenge-how-class-struggle-is-shaping-the-world/).
[xxvii] A. M. Taylor, 2012, The Great Leveraging,http://www.nber.org/papers/w18290.
[xxviii] C. Borio, 2012, The financial cycle and macroeconomics: What have we learnt?, http://www.bis.org/publ/work395.htm.
[xxix] For instance, Jorda et al., 2010, Financial Crises, Credit Booms, and External Imbalances: 140 Years of Lessons(http://www.ecb.europa.eu/events/conferences/shared/pdf/net_mar/Session1_Paper2_Jorda_Schularick_Taylor.pdf?5fc02e3a1cf2f994aff3170a89fdab74).
[xxx] J. O’Connor, 1979, The fiscal crisis of the State, Chapter VII.
Traduzido por Fabiano Adalberto