Desconhecido de grande parte do público, o cineasta de origem haitiana Raoul Peck ganhou notoriedade em 2017 pelo lançamento de dois filmes: Eu Não Sou Seu Negro – baseado no livro inacabado do militante negro James Baldwin – indicado ao Oscar na categoria de melhor documentário e o Jovem Marx, cinebiografia sobre a juventude de Karl Marx. Apesar do destaque recente, Peck não é um novato. O cineasta possui uma longa carreira com obras de ficção e documentários.
Ele nasceu em Portau Prince no Haiti, em 1953, mas viveu no Congo devido ao exílio do pai durante a ditadura de François Duvaleir, o famoso ditador Papa Doc. Anos mais tarde foi com a família para a França estudar, mas acabou indo para Alemanha cursar engenharia. Também trabalhou como motorista de táxi, fotógrafo e jornalista. Foi ministro da Cultura do Haiti entre os anos de 1996 e 1997 e atualmente é presidente da Fémis, escola de cinema francesa.
A aproximação do cinema ocorreu por meio do jornalismo e da fotografia, o cinema era algo difícil de ser feito em um país como Haiti. Quando tomou a decisão de ser cineasta, seu maior interesse era o conteúdo dos filmes, não a técnica, pois ele entendia a importância da realidade social dos povos. Em declaração ao jornal El Universal ele afirma: “nunca quis fazer um filme para contar histórias, o cinema para mim era uma forma de fazer política”.
A trajetória cinematográfica do cineasta comprova a declaração. Peck produziu dois filmes no Congo sobre a figura de Patrice Lumumba, o líder anticolonial que participou da independência do país em relação à Bélgica. O primeiro foi um documentário chamado Lumumba, a morte do profeta (1992), o segundo uma ficção Lumumba (2000). Antes das duas obras atuais, o filme mais exibido do cineasta foi Abril Sangrento (2005). O longa-metragem tem Idris Elba no papel principal e conta sobre o massacre da milícia Hutu contra os Tutsis, em Ruanda. Infelizmente é muito difícil encontrar essas obras no Brasil, mesmo na internet há dificuldade com legendas em português e qualidade decente.
Eu Não Sou seu Negro (2017) estreou em vários cinemas pelo país, possivelmente Jovem Marx (2017) também vá estrear, mas mesmo assim a filmografia de Peck ainda ficará sem previsão de estar mais acessível. A indicação ao Oscar colocou seu trabalho em maior evidência e pode abrir novas portas. Enquanto isso não ocorre, analisemos duas obras do cineasta haitiano e como ele utiliza o cinema como forma de fazer política.
Quando Peck afirma não estar interessado em apenas contar histórias, nem na técnica, mas no conteúdo dos filmes e em fazer política, o cineasta está dizendo que em seus filmes a forma será aquela qual melhor expresse suas intenções. Ele deseja mostrar personagens e fatos históricos da forma mais real possível. A técnica é interessante na medida qual serve a esses objetivos.
Analisemos isso em Lumumba (2000) e Abril Sangrento (2005): o primeiro uma cinebiografia, o segundo uma ficção baseada em fatos reais. As cinebiografias sempre sofrem críticas, muitas equivocadas, sobre o qual a melhor forma de adaptar o personagem. As mesmas críticas sofrem os filmes baseados em fatos reais com personagens de ficção. O importante para nós são não apenas as questões históricas e políticas, mas também as obras enquanto arte.
A omissão de fatos, o período escolhido e enfoque sobre determinadas partes da vida podem proporcionar distorções ou uma visão não consensual entre aqueles que conhecem o personagem. Esses normalmente são os problemas das cinebiografias. Os espectadores não entendem a perspectiva do cineasta e os cineastas não conseguem, muitas vezes, produzir uma obra sem fugir das polêmicas. Os filmes acabam sendo obras sem vida, na perspectiva de não constranger ninguém, acabam também não agradando.
Lumumba é um filme sobre um dos líderes da independência do Congo. Antes de assistir ao longa-metragem não tinha lido nada muito profundo sobre o país. Acredito ser importante frisar isso, pois nossa interpretação muda quando conhecemos o personagem ou evento histórico. Por isso, caso eu precise definir em uma palavra o lideres congoleses mostrados no filme, eu diria: ingênuos.
A independência do Congo surgiu a partir da luta por independência de outros países. O rei e a burguesia belga temiam uma revolução no país e deixar a colônia cair sobre influência da União Soviética. Desse modo, eles preferiram realizar uma transição pacifica. Lumumba é o principal líder da luta por independência no Congo. No filme ele é mostrado como representante comercial de uma empresa de cerveja holandesa, um excelente orador e alguém preso à diplomacia.
No filme podemos notar imobilidade do personagem quando tenta determinar a soberania do país. Ele podia ser o primeiro ministro, mas a economia, o exército e o estado continuavam nas mãos das elites belgas. A transição pacífica era mudar algo para que nada mude.
Em Abril Sangrento ele utiliza personagens fictícios em evento histórico real. O capitão Augustin Muganza (Idris Elba) e seu companheiro Xavier (Fraser James) desafiam as ordens superiores para salvar a família, em Ruanda. Os dois estão em meio ao massacre da milícia Hutu contra os Tutsis, iniciada em 7 de abril de 1994. O cineasta mostra a dimensão desse conflito e como as diferenças tribais que pouco significavam foram utilizadas pelo sistema e provocaram um genocídio.
A narrativa alterna a montagem entre presente e o passado. As primeiras cenas mostram o personagem interpretado por Idris Elba relutando em ir visitar o irmão na cadeia, pois teme remexer em memórias dolorosas. Durante o filme vemos cenas do genocídio de Ruanda como um episódio inacabado, algo que o mundo parece ter ignorado. Também há a ignorância da divisão entre as tribos, no qual uma diferença impossível de notar acaba servindo a banho de sangue.
Nos dois filmes temos fatos históricos utilizados para produzir as obras. No primeiro, uma cinebiografia e no segundo acontecimentos reais com personagem de ficção. Em Lumumba o cineasta produz um estudo de personagem, mostrando a personalidade de uma figura histórica e seus conflitos para comandar um país no qual o poder não está em suas mãos. Já em Abril Sangrento os fatos históricos são pano de fundo para mostrar a jornada das vítimas de conflitos bélicos.
Nos dois longas-metragens não existe grande ousadia na montagem, nem nos planos. A técnica está mais focada nos diálogos, os discursos de Lumumba e as explicações do capitão Muganza. As partes mais interessantes são justamente a encenações dos atores.
Um problema dos filmes baseados em fatos reais é o conflito entre produzir um belo filme e uma narrativa fiel à história. Peck parece não ter esses problemas, as obras que produz não se furtam de polêmica, não endeusam personagem, não são propaganda ou panfletos, mas referências históricas e obras que podemos apreciar como arte.
Existe nos filmes de Peck o princípio da contradição, apesar de protagonistas, eles possuem defeitos e vacilações. Os líderes congoleses, por exemplo, são mostrados como ingênuos justamente para mostrar as contradições da tentativa de uma transição pacífica e do excesso de diplomacia. Os belgas controlavam o exército sobre a justificativa de defender seus cidadãos e seus interesses no Congo, quando na verdade estavam ali para garantir que nada mudasse.
Um cineasta político
O cineasta afirma ter chegado ao cinema por meio da política e para ele “o cinema foi sempre um meio de estar engajado na sociedade, quer eu viva no Congo, no Haiti, na Europa ou na América”.
Recentemente em entrevista sobre o Jovem Marx, ele foi questionado o quanto a obra do pensador ainda era relevante, “após o anúncio da morte do comunismo”:
Claro que sim. Para mim é a base. Eu sou aquilo que sou hoje devido a essa estrutura que adquiri quando era ainda jovem e estudava o trabalho do jovem Marx. Estudei em Berlim, nos anos 70 e 80, e essas ideias eram necessárias para nos confrontarmos nós próprios e com esses livros. É o nosso passado e o nosso presente. E faz parte do conhecimento geral, até porque permite compreender a sociedade em que vivemos.
O entrevistador insiste em dizer que o capitalismo não é mais o mesmo e então ele responde:
Tomemos então, por exemplo, o Manifesto do Partido Comunista, alguns dos artigos descrevem com detalhe a crise de 2008. É quase um livro para crianças sobre a história e evolução do capitalismo até hoje. Que outras provas necessitamos?
Semelhante ao cineasta britânico Ken Loach (leia a crítica sobre Eu, Daniel Blake), o cineasta haitiano pauta as obras no realismo ao tratar de temas sociais. Isso explica o motivo de ele não ter conseguido grande espaço no cenário mundial. Essa não é a única semelhança entre os dois. Raoul Peck assim como Loach parece não ter desistido de acreditar em um novo mundo e na construção de uma nova sociedade.