RJ: A escola pública, a PM, o narcotráfico e dois fuzis fumegantes

Lembrei quantas vezes sonhei com tiros, mortes, invasões, com todos no chão e o som onipresente dos helicópteros desde que me tornei professora da rede estadual do Rio de Janeiro. Completo um ano de magistério e vejo como meus sonhos se transformaram.

Hoje, durante o almoço comido às pressas, uma das professoras nos confessou que talvez não conseguisse esquecer a PM de fuzil apontado para nossa escola, falou do medo que sentiu e que, curiosamente, ontem sonhou com tiroteio, alunos e todos nós sentados no corredor como se tivesse previsto tudo isso. Outro professor perguntou se da minha sala eu não tinha visto a cena, respondi que não e que apenas ouvi alguns tiros, pois cheguei às 9h na escola. Ele disse que se eu tivesse chegado 15 minutos antes teria visto o espetáculo. Eu pensei: 15 min a mais de tiro ou 15 min a mais de pressa e estaria eu no espetáculo, descendo do ônibus e me tornando mais uma das coisas existentes entre a escola, o fuzil da PM e do tráfico.

Lembrei quantas vezes sonhei com tiros, mortes, invasões, com todos no chão e o som onipresente dos helicópteros desde que me tornei professora da rede estadual do Rio de Janeiro. Completo um ano de magistério e vejo como meus sonhos se transformaram. Pensei em quantos de nossos alunos desde que nasceram tem sonhos de violência e os efeitos disso. Que por privilégio pude crescer em lugares que não me acostumaram aos tiros e que hoje pareço um tanto ridícula aos olhos dos meus alunos do Complexo do Chapadão por ainda me espantar com eles. Ainda me espanto porque não naturalizei e não é preciso nenhum tipo de vidência para sonhar com algo que acontece todos os dias nas favelas, nosso corpo apenas carrega em sonho essa realidade excessiva e odiosa.

A escola hoje fechou meio dia porque a polícia e o tráfico estavam a postos, cada um defendendo seus territórios de miséria, suas divisas e prometendo mais. Um a espreita do outro encenando o mais lucrativo drama carioca como se os tiros disparados do fuzil da PM e do tráfico não tivessem o mesmo patrão. E assim, cotidianamente, tenho aprendido o espetáculo de dar aula abstraindo os tiros enquanto as valiosas pesquisas divulgadas pela rede Globo determinam que o problema da educação é a má formação dos professores. Enquanto muitos acadêmicos estudam tanto para descobrirem que a escola é uma instituição repressora, que a educação carece de amor e criatividade e decidem comprovar isso com seus projetos educativos em escolas modelos que, curiosamente, são sempre um sucesso.

Nas minhas escolas sobra ódio e relatos de como é ser trabalhador e viver no confronto. Os tiros encerram as atividades, trancam as portas das escolas e das casas, obstruem as ruas, guardam a propriedade. E o espetáculo grandioso que embrutece nossa vida tornando-a estreita e barata continua.

Sonho com os tiros que acabem com todos que se beneficiam dessa festa de barbárie.