Sobre Bauman e a Modernidade Líquida (Parte 1)

Falecendo no início deste ano, Zygmunt Bauman despertou uma onda de elogios a sua obra em redes sociais e meios de esquerda. Trazemos uma crítica marxista ao pensamento desse sociólogo e filósofo difundido como um dos atualizadores do marxismo.

Uma Brevíssima Biografia

Zygmunt Bauman nasceu em 19 de novembro de 1925, em Poznan, na Polônia e faleceu no dia 9 de janeiro de 2017, na Inglaterra.

De origem judaica, teve que fugir do regime nazista com sua família em 1939, refugiando-se na União Soviética. Lá veio a integrar uma divisão polonesa do Exército Vermelho, junto a qual combateu na Segunda Guerra, colaborando para a libertação da Polônia.

Foi no Exército Vermelho que iniciou seus estudos do marxismo. Integrou o Partido Comunista Polonês nos anos 40 e 50 após a libertação da ocupação nazista, quando a U.R.S.S. passou o poder para os PC’s estalinistas em todo o leste europeu, o que deu origem a estados operários degenerados, autoproclamados democracias populares.

Na Polônia, já na universidade, conheceu Janina, também de origem judaica, com quem se casou em 1948. Tiveram juntos três filhas: Anna, Irena, Lydia.

Formou-se na Universidade de Warsaw, no curso de Sociologia, onde lecionou entre 1954 e 1968.

Começou gradualmente a se desligar do materialismo vulgar prevalente no PC estalinizado, uma versão oficial, dogmatizada do marxismo. Confessou em entrevistas ter se desiludido com a experiência que veio a ser chamada de socialista na União Soviética e, junto com outros acadêmicos da Universidade de Warsaw, tentou desenvolver um tipo de marxismo humanístico, um contraponto à burocratização.dos PCs. Estes desenvolviam uma administração da vida em todas as esferas, inclusive a privada, partindo do princípio de que as Democracias Populares do leste europeu constituíam já o estágio socialista junto à União Soviética e que esse estágio deveria ser administrado, ao invés de trabalhar-se pelo internacionalismo revolucionário, que é única forma de derrotar a organização econômica capitalista e sua exploração advinda da propriedade privada dos grandes meios de produção, organizada em escala mundial. A ruptura de Bauman ocorreu principalmente pela rigidez e dogmatismo do PC, mas se manifesta na prática fundamentalmente em princípios superestruturais, como veio a ocorrer com o chamado Marxismo Ocidental, ao invés de resgatar a necessidade de emancipação revolucionária, pelas trocas de influência da base material e da superestrutura social sobre esta erigida.

Foi a partir do contato com escritos de Gramsci que notou a possibilidade de se distanciar do marxismo ortodoxo (como chamava a versão do PC estalinista) honrosamente, segundo suas próprias palavras: “Eu nunca me tornei antimarxista, como a maioria se tornou. Eu aprendi muito com Marx e sou agradecido”.

Em 1968 foi expulso do PC polonês e teve diversas obras censuradas. É um momento da vida de Bauman pouco explicado, nunca detalhado, fato que ele mesmo muito contribuiu, sendo evasivo em entrevistas. Muitas vezes artigos e matérias sobre a biografia de Bauman diminuem a perseguição política do PC, atribuindo essa perseguição a ele e sua esposa a um crescente antissemitismo nas faculdades polonesas. Mas ele, sempre que interpelado em entrevistas, mesmo no último ano de sua vida, declarava-se socialista e afirmava o socialismo ser hoje mais do que nunca necessário no mundo.

Com a perseguição do PC polonês, mudou-se com sua esposa para Israel e lecionou entre  1968-70 na Universidade de Tel Aviv. Percebendo que não se adaptariam ao nacionalismo sionista, procuraram mudar novamente. Como disse sua esposa Janina: “Queríamos sair de um nacionalismo e não queríamos entrar em outro”.

Bauman recebeu uma proposta para ser chefe de departamento na Universidade de Leeds, na Inglaterra, onde lecionou de 1972 até 1990. Durante sua vida acadêmica em Leeds, recebeu também propostas para ser professor em Yale, Oxbridge e London School of Economics, mas permaneceu na mesma universidade. “Já havíamos nos mudado demais no passado”, explica Janina.

No ano de 1990 aposentou-se das aulas e dedicou-se a sua obra literária, constituída de mais de quarenta livros, misto de divulgação científica com análise social contemporânea, onde busca combater o ecletismo, o relativismo e o irracionalismo da pós-modernidade, através do conceito, por ele mesmo criado, de “Modernidade Líquida”. A obra homônima onde ele fundamenta o conceito e várias outras obras suas foram editadas no Brasil pela Zahar. Este artigo não tem a pretensão de esgotar o assunto, nem mesmo de realizar uma introdução crítica à obra de Bauman. Busca apenas contextualizar a centralidade do seu pensamento, a partir de uma perspectiva marxista.

Da Modernidade Líquida

O conceito de Modernidade Líquida, segundo Bauman, significa que vivemos um tempo onde nada mais é sólido: não o são o Estado-nação, ou a família, nem  tampouco o emprego, ou ainda laços e compromissos com a comunidade. A metáfora da liquidez é utilizada para apresentar este momento como um estágio dinâmico de mutações constantes, onde a etapa que substitui a transformação social anterior é logo superada por outra que será igualmente superada por uma nova, sem que nenhuma se estabeleça. O autor usa como exemplo demonstrativo do conceito, tanto as instituições sociais quanto a fragilidade de nossos relacionamentos interpessoais. A metáfora é apresentada já no primeiro capítulo do seu livro Modernidade Líquida, onde Bauman descreve as características físicas e químicas dos fluídos e sua capacidade de modelarem-se, visando adequar suas formas ao ambiente, algo que os sólidos não conseguem realizar, sem romper sua integridade ou estrutura (quebrar-se ou deformar-se), mas apenas se alterando o estado físico de sua matéria (liquefazendo-se, derretendo-se). Mesmo sólidos mais resilientes, mantém a capacidade de retomar a forma original, quando cessa a pressão à qual estavam submetidos quando de sua deformação.

Os líquidos, como todos os fluídos, são informes e assumem a forma do recipiente que os contém. Os sólidos têm forma definida, não se transformam ou se deformam com facilidade, sendo estáveis e estáticos. Suas moléculas funcionam por coesão, são compactos e precisos. Já os líquidos não têm forma definida e são sensíveis à transformação. São maleáveis e se movimentam. Estão em um estado intermediário entre a solidez e a evaporação.

Suas moléculas, embora mantenham a mesma forma e arranjo atômico (pois de outro modo obteríamos outra molécula, o que transformaria sua essência, e portanto sua identidade material), possuem um maior nível de agitação e energia cinética: superior ao seu respectivo estado sólido e inferior ao seu respectivo estado de vapor. A segunda lei da termodinâmica nos mostra que essa agitação específica exige que as moléculas se afastem umas das outras para dissipar a energia térmica que receberam em forma de calor, de um meio externo, sob forma de energia cinética, energia de movimento associada a sua maior agitação. Esse afastamento microscópico tem um efeito macroscópico: a fluidez típica dos líquidos.

Como ele mesmo definiu, em entrevista à revista CULT, em uma de suas passagens pelo Brasil: “Procurei um termo que não nos diria apenas o que essa condição deixou de ser, mas também que qualidade ela adquiriu que a distingue da modernidade ‘clássica’ e, por conseguinte, exige uma nova ‘caixa de ferramentas analítica’ e uma nova agenda para estudos sociais e culturais. Julguei que o termo ‘liquidez’ é o que melhor se adéqua ao meu propósito: o aspecto definidor de “liquidez”, a incapacidade de reter sua forma por muito tempo e sua propensão a mudar de forma sob a influência de mínimas, fracas e ligeiras pressões é apenas o traço mais óbvio e, em minha opinião, também a característica mais consequente de nossa atual condição sociocultural.”

A metáfora visa  abranger um momento onde as relações sociais se transformam e o antigo cidadão de direitos da modernidade sólida (a etapa imediatamente anterior, segundo Bauman), tornou-se o indivíduo em busca de afirmação na sociedade; onde as antigas estruturas de solidariedade coletiva cederam lugar à disputa e competição; onde todos os sistemas de proteção estatal são diluídos, gerando um permanente ambiente de incerteza; onde toda a responsabilidade por eventuais fracassos pertencem exclusivamente ao indivíduo; onde inexiste o planejamento a longo prazo; e onde a esfera política se esvazia, dissociando-se definitivamente do poder.

Bauman cita que a etapa anterior da modernidade, dialeticamente, já continha essa crescente transformação em estágio embrionário, como necessidade do constante desenvolvimento das forças produtivas revolucionar as relações sociais, adequando o Estado e as leis a essa condição primeira, determinada pela incessante competição entre os capitalistas individuais. Caso um dos produtores se recuse a entrar na ciranda da revolução incessante das forças produtivas, será esmagado e arruinado por seus oponentes. Dessa forma, a liquefação das relações e instituições estariam contidas no próprio impulso da modernidade e seu sucedâneo de transformações radicais. No Manifesto Comunista de 1848, Marx e Engels já anunciavam que: Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas .

“Não foi o ‘derretimento’ dos sólidos seu maior passatempo e principal realização? Em outras palavras, a modernidade não foi ‘fluída’ desde sua concepção?”, indaga o próprio Bauman, em seu livro “Modernidade Líquida”. A criação de um espaço virtual para interações humanas, a velocidade das comunicações, a internacionalização da produção e a volatilidade dos capitais ensejaram as condições para a formação de uma modernidade líquida.

Bauman reconhece que durante o estágio anterior da modernidade, referido por Marx e Engels no Manifesto, a necessidade de derretimento das sólidas relações herdadas da tradição seriam condição necessária para que se pudesse novamente forjar, modelar e dar forma, a novas e melhores relações. Definidas suas novas formas no interesse social, estas então deveriam tornar-se novamente sólidas. Assim a dialética negativa da modernidade equivaleria a da semente, que ao germinar uma planta nega a si mesma, permitindo o desenvolvimento de algo muito diferente dela, mas já potencialmente contido nela. Ao mesmo tempo que o desenvolvimento da planta substitui a existência da semente por algo novo e diverso dela, esse mesmo desenvolvimento permitirá novos frutos com sementes, que poderão gerar novas plantas.

Já a Modernidade Líquida contemporânea, sempre segundo Bauman, não mais buscaria superar as contradições herdadas da tradição para criar uma sociedade aperfeiçoada, no interesse social comum. Tal modernidade se caracterizaria por não mais almejar uma sociedade boa e justa a ser atingida, mas antes por sua conformidade ao conceito de que viveríamos já no melhor dos mundos possíveis, onde tornaria-se papel de cada indivíduo colaborar com as tarefas e deveres modernizantes: “O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana, vista como dotação e propriedade coletiva da espécie humana, foi fragmentado (“individualizado”), atribuído às vísceras e energia individuais e deixando à administração dos indivíduos e seus recursos.”

A ideologia dessa sociedade diminuiria assim o papel das instituições e do Estado, e levaria cada indivíduo a conceber que a responsabilidade de seu bem-estar cabe apenas a ele mesmo, assim todo o seu esforço deveria ser empregado nessa realização. Uma ideologia macunaímica, do “cada um por si e Deus contra todos”.

Bauman interpretava que o conflito e o antagonismo, já não eram entre classes, mas de cada pessoa com a sociedade, onde a instabilidade crescente, apresentadas pela metáfora da fluidez, representavam tanto uma crescente falta de segurança, quanto uma crescente falta de liberdade.

Dito de outra forma, bem sinteticamente, Bauman define seu conceito como um estágio onde se dá o aprofundamento da condição estável e transitória da modernidade, mas sem que este novo estágio apresente, ao contrário da fase da modernidade anterior, um plano racional ou objetivo ao qual chegaremos. A modernidade líquida lançaria o indivíduo, feito um náufrago, à deriva, sem esperança de aportar em terra firme.

Essa ideologia faz com que o indivíduo menospreze ações coletivas, ao mesmo temo em que ela omite o fato das instituições e Estado continuam agindo, sempre no interesse da classe dominante. Assim, a flexibilização das leis (principalmente as de direitos trabalhistas e tributárias e alfandegárias) tornam-se imperativas a essa sociedade; as instituições e organizações tradicionais dos trabalhadores devem ser enfraquecidas, quer por medidas ideológicas (propaganda), quer por medidas legais (a já referida flexibilização das leis, com precarização do trabalho e austeridade; a deslocalização de plantas para territórios menos regulamentados e mão-de-obra menos organizada; a limitação das liberdades democráticas como direito de organização, manifestação, expressão, direito de greve, etc.): “Para que o poder tenha liberdade de fluir, o mundo deve estar livre de cercas, barreiras, fronteiras fortificadas e barricadas. Qualquer rede densa de laços sociais, e em particular uma que esteja territorialmente enraizada, é um obstáculo a ser eliminado. Os poderes globais se inclinam a desmantelar tais redes em proveito de sua contínua e crescente fluidez, principal fonte de sua força e garantia de sua invencibilidade. E são esse derrocar, a fragilidade, o quebradiço, o imediato dos laços e redes humanos que permitem que esses poderes operem.”

Uma fluidez dos interesses coletivos, na solidificação da sacrossanta produção do lucro crescente pela acumulação capitalista?

É aqui que percebemos uma primeira contradição de fato em sua ruptura, ainda que não total, com o marxismo. Bauman entendia que a globalização impactou o trabalho de modo inteiramente negativo, pela liquefação e volatilidade do fluxo de capitais e investimentos, fazendo com que o trabalho perdesse sua relevância anterior, dos tempos da modernidade sólida: “O trabalho não pode mais oferecer o eixo seguro em torno do qual envolver e fixar autodefinições, identidades e projetos de vida. Nem pode ser concebido com facilidade como fundamento ético da sociedade, ou como eixo ético da vida individual.” Mas a necessidade de organização internacional do trabalho sempre foi exatamente uma necessidade decorrente e determinada pela capacidade do Capital buscar sempre o espaço geográfico mais lucrativo, onde seu investimento realizasse mais e melhor capital em prazos menores. O capital não tem pátria, é um ente abstrato que se espalha pelo mundo buscando se reproduzir, como um vírus. Mas o faz no interesse dos seus detentores, seres concretos como os trabalhadores. Essa contradição insustentável de interesses distintos obriga os trabalhadores a unirem-se e organizarem-se internacionalmente, ainda que sua primeira tarefa seja a derrota das suas burguesias nacionais e do governo que as representa, através da tomada do poder do Estado e do controle dos meios de produção de riqueza e controle dos sistemas bancário e financeiro. Por isso a extrema atualidade do já citado Manifesto Comunista, nesta pretensa Modernidade Líquida: “Trabalhadores de todo mundo, uni-vos”. É a partir da identidade de classe e da percepção de que o conjunto de seus interesses não são distintos ou contraditórios, pouco importando a categoria em que trabalha ou sua nacionalidade, que o proletariado mantém uma base sólida para resgatar suas organizações e combater pelos seus interesses. Afinal, na modernidade líquida liquefaz algum dos grilhões do proletariado, ou apenas as barreiras à reprodução do capital?

A flexibilização das leis para o fluxo financeiro, como reação à crise de superprodução de 1973, levaram a uma investida reacionária do capital contra o trabalho, a chamada doutrina Tatcher-Reagan, que alguns teóricos definiram como neoliberal, como se este conjunto de ataques constituísse uma nova fase do capitalismo internacional. Perfeitamente integradas à fase imperialista do capitalismo, essas medidas significavam apenas o sistema buscando sair de uma crise ao incrementar a exploração ao mesmo tempo que buscava novos mercados (daí o fenômeno da “globalização” crescente). Tais medidas apenas procrastinaram os efeitos deletérios imediatos da citada crise, dialeticamente preparando uma nova crise posterior, ainda mais intensa que a anterior, sendo que os meios para superar esta crise subsequente estavam parcialmente comprometidos ou esgotados pelas próprias medidas de combate à crise anterior. Ou seja, a crescente instabilidade que Bauman já em 1990 chamava de Modernidade Líquida constitui o efeito crescente de instabilidade gerado pelas sucessivas crises do sistema capitalista, agravados pela impossibilidade de superar essas mesmas crises dentro dos limites do próprio sistema.

Esse ganho de liberdade de movimentação do capital, após a doutrina Tatcher-Reagan, criou a aparência de ruptura em relação ao trabalho produtivo, mas Bauman interpretou tal fenômeno aparente como a nova relação capital/trabalho: “A reprodução e o crescimento do capital, dos lucros e dos dividendos e a satisfação dos acionistas se tornaram independentes da duração de qualquer comprometimento local com o trabalho”.

O fato é que todo capital fictício se fundamenta em negociações em mercados futuros, daquilo que ainda será produzido. Caso não tivesse absolutamente nenhuma relação com o mercado real e com a produção real, ele não pudesse garantir absolutamente nenhuma remuneração dos seus acionistas e suas bolhas iriam estourar em uma crise irreparável, que colapsaria definitivamente o mercado financeiro.

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