O companheiro Flávio de Castro, professor aposentado da UNICAMP, é um especialista nas questões de transporte e mobilidade urbana. Por ocasião da campanha eleitoral, Flávio conversou sobre o tema com o camarada Alexandre Mandl, que é candidato a deputado federal pela Esquerda Marxista/PSOL na região de Campinas. Confira a íntegra da entrevista:
Flávio de Castro (FC): Alexandre, nossa entrevista tem como tema o transporte público, que como sabemos é um tema crucial para a classe trabalhadora, o que seu mandato propõe para a área?
Alexandre Mandl (AM): Eu divido esta questão em dois momentos, o primeiro enquanto candidato e o segundo se for eleito deputado. Como candidato compete-me, assim como a todos os demais candidatos que se reivindicam marxistas, aproveitar o curto espaço político das eleições burguesas para debater, organizar e elevar a consciência política das massas, no sentido da transformação radical da sociedade. Ao contrário dos candidatos burgueses que apresentam um programa de mudanças com o único intuito de enganar o povo e, quando eleitos não o representam, mas o oprime, nossa proposta parte das discussões em reuniões públicas com os trabalhadores, a juventude, os sem-terra, os sem-teto, os trabalhadores da fábrica ocupada Flaskô, enfim de todos que se dispõem a colaborar nesta empreitada. O segundo momento é, se eleito, entre outras batalhas, aproveitar a condição que o mandato proporciona para percorrer o país ajudando os estudantes a organizar núcleos da Liberdade e Luta, para a constituição de um vigoroso movimento nacional em defesa da Tarifa Zero, do Transporte Público, Gratuito e Para Todos.
FC: Por que esta é uma das prioridades?
AM: Porque as empresas concessionárias oferecem um serviço precário, inseguro e caro, sendo inaceitável que o todo o sistema de transporte coletivo seja sustentado pelos extratos mais carentes da sociedade. É inaceitável que os que o utilizam paguem para os que dele se beneficiam porque o sistema é, fundamentalmente, deslocamento de força de trabalho para oferecer mais-valia aos proprietários dos meios de produção, finanças, comércio ou serviços. Seja esta força de trabalho do indivíduo em atividade ou do estudante, este o trabalhador em formação. Faz-se obrigatório indicar que o usuário cativo do transporte público é, igualmente, cativo do ensino, da saúde e do lazer públicos. Os altos índices de evasão escolar e de interrupção de tratamentos de saúde estão diretamente ligados ao custo do transporte. É inadmissível que isto ocorra!
FC: Não é contraditório que o deslocamento da força de trabalho, vital para o funcionamento da economia seja submetido a um serviço precário como este?
AM: As grandes empresas se utilizam do fretamento, que garante baixo absenteísmo, maior conforto (consequentemente, maior produção), além de impor um controle rigoroso quando das ameaças de paralisação durantes os dissídios. Acontece que estes trabalhadores constituem a minoria, embora a frota de ônibus fretados seja, em média, três ou quatro vezes maior que a frota pública que atende toda uma cidade. A contradição indicada é real e se justifica porque a classe proprietária não é homogênea, é dividida em frações que se desdobram para preservar e ampliar seus lucros, antagonizando às vezes até mesmo com seus pares de outro ramo de atividade, como é o caso. Igualmente, disputam permanentemente o poder, porém esporadicamente se unem, quando a ocasião política lhes interessa, como no recente processo de impeachment e aprofundamento dos ataques desde 2016 e suas benesses, como a reforma trabalhista, as privatizações, a anistia fiscal e o perdão das dívidas. Ou então quando algo lhes ameace, como agora no período eleitoral, quando precisam desesperadamente de um candidato em condições de aprofundar a barbárie contra a classe trabalhadora. Esta divisão no seio da classe dominante é decisiva para a luta dos trabalhadores. Também há outra contradição que me parece insuperável dentro do capitalismo, a questão da mobilidade nas grandes e médias cidades brasileiras. Temos uma poderosa indústria automobilística com montadoras de quase todo o planeta, que ao disputar o mercado impõe um consumo desenfreado de veículos. E não pode ser diferente, assim determinam as leis da produção capitalista. Alie-se a isto um transporte público caro, deficiente, precário, sujo e inseguro que obriga os trabalhadores em geral a se utilizar do transporte individual. Isto sobrecarrega o modal viário e provoca, além da poluição, o caos cotidiano com a perda da qualidade de vida física e mental dos trabalhadores. Isso sem contar um “detalhe” gravíssimo, que é o tempo que a classe trabalhadora permanece em trânsito, destruindo seu descanso, seu lazer, etc. Tal fato se relaciona diretamente com a especulação imobiliária e mercantilização das cidades, que faz com que os bairros populares se espraiem, indo para periferias e cada vez mais longe dos seus locais de trabalho, aumentando ainda mais a precariedade de suas vidas. Por isso, que é uma necessidade indispensável avaliar uma mudança brutal na lógica do transporte no Brasil. Apontando estas contradições, entre outras, é que devemos demonstrar a necessidade da superação do modo de produção capitalista.
FC: A solução, portanto, que você vislumbra, seria a adoção da Tarifa Zero, a qual reduziria a frota em circulação de veículos individuais, melhoraria a mobilidade urbana e beneficiaria a população como um todo?
AM: Para nossa classe, a disputa eleitoral deve contribuir para a educação política, esclarecendo a verdadeira natureza dos partidos, os quais não podem ser julgados por seus nomes, declarações ou programas mas sim pelas suas ações. Ao defender a Tarifa Zero estamos defendendo um transporte público de massas, de qualidade, universal e gratuito sob controle dos trabalhadores. A tarifa zero já é realidade em várias cidades do mundo, porém queremos ir mais longe: defendemos a imediata estatização de todas as empresas concessionárias iniciando pelas grandes cidades e a instalação do transporte sobre trilhos, como o VLT (Veículos Leves sobre Trilhos), por exemplo, e não o BRT (Bus Rapid Transit) que é mais um engodo promovido pelos empresários do setor, com as benesses do poder público.
FC: Mas quem bancaria os custos da Tarifa Zero para todos?
AM: O deslocamento da força de trabalho deve ser pago por quem dela se beneficia. Através da implementação de uma Taxa Transporte, a ser recolhida de todas as empresas proporcionalmente ao número de seus empregados. Apenas os custos atuais de fiscalização e controle do pagamento da tarifa onera em cerca de 30% os custos das viagens. Esse ônus, além da redução brutal da corrupção no setor seriam fatores importantíssimos para a melhoria do sistema como um todo. Basta lembrar o caso recente no Rio de Janeiro onde no governo Sérgio Cabral foram desviados mais de R$ 250 milhões em propinas pelos empresários Jacob Barata Filho e Lélis Teixeira. Jacob, o Rei do Ônibus, dono da maior frota do país, que, vale lembrar, foi preso três vezes e nas três ocasiões imediatamente liberado pelo ministro da Suprema Corte Gilmar Mendes, padrinho de casamento de sua filha. É a desmoralização completa das instituições. O sistema está falido. Por isso, apontamos que este compadrio entre proprietários das empresas concessionárias, agentes do Executivo e do Judiciário se extinguirá com a estatização da frota. Frota esta que, invariavelmente, foi adquirida com dinheiro do BNDES, com subsídios generosos e carência de pelo menos um ano para início do pagamento! Outro desdobramento vital da estatização é o fim da planilha tarifária nos moldes que hoje é estabelecida, qual seja, um arranjo criminoso entre agentes do Estado e empresários para extorquir o usuário e os cofres públicos. Importante lembrar que, ao mesmo tempo, ao se extinguir os subsídios estatais para as empresas, liberam-se verbas para setores como Saúde, Educação, Cultura etc.
FC: Os benefícios atingiriam os trabalhadores que se deslocam para seus postos de trabalho com seus custos pagos pela classe proprietária, no entanto pelo seu caráter universal todos poderiam se utilizar desta iniciativa. É justa esta medida?
AM: Os benefícios atingirão toda a sociedade. Uma pesquisa do IPEA de 2013 aponta que desde 1992 tem havido uma piora sistemática nas condições de transporte nas principais áreas metropolitanas do país nos tempos de viagens casa-trabalho. Não à toa a explosão da insatisfação popular se deu com as chamadas “jornadas de junho” justamente por causa desta pauta. Esta piora está relacionada a diversos fatores como o crescimento populacional, a expansão da mancha urbana e o aumento das taxas de motorização e dos níveis de congestionamento. Investindo apenas na infraestrutura se obtém resultados positivos que diminuem ao passar do tempo à medida que os sistemas de transporte se aproximam de sua capacidade limite. Portanto, se faz necessária uma intervenção radical na área, que poupe o usuário e também lhe permita usufruir de sua cidade, das ofertas de lazer e cultura que ela lhe oferece, mas que lhe são tolhidas pelo alto custo do transporte e a ausência deste nos finais de semana. Por outro lado, melhorando a circulação consequentemente se reduz a poluição ambiental, trazendo benefícios para todos.
FC: Você poderia sintetizar sua proposta para o sistema transporte coletivo urbano?
AM: Antes, durante e depois das eleições, seja qual for o resultado, continuaremos na luta pela conquista de quatro objetivos que se complementam entre si:
Primeiro, a adoção da Tarifa Zero universal, custeada pela classe proprietária, através da instituição da Taxa Transporte, recolhida proporcionalmente de acordo com o número de trabalhadores de cada unidade patronal.
Segundo, a estatização das empresas, a começar pelas que atendem as capitais e principais cidades.
Terceiro, submeter todas as empresas estatizadas a um colegiado, formado majoritariamente por usuários, acrescido de técnicos de diversas áreas, estes últimos com participação apenas consultiva, que determinará a operação da frota; itinerário; tempo de ciclo; construção de abrigos; sinalização horizontal e vertical; redutores de velocidade, construção de calçadas junto às escolas, creches e postos de saúdes entre outros locais.
Por último, investir na instalação nas grandes e médias cidades de um transporte efetivamente de massas, seguro, confiável, não poluente; adequado à topografia das cidades e à infraestrutura já existente (como os ramais ferroviários desativados), além de estimular o desenvolvimento de outros modais de transporte, como o transporte por trilhos e fluvial, bem como a integração entre eles.
Assim, concluo afirmando que não se pode falar em mobilidade urbana sem falar em transporte coletivo de massas, de qualidade, ou seja, pontual, seguro, limpo, não poluente e bem atendido; igualmente não se pode falar em transporte coletivo sem falar em transporte coletivo público estatizado; da mesma forma que não se pode falar em transporte coletivo público estatizado sem falar em transporte público gratuito.
Portanto, não se pode falar em transporte público gratuito sem falar em transporte sob estrito controle dos trabalhadores. E para isso, é necessário organizar os trabalhadores e a juventude para construirmos um partido revolucionário, capaz de tomar o poder e abrir caminho ao socialismo!