Trotsky e a Revolução Francesa (parte 1)

Trotsky não dedicou nenhum trabalho específico à Revolução Francesa, e é lamentável. Estudou-a de perto, conhecia os trabalhos de Alphonse Aulard, incluída sua compilação de documentos para a história da Sociedade dos Jacobinos, a História da França de Michelet, a História socialista de Jean Jaurés, pela qual confessava especial admiração, e, ao longo das vicissitudes de sua vida política, não deixou de se manter ao corrente dos trabalhos científicos. Conheceu a obra de Mathiez, cuja importância apreciava, e utilizou os primeiros trabalhos de divulgação que se conheceram de George Lefebvre. Este mérito, naturalmente, é dele, mas também de seus colaboradores e colaboradoras – Denise Naville, por exemplo – que lhe copiaram centenas de páginas das bibliotecas parisienses, quando os livros não estavam disponíveis.

Segundo sabemos, apesar da abundância de materiais de que dispunha sobre a história da Revolução Francesa, Trotsky nunca pensou em escrever sobre ela. No entanto, em índices bem elaborados, é fácil se dar conta de que a Revolução Francesa – a que, quase sempre, denominava como A Grande Revolução Francesa – constituía uma de suas referências mais constantes e que não concebia qualquer trabalho sobre a revolução que não se referisse a ela, esboçando pelo menos uma comparação. Encontraram-se as primeiras referências importantes à Revolução Francesa no folheto polêmico, dirigido contra Lenin, intitulado Nossas Tarefas Políticas, com relação ao jacobinismo. Volta a isso em seu 1905, sobre a Revolução Francesa como “revolução nacional” e “clássica”. Logo se encontrarão elementos de analogia no conjunto da obra de Trotsky, naturalmente em primeiro lugar em sua História da Revolução Russa e em seu Stalin, mas também em todos os seus textos polêmicos e programáticos da época da Oposição de Esquerda, logo da 4ª Internacional, contra Stalin e os epígonos. Com relação a isto, há que se destacar o importante lugar que têm as referências ao “Termidor” e ao “bonapartismo” nesses trabalhos que, certamente, são trabalhos militantes circunstanciais, mas são também muito cuidadosos em termos dessa teoria, que eminentes críticos batizam, com evidente incompreensão, como sua “sociologia”.

Em consequência, não se encontrará na obra de Trotsky uma análise original da Revolução Francesa em si mesma e por si mesma. Poder-se-á notar uma evolução importante que o faz passar o foco da burguesia em seu conjunto aos “sans-culottes”, como motor revolucionário. O leitor se arrisca, às vezes, a sentir que Trotsky maltrata um pouco as categorias estabelecidas por Marx e que o “proletariado” constitui para ele uma noção um tanto elástica, já que enche suas páginas com os que chama de “oprimidos”, “explorados”, as camadas mais pobres. Mas não se trata daqueles que, como escreve Marat1, não têm outra riqueza além de sua progênie (proles, em latim) e dos que os romanos, com seu cinismo de opressores e exploradores, batizaram de “proletários”.

Tratando de nos abstrair do uso contemporâneo da análise com um objetivo teórico e polêmico – voltaremos a isso mais tarde – tentamos separar da obra de Trotsky, por um lado, sua visão geral do movimento e do desenvolvimento da revolução, e, por outro, a impossibilidade de a Revolução Francesa ir até o seu final, em seu momento, e as novas formas políticas que originou em seu inevitável refluxo.

Então, ser-nos-á possível tentar uma avaliação de fundo em seu tratamento da Revolução Francesa.

Trotsky era historiador ou “sociólogo”, teórico ou militante revolucionário, tudo isso ao mesmo tempo, ou finalmente viu muito além desse tema que o apaixonava e que acreditava compreender através de sua própria experiência?

“Robespierre, Danton, Marat”, por Alfred Loudet, 1882

As analogias

No momento em que deixava pela segunda vez o território da União Soviética, expulso por decisão do mesmo partido em nome do qual, doze anos antes, havia dirigido a insurreição vitoriosa pelo poder, Trotsky se indignava:

Teria que ser irremediavelmente vil para negar a importância histórica mundial da Grande Revolução Francesa2.

Não dissimulava os motivos que o animavam e destacou a validade do método das “analogias”, não só para o historiador, mas também e antes de tudo para o político revolucionário:

Há características comuns a todas as revoluções, as quais permitem a analogia e, mesmo, a exigem imperiosamente, se é que temos de nos basear nas lições do passado e não reiniciar a história desde zero em cada nova etapa3.

No entanto, a analogia não poderia ser perfeita e, em 1935, observa que seria “de um pedantismo cego tratar de fazer coincidir as diferentes etapas da Revolução Russa aos acontecimentos análogos de fins do século 18 na França4. Efetivamente, a história se desenvolve no tempo, e as transformações ocorridas se transformam em dados de base. Em suas observações preliminares à sua análise sobre o caráter da Revolução Russa no século 20, Trotsky, em 1909, destacava o caráter original da grande Revolução Francesa, ou melhor, o seu caráter duplo, “burguês” e “nacional”, escrevendo:

“Na época heroica da história da França, contemplamos uma burguesia que ainda não é consciente dos contrastes de que está cheia sua situação, tomando a direção da luta por uma nova ordem de coisas, não só contra as antiquadas instituições da França, mas, inclusive, contra as forças reacionárias de toda a Europa. Progressivamente, a burguesia, representada por suas frações, se considera como o chefe da nação e, de fato, se converte nisso, arrasta as massas à luta, dá-lhes um lema, ensina-lhes uma tática de combate. A democracia introduz na nação o laço de uma ideologia política. O povo – pequenos burgueses, camponeses e operários – elege burgueses como deputados e as instruções que os municípios entregam aos seus representantes estão escritas na linguagem da burguesia que toma consciência de seu papel de Messias”5.

Em seu combate, a burguesia arrastou as demais camadas desse Terceiro Estado, do qual ela só era o estrato superior:

A poderosa corrente da luta revolucionária expulsa da vida política, um atrás do outro, os elementos mais estacionários da burguesia. Nenhuma camada é arrastada antes de transmitir sua energia às camadas seguintes. A nação, em seu conjunto, continua combatendo pelos fins que se havia proposto, por meios cada vez mais violentos e decisivos […] A Grande Revolução Francesa é realmente uma revolução nacional. Ainda mais. Nela, dentro dos marcos nacionais, encontra sua expressão clássica a luta mundial da classe burguesa pela dominação, pelo poder, por um triunfo indiscutível.6

Já em 1848, a burguesia se tornou incapaz de desempenhar um papel similar, da mesma forma que suas camadas intermediárias, a pequena burguesia, a classe camponesa, a democracia intelectual. O proletariado ainda era muito débil.

Mas precisamente porque a Revolução Francesa se desenvolveu segundo um esquema “clássico” e, de alguma forma, quimicamente puro, como uma experiência de laboratório, o observador pode apreender em seu desenvolvimento as suas próprias leis e verificá-las para sua generalização em condições concretas necessariamente distintas.

A Revolução como uma explosão de contradições

Nosso leitor conhece, esperamos, o paralelo fascinante estabelecido por Trotsky em sua História da Revolução Russa, entre Luís XVI e Maria Antonieta e Nicolau II e a czarina Alexandra7. Rechaçando as explicações psicológicas absolutas que desfiguram a história ao dissimular as forças sociais, mostra como as “personalidades” dos soberanos eram pouca coisa quando comparadas às contradições sociais acumuladas e às explosões em série comandadas pelas explosões da crise nas alturas. Trotsky recorda que Robespierre, na Assembleia Legislativa, advertia os seus colegas contra as ilusões de um desenvolvimento revolucionário rápido na Europa, ao recordar a experiência francesa que agora entrava nas consciências: na França, foi “a oposição da nobreza que debilitou a monarquia”, a que “pôs em movimento a burguesia e, depois dela, as massas populares”. Rechaçando a ideia oferecida pelos historiadores liberais, segundo a qual o rei havia cavado sua própria tumba aliando-se à contrarrevolução, o que, recorda não sem humor, “não o salvou da guilhotina, nem a ele primeiro nem, mais tarde, aos Girondinos”, afirma:

“As contradições sociais acumuladas tinham que transbordar ao exterior e, ao fazê-lo, levar a termo o seu trabalho depurador. Ante a pressão das massas populares, que finalmente traziam ao combate franco seus infortúnios, suas mágoas, suas paixões, suas esperanças, suas ilusões e seus objetivos, as combinações tramadas nas alturas entre a monarquia e o liberalismo não tinham um valor meramente episódico e podiam exercer no máximo uma influência sobre a ordem cronológica dos fatos, e talvez em seu número, mas nunca sobre o desenvolvimento geral do drama, nem muito menos sobre o seu inevitável desenlace”8.

Faz falta o talento literário de Trotsky para mostrar o caráter dinâmico e explosivo dessas contradições em movimento, que pesam há anos e podem, sob o peso de outras novas, resultar em compromissos concluídos em algumas horas (os Mirabeau9 e os Lafayette10 se tornaram campeões dessa monarquia, da qual haviam dinamitado sua autoridade), mas também das contradições que, invisíveis nos primeiros tempos, logo se revelam gigantescas e irreconciliáveis, as dos “sans-culottes” contra a aristocracia e os burgueses acomodados e ricos, as dos camponeses contra os mesmos, as dos burgueses contra a Igreja etc., Trotsky escreve:

“Que espetáculo maravilhoso – e, ao mesmo tempo, caluniado da forma mais baixa – o dos esforços dos setores plebeus para emergir do subsolo e das catacumbas sociais e entrar no palco, vedado para eles, em que aqueles homens de peruca e calções curtos decidiam os destinos da nação! Parecia que as próprias fundações, pisoteadas pela burguesia ilustrada, se reuniam e se moviam, que surgiam cabeças humanas daquela massa informe, que se elevavam com as mãos calosas e se percebiam vozes roucas, mas valentes. Os bairros de Paris, cidadelas da revolução, conquistavam sua própria vida e eram reconhecidos […] e se transformavam em seções. Mas, invariavelmente, rompiam as barreiras da legalidade e recebiam uma avalanche de sangue fresco a partir de baixo, abrindo passagem em suas fileiras, contra a lei, os pobres, os privados de todos os direitos, os sans-culottes. Ao mesmo tempo, os municípios rurais se convertem no manto do levantamento camponês contra a legalidade burguesa protetora da propriedade feudal. E assim, sob os pés da segunda nação, levanta-se a terceira”11.

Exalta “a energia, a valentia e a unanimidade dessa nova classe que se havia alçado do fundo dos distritos parisienses e encontrava seu ponto de apoio nas aldeias mais atrasadas12.

Existe uma “corrupção do poder”?

Nesse percurso, Trotsky se vinga das frases de café que os autores de divulgação e mesmo alguns especialistas continuam utilizando hoje. Evidentemente, trata-se de fórmulas fatalistas como “a revolução que devora os seus filhos” ou o poder “que corrompe”. A realidade é que as circunstâncias mudam com o desenvolvimento histórico e que os homens e grupos políticos não podem mais que sofrer as consequências dessas mudanças, o que Trotsky chama de “a ruptura da correlação entre o objetivo e o subjetivo”. Ele escreve:

Os homens e os partidos não são heroicos ou ridículos em si e por si, senão por sua atitude ante as circunstâncias13.

Particularmente atento ao descrédito que golpeou, um depois do outro, os grupos de valentes revolucionários que haviam sido os heróis das primeiras etapas da revolução, constata:

“Quando a revolução francesa entrou em sua fase decisiva, o mais eminente dos Girondinos parecia uma figura lamentável e ridícula ao lado do mais comum dos Jacobinos”14.

É assim que um Roland, “personagem respeitável”, que foi um ministro brissotin15, como se dizia então, e inspetor das manufaturas, o que constituía, na época, uma qualificação técnica e científica excepcional, aparece em um momento como “uma caricatura viva sobre o fundo de 1792”.

Dedicando-se logo a um fenômeno já constatado antigamente, já que os romanos o traduziram em termos de destino – “Quos vult perdere Jupiter dementat” (A quem Júpiter quer destruir, primeiro o enlouquece) – tenta explicá-lo:

Em um determinado momento da Revolução, os chefes Girondinos perderam totalmente a bússola. Apesar de sua popularidade e inteligência, só cometem erros e torpezas. Parecem participar ativamente de seu próprio fracasso. Mais tarde, é a vez de Danton e seus amigos. Os historiadores e os biógrafos não deixam de se assombrar da atividade desordenada, passiva e pueril de Danton nos últimos meses de sua vida. O mesmo para Robespierre e os seus: desorientação, passividade e incoerência nos momentos mais críticos. A explicação é evidente. Em um dado momento, cada um desses grupos esgotou suas possibilidades políticas e já não podia avançar contra a poderosa realidade: condições econômicas internas, pressão internacional, novas correntes que tinham impactos nas massas etc. Nessas condições, cada passo começava a produzir o resultado contrário ao esperado. Mas a abstenção política já não era favorável16.

Sem pronunciar a palavra, está claro que Trotsky considera o desenvolvimento revolucionário sob o ângulo da revolução permanente que dá conta do desenvolvimento político, incluídas a grandeza e a decadência dos homens, das forças sociais e políticas, dos clubes e dos partidos. É isso o que ele desenvolve em A Revolução Traída:

“A continuidade das etapas da Grande Revolução Francesa, tanto em sua época ascendente quanto em sua etapa descendente, mostra de forma indiscutível que a força dos “chefes” e dos “heróis” consistia, sobretudo, em seu acordo com o caráter das classes e das camadas sociais que os apoiavam; só essa correspondência, e não superioridades absolutas, permitiu a cada um deles marcar com sua personalidade certo período histórico. Há, na sucessão ao poder dos Mirabeau, Brissot, Robespierre, Barras, Bonaparte, uma objetividade legítima infinitamente mais poderosa que as características particulares dos próprios protagonistas históricos”17

Prossegue:

“Sabe-se suficientemente que até agora todas as revoluções suscitaram reações e mesmo contrarrevoluções posteriores que, de outra forma, nunca lograram que a nação volte ao seu ponto inicial de partida, embora sempre se tenham apoderado da parte do leão na divisão das conquistas. Regra geral, os pioneiros, os iniciadores, os condutores, que se encontravam à cabeça das massas durante o primeiro período, são as vítimas da primeira corrente de reação, enquanto se elevam ao primeiro plano homens do segundo, unidos aos antigos inimigos da revolução. Sob esse dramático duelo de corifeus na cena política aberta, ocultam-se as mudanças ocorridas nas relações entre as classes e, não menos importante, profundas mudanças na psicologia das massas, até a pouco revolucionárias”18.

Pode-se fazer uma revolução pela metade?

A mesma explicação vale para esse outro fenômeno observado por Saint-Just19 e expressado por ele como uma lei do desenvolvimento das revoluções. Segundo ele, “os que fazem a revolução pela metade não fazem mais do que cavar sua própria tumba”. Ninguém poderia discutir que Mirabeau foi, durante uma época, o brilhante representante da revolução em ascensão. Tampouco ninguém poderia negar que desapareceu sem pena nem glória depois de haver tentado reconciliar a revolução com a monarquia, ou seja, de haver tentado deter a revolução enquanto ela havia recém começado e estava longe de haver esgotado suas fontes de energia, renovadas incessantemente pela mobilização de novas camadas. Orador e escritor menos brilhante, mas dotado de uma sólida e prestigiosa legenda, La Fayette não foi menos para a França dessa época: “o herói dos mundos”, antes de se passar ao bando do exército estrangeiro. Com relação a isso, Trotsky aporta uma explicação:

“Em 17 de julho de 1791, La Fayette metralhou no campo de Marte uma manifestação pacífica de republicanos que tentava se dirigir com uma petição à Assembleia Nacional que amparava a perfídia do poder real […] A burguesia realista confiava em liquidar, mediante uma oportuna repressão sangrenta, o partido da revolução para sempre. Os republicanos, que não se sentiam ainda suficientemente fortes para a vitória, evitaram a luta, o que era muito razoável, e se apressaram inclusive a afirmar que não tinham nada a ver com os que haviam participado da petição, o que era, desde logo, indigno e equivocado. O regime de terrorismo burguês obrigou os Jacobinos a se manterem quietos durante alguns meses. Robespierre buscou refúgio na casa do carpinteiro Duplay, Demoulins se escondeu, Danton passou algumas semanas na Inglaterra. Mas, apesar de tudo, a provocação realista fracassou […]”20.

Trotsky, de passagem, põe de relevo um aspecto do desenvolvimento das revoluções: toda tentativa de deter a revolução pela metade é, independentemente das intenções de seus instigadores e autores, o início de uma empresa contrarrevolucionária, através da luta contra a revolução que continua.

Na realidade, são as forças sociais as que ditam esta continuação da revolução na França a partir de 1789 e que agirão, finalmente, por uma sociedade francesa que será, no final do século 18, mais avançada em sua transformação social que a Alemanha após a revolução de 1918 ou a Espanha depois de abril de 1931, quando ambos os monarcas, nos dois casos, haviam tomado o caminho de Varennes21, e tiveram a sorte de que não os detivesse um Drouet22.

A Revolução Francesa é a resultante de uma aliança objetiva duradoura entre as massas camponesas, levantadas contra os aristocratas e o velho regime feudal, e os sans-culottes das cidades, particularmente de Paris. Não foram as massas camponesas as que iniciaram o combate sistemático contra a aristocracia e seus privilégios no campo, embora de uma forma ou de outra, não deixaram de combatê-los durante séculos. Mas foi a burguesia que desencadeou o verdadeiro processo de libertação. Trotsky escreve:

“Na França, a luta contra o absolutismo da Coroa, da aristocracia e dos príncipes da Igreja obrigou a burguesia, representada por suas diferentes camadas, a fazer, no final do século 18, uma revolução agrária radical. A classe camponesa independente, saída dessa revolução, foi durante muito tempo o sustentáculo da ordem burguesa”[23].

No entanto, o desenvolvimento concreto o leva a fazer alguns ajustes e nuances nesse quadro geral, nas páginas do mesmo volume. Efetivamente, a luta contra a detenção da revolução pela metade, contra o renascimento da contrarrevolução é o que uniu a aliança que permitiu à revolução ir até o final no terreno social e a destruição do antigo regime.

Durante cinco anos, os camponeses franceses se sublevaram em todos os momentos críticos da revolução opondo-se à acomodação entre os proprietários feudais e os proprietários burgueses. Os sans-culottes de Paris, ao derramarem o seu sangue pela república, libertaram os camponeses das travas do feudalismo24.

Então, fundamentalmente “os municípios rurais se convertem no manto do levantamento camponês contra a legalidade burguesa protetora da propriedade feudal25. Mas, ao mesmo tempo, essa pressão do campesinato só podia ter sentido porque nas portas do poder, em Paris, os sans-culottes, combatendo pela república, lhes ofereciam um regime político que os protegia das tentativas de restauração (contrarrevolução).

As contradições e a dualidade de poder

A principal característica do desenvolvimento revolucionário destacada por Trotsky com relação à Revolução Francesa deriva muito provavelmente de sua própria observação e experiência da Revolução Russa, da qual foi ator, e que ator! É a constatação de que as contradições sociais, no desenvolvimento da revolução, se estabilizam e se desestabilizam sob a forma de situações de “duplo poder” em uma curva ascendente primeiro e logo descendente. Em cada caso, a questão da hegemonia entre os dois poderes em conflito é comandada pela força ou, se se prefere, por uma “guerra civil”, por mais breve que seja.

Nesse ponto, gostaríamos de lhe deixar quase exclusivamente a palavra. Ele escreve:

“Na Grande Revolução Francesa, a Assembleia Constituinte, cuja espinha dorsal eram os elementos do ‘Terceiro Estado’, concentra o poder em suas mãos, embora sem despojar o rei de todas as suas prerrogativas. O período da Assembleia Constituinte é um período característico da dualidade de poderes, que termina com a fuga do rei a Varennes e não é liquidado formalmente até a instauração da República.

A primeira Constituição francesa (1791), baseada na ficção da independência completa dos poderes legislativo e executivo, ocultava, na realidade, ou se esforçava por ocultar do povo a dualidade de poderes reinante: de um lado, a burguesia, entrincheirada definitivamente na Assembleia Nacional, depois da tomada da Bastilha pelo povo; do outro, a velha monarquia, que se apoiava ainda na aristocracia, no clero, na burocracia e na casta militar, sem falar ainda das esperanças em uma intervenção estrangeira. Este regime contraditório albergava a semente de sua inevitável derrubada. Nesse atoleiro não havia outra saída além de destruir a representação burguesa com a contribuição das forças da reação europeia, ou levar o rei e a monarquia à guilhotina. Paris e Coblença tinham que medir suas forças nesse pleito”[26].

De fato, uma segunda dualidade de poder está por surgir inclusive antes da guerra e da queda do rei:

“Mas antes que as coisas terminem nesse dilema: a guerra ou a guilhotina, entra em cena a Comuna de Paris, que se apoia nas camadas inferiores do ‘Terceiro Estado’ e que disputa, cada vez mais audazmente, o poder aos representantes oficiais da nação burguesa. Surge assim uma nova dualidade de poderes, cujas primeiras manifestações são observáveis já em 1790, quando ainda a grande e média burguesia se acham instaladas à vontade na administração do Estado e nos municípios […]

Inicialmente, as seções de Paris mantinham uma atitude de oposição frente a Comuna, que se achava ainda nas mãos da honorável burguesia. Mas, com o gesto audaz de 10 de agosto de 1792, as seções se apoderam dela. A partir de então, a Comuna revolucionária se levanta, em primeiro lugar, contra a Assembleia Legislativa e, depois, contra a Convenção; ambas, atrasadas com relação à marcha e às finalidades da revolução, registravam os acontecimentos, mas não os promoviam […]”27.

E é por esse avanço da dualidade de poder que Trotsky chega à conclusão do Terror e à ditadura do Comitê de Salvação Pública.

“Os exploradores empantanaram tanto o carro da sociedade que, para destravá-lo, faz falta uma obstinada energia e esforços verdadeiramente revolucionários. Os Jacobinos nos ofereceram, há cento e quarenta anos, um formidável exemplo. São os pobres, a plebe, os explorados os que criaram o governo da Montanha, o governo mais forte que a França já conheceu e é esse governo que salvou a França nas circunstâncias mais trágicas”28.

A lei do desenvolvimento revolucionário através das dualidades de poder não deixa de agir e Trotsky continua:

“A necessidade da ditadura, tão característica da revolução quanto da contrarrevolução, se desprende das contradições insuportáveis da dualidade de poderes. O trânsito de uma forma a outra se efetua por meio da guerra civil. Ademais, as grandes etapas da revolução, isto é, a passagem do poder a novas classes ou setores, não coincidem de forma absoluta com os ciclos das instituições representativas, as quais acompanham, como a sombra de um corpo, a dinâmica da revolução. É verdade que, no fim das contas, a ditadura revolucionária dos sans-culottes se funde com a ditadura da Convenção; mas, de que Convenção? Uma Convenção da qual foram eliminados pelo Terror os Girondinos, que ainda ontem dominavam em suas cadeiras; uma Convenção recortada, adaptada ao regime da nova força social”[29].

Mas, na verdade, trata-se de uma lei geral de desenvolvimento da revolução e da contrarrevolução. Trotsky conclui:

“Assim, pelos degraus da dualidade de poderes, a Revolução Francesa sobe no transcurso de quatro anos até sua culminação. E, desde o 9 Termidor, a revolução começa a descer outra vez os degraus da dualidade de poderes. E, outra vez, a guerra civil precede cada descida, do mesmo modo que antes havia acompanhado cada nova ascensão”30.

CONCLUI NA PARTE 2

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.

Notas:

1 Jean-Paul Marat (1743-1793). Revolucionário francês, nascido na Suíça, foi dirigente da ala radicalizada da Revolução Francesa. Estudou medicina em Paris e se doutorou em Londres, onde, em 1774, publicou em inglês The Chains of Slavery, obra em que critica a monarquia ilustrada. Durante a Revolução, publicou o jornal “Amigo do Povo”, plataforma de suas ideias sobre a liberdade de expressão e de condenação do Antigo Regime. Em 1792, foi eleito membro da Convenção e da Comuna de Paris. Foi assassinado por Charlotte Corday, uma jovem que pertencia ao partido girondino, a ala moderada da Revolução.

2 “¿Adónde va la república soviética?”, 25 de fevereiro de 1935. Escritos, CD CEIP León Trotsky.

3 Ibidem.

4 “Estado obrero, Termidor y bonapartismo”, 1 de fevereiro de 1935. Escritos, CD CEIP León Trotsky

5 1905, Ed. CEIP León Trotsky, p. 58.

6 Ibidem.

7 Historia de la Revolución rusa, tomo 1, p. 67-70.

8 Historia de la Revolución rusa, tomo 1, p. 70.

9 Honoré Gabriel Riquetti, conde de Mirabeau. (1749-1791). Importante ativista e teórico da Revolução Francesa, foi partidário e impulsor da monarquia constitucional.

10 Marie-Joseph Paul Yves Roch Gilbert du Motier, Marqués de La Fayette, também conhecido como Marquês de La Fayette o Lafayette (1757-1834). Foi general na revolução dos Estados Unidos e dirigente da Guarda Nacional durante a Revolução Francesa.

11 Historia de la Revolución rusa, tomo 1, p. 131.

12 Ídem.

13 Histoire de la Révolution Russe, éd. Rieder, 4 vol, III, 14 (citada por Pierre Broué).

14 Ídem.

15 Republicano durante a Revolução Francesa.

16 Carta a Denise Naville e Jean Rous, Œuvres 17, p. 225.

17 La revolución traicionada, Ed. Antídoto, p. 78.

18 Ídem.

19 Louis Antonie León Saint-Just (1767-1794). Foi un político revolucionário francês, várias vezes membro do Comitê de Salvação Pública e adversário dos girondinos. Durante a reação termidoriana, a Convenção decidiu executá-lo sem julgamento, junto a Robespierre.

20 Historia de la Revolución rusa, tomo 2, p. 48.

21 Refere-se à fuga da família real, desde Paris até Varennes, que ocorreu em 21 de junho de 1791.

22 Jean Baptiste Drouet (1763-1824) foi encarregado de deter e vigiar a carruagem do rei Luís XVI em Varennes até a chegada do ajudante de campo de La Fayette. Posteriormente, os reis foram presos. Luís XVI foi guilhotinado em 21 de janeiro de 1793 e Maria Antonieta da Áustria em 16 de outubro do mesmo ano.

23 Historia de la Revolución rusa, tomo 1, p. 42.

24 Historia de la Revolución rusa, tomo 2, p. 196.

25 Historia de la Revolución rusa, tomo 1 p. 131.

26 Historia de la Revolución rusa, tomo 1, p. 130-131.

27 Historia de la Revolución rusa, tomo 1, p. 131

28 “Por un programa de acción”, Œuvres, 4, p. 94.

29 Historia de la Revolución rusa, tomo 1, p. 131

30 Historia de la Revolución rusa, tomo 1, p. 131