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Trump dá um fim à ordem mundial liberal

Um único telefonema no dia 12 de fevereiro sinalizou a morte da chamada aliança ocidental e o colapso da ordem internacional vigente desde a Segunda Guerra Mundial. Esse telefonema foi, é claro, entre Trump e Putin.

Não foi uma mera abertura formal de diálogo. De acordo com ambos os relatos, foi uma ligação extremamente cordial. Por uma hora e meia, os dois discutiram calorosamente a história comum de cooperação entre suas nações, que remonta à Segunda Guerra Mundial, e seu desejo mútuo de avançar não apenas rumo à paz, mas também à normalização das relações econômicas e políticas.

O telefonema de Trump foi seguido por outro, muito mais curto, informando Zelensky sobre os fatos: que os EUA abririam negociações para encerrar a guerra na Ucrânia, e que nem os europeus nem os ucranianos estariam presentes. Não ficou muito claro o quão cordial foi esse telefonema.

Apenas com essas ações, Trump expôs, de uma só vez, a mentira de que essa guerra era algo além de um conflito por procuração entre o Ocidente e a Rússia. Se a guerra da Ucrânia é, como os liberais têm repetido constantemente, uma guerra puramente defensiva de uma pequena nação lutando contra um grande agressor, e não uma guerra por procuração, como explicar que seu desfecho esteja sendo negociado sem nem mesmo a presença de um dos beligerantes?

Pelo menos Zelensky recebeu um telefonema. As classes dominantes da Europa, por outro lado, parecem ter sido completamente apanhadas de surpresa. Poucas semanas antes, o enviado especial dos EUA para a Ucrânia, Keith Kellogg, estava correndo de um lado para o outro entre Kiev e as capitais europeias, ouvindo os principais diplomatas e primeiros-ministros, ponderando sobre suas sugestões e prometendo sanções mais duras à Rússia.

Mas isso é muito mais do que apenas uma derrota para o Ocidente na Ucrânia. É o fim do “Ocidente” como tal. / Imagem: Domínio público

Agora ficou claro: os europeus estavam sendo enganados o tempo todo! Trump não tinha tais intenções, e se as conversas de Kellogg serviram a algum propósito, foi convencer Trump de que o lugar dos europeus é o mais longe possível da mesa de negociações.

Após seu amável intercâmbio, Trump e Putin imediatamente colocaram em marcha as negociações. Enquanto Kellogg percorria a Europa, outro enviado de Trump, Steve Witkoff, estava secretamente em Moscou negociando um gesto amigável: uma troca de prisioneiros. Após o anúncio dessa medida, o Secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, expôs publicamente a posição de negociação dos EUA, que consiste no seguinte:

  • A Ucrânia terá que fazer concessões territoriais, e o “objetivo irrealista” e a “meta ilusória” de retornar às fronteiras pré-2014 deverão ser abandonados. As futuras fronteiras terão que se basear em “uma avaliação realista do campo de batalha”;
  • As futuras “garantias de segurança” para a Ucrânia não incluirão tropas dos EUA no terreno. Em vez disso, tropas europeias terão que intervir, embora sem a cobertura do Artigo 5 da Otan;
  • Uma futura força de manutenção da paz incluirá também tropas não pertencentes à Otan – na prática, isso significaria a presença de forças aliadas à Rússia estacionadas na Ucrânia;
  • A questão da expansão da Otan para o leste não incluirá a Ucrânia.

Essa é apenas a posição inicial dos EUA nas negociações, e Trump já concedeu à Rússia todos os seus principais objetivos de guerra: suas reivindicações territoriais e, mais importante, o fim da expansão da Otan para o leste.

Esta é uma guerra pela qual Trump simplesmente não tem interesse, um conflito no qual o Ocidente sofreu uma derrota completamente humilhante. Os ucranianos estão agora derrotados. Seu exército enfrenta escassez de tropas e está desmoralizado. Novos batalhões mecanizados desmoronaram um após o outro assim que entraram em combate. A situação é tão crítica que aviadores qualificados estão sendo enviados para a linha de frente para lutar como soldados de infantaria. A Rússia está apertando o cerco.

Mas isso é muito mais do que apenas uma derrota para o Ocidente na Ucrânia. É o fim do “Ocidente” como tal. Trump sinalizou que não está preocupado com a influência russa na Europa Oriental ou com o destino do continente como um todo. No entanto, todo o propósito da Otan como aliança militar é precisamente conter a Rússia e impedir que ela exerça influência sobre a Europa.

Com os EUA se afastando desta guerra, mesmo que a Otan ainda mantenha sua estrutura externa, na prática, ela deixou de funcionar.

Não poderia haver contraste maior entre como essa guerra realmente está terminando e como os liberais sonharam que ela terminaria. Supostamente, deveria terminar com a Rússia paralisada, com a queda de Putin e até mesmo com a dissolução da Federação Russa. Em vez disso, o que estamos vendo? O desfecho desta guerra se tornou o desfecho de toda uma ordem mundial vigente desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

A cortina está caindo sobre um relacionamento de décadas entre os EUA e a Europa, no qual os EUA sustentaram política, econômica e culturalmente seus aliados europeus como parte de uma “ordem baseada em regras” liberal, sob cuja bandeira o imperialismo dos EUA se impôs ao mundo inteiro.

Trump não poderia ter sido mais claro sobre sua política: América em primeiro lugar. Os interesses americanos na Europa são pequenos comparados aos seus interesses em outras partes do mundo e, ainda assim, os EUA, com uma dívida federal crescente, continuam subsidiando os sistemas de assistência médica e de benefícios europeus, permitindo que eles se aproveitem do poderio militar americano sob o guarda-chuva da Otan — e para quê? Esse é o raciocínio de Trump. Para ele, a indústria e a segurança militar europeias são irrelevantes. Na verdade, faz muito mais sentido fechar um acordo com Putin para aumentar a produção de gás e petróleo, reduzindo assim os preços da energia e cumprindo sua promessa de combater a inflação.

Assim, Trump não apenas destruiu a aliança transatlântica que sustentou a Europa por 80 anos, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, como também está essencialmente se alinhando a Putin contra a Europa!

Os europeus estão em um colapso nervoso coletivo, o que é bastante compreensível. Após a notícia bombástica do telefonema entre Trump e Putin, esperavam recuperar parte dos holofotes e garantir um lugar na mesa de negociações exibindo os “valores compartilhados entre EUA e Europa” na Conferência de Segurança de Munique, na semana passada.

Em resposta, o vice-presidente de Trump, J.D. Vance, deu-lhes mais do que esperavam, efetivamente declarando guerra a todo o establishment liberal dominante da Europa.

O secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, então expôs publicamente a posição de negociação dos EUA. Trump cedeu a todos os principais objetivos de guerra da Rússia: seus objetivos territoriais e, mais importante, o fim da expansão oriental da Otan / Imagem: Domínio público

“A ameaça que mais me preocupa em relação à Europa não é a Rússia, não é a China, é a ameaça interna”, disse Vance. Ele poderia muito bem ter apontado para sua audiência e declarado: “Vocês são a ameaça!”

Embora envolto em retórica de guerra cultural, o conteúdo de seu discurso foi claro: a aliança transatlântica acabou, e não haverá como se esconder sob a bandeira dos “valores comuns” para mantê-la unida. Ele criticou duramente a hipocrisia dos chamados “valores democráticos” da União Europeia e não escondeu seu desprezo ao atacar a Comissão Europeia por anular as eleições na Romênia. “Se sua democracia pode ser destruída com algumas centenas de milhares de dólares em publicidade digital de um país estrangeiro”, provocou, “então ela nunca foi muito forte para começo de conversa.”

Todo o discurso foi carregado de desdém, especialmente pelos alemães, com Vance deixando claro o apoio do governo Trump à Alternative für Deutschland (AfD) nas eleições deste fim de semana.

Em vez de encerrar a conferência com uma demonstração de força política dos europeus, o evento terminou com seu presidente em lágrimas!

As negociações já começaram em Riad. No primeiro dia, russos e americanos concordaram em “abordar os temas irritantes” em suas relações bilaterais… O que é uma maneira um tanto indelicada de se referir a Zelensky, Starmer, Macron e o resto da gangue, que acompanham as negociações como o restante de nós: pela imprensa.

Certamente, ucranianos e europeus se tornaram irritantes – e não há muito que possam fazer! Zelensky tentou, sem sucesso, invadir o evento. Diante da negativa, passou a falar com a imprensa turca.

Trump respondeu dizendo claramente a Zelensky que ele não deveria se surpreender por não ter sido convidado para as negociações, já que teve tempo suficiente antes de 2022 para negociar com os russos – e não o fez! Se quisesse dar à Ucrânia uma voz legítima para falar em seu nome, Trump o aconselhou a começar convocando eleições, suspensas desde o início da guerra.

Enquanto isso, numa tentativa de fazer com que suas vozes fossem ouvidas por americanos e russos, Macron convocou uma conferência de emergência no Palácio do Eliseu, reunindo potências europeias… Não todas, note-se, mas apenas aquelas com maior probabilidade de concordar com uma posição comum. Por exemplo, não houve convite para Orban, da Hungria, nem para Fico, da Eslováquia.

E como foi essa demonstração de “unidade”? Ridícula. Ela expôs a completa fratura e impotência do continente europeu.

Os americanos pediram que os europeus atuassem como mantenedores da paz para garantir a segurança da Ucrânia, guardando as novas fronteiras. No entanto, os europeus sequer conseguiram concordar com uma posição comum sobre o tema. Meloni, da Itália, chegou atrasada. Scholz, da Alemanha, expressou irritação por isso estar sendo discutido… antes de ir embora mais cedo. Até os belicosos poloneses manifestaram aversão à ideia de enviar forças de paz.

Apenas Macron e Starmer foram ingênuos o suficiente para expressar disposição em enviar tropas. Mas isso é apenas retórica, já que Starmer condicionou sua promessa à presença de tropas americanas como “salvaguarda” — algo que Trump já descartou.

Agora está claro que os europeus não podem depender da convergência de seus interesses com os dos EUA / Imagem: Presidente da Ucrânia, Wikimedia Commons

O fato é que o Exército Britânico está em um estado tão lamentável que é duvidoso que Starmer pudesse enviar tropas, mesmo que quisesse. Generais britânicos aposentados apontaram que tal operação exigiria pelo menos 30 mil soldados britânicos. No entanto, considerando que a Grã-Bretanha tem apenas 70 mil militares no Exército e muitos deles são funcionários administrativos, isso significaria estacionar a maior parte das forças britânicas na Ucrânia!

Lavrov deixou bem claro que não aceitaria qualquer tropa europeia estacionada na Ucrânia após a guerra – e, como os europeus sequer conseguem chegar a um consenso sobre essa questão, tornaram muito fácil para os americanos concordarem com seus termos.

Todos os europeus concordaram, é claro, em aumentar os gastos com armamentos, algo que Trump exige há muito tempo. Mas até nisso há impasses. Macron tem pressionado por uma dívida europeia comum para financiar o rearmamento, proposta que a classe dominante alemã não está disposta a aceitar.

Enquanto isso, de onde viriam as armas? Agora está claro que os europeus não podem mais contar com o alinhamento contínuo de seus interesses com os dos EUA. A única solução seria desenvolver uma indústria aeroespacial autônoma, independente dos padrões, softwares e assistência técnica americanos. Essa é a proposta de Macron. Outros europeus, porém, não demonstram o mesmo entusiasmo. Trump foi categórico: isso não é uma opção. Se souberem o que é melhor para eles, comprarão armas de fabricação americana – e em grandes quantidades –, garantindo assim sua dependência permanente da indústria de defesa dos EUA.

Qual o significado de tudo isso? O ritmo vertiginoso dos eventos das últimas semanas, que vêm reconfigurando o mundo, é a culminação de processos em curso há décadas.

O sistema capitalista vem cambaleando de crise em crise desde 2008, quando o Estado interveio para evitar um colapso total após a crise financeira. Dívidas enormes e insustentáveis foram acumuladas. Novas crises, como a pandemia de Covid-19, ampliaram esse fardo crescente. O dia nefasto em que essa dívida teria que ser paga foi adiado repetidamente, como se pudesse ser postergado indefinidamente.

Enquanto isso, o imperialismo dos EUA também vem perdendo terreno gradualmente, num longo processo de declínio relativo, à medida que novos rivais, como Rússia e China, surgiram e o desafiaram.

Esses processos podem se arrastar por muito tempo sem aparentar causar mudanças fundamentais. Mas, no final, tudo explode de uma vez. Um ponto de inflexão foi atingido. Estamos vivendo essa transformação agora.

Trump derrubou completamente a política tradicional do imperialismo dos EUA, que por muitos anos manteve um ar de irrealidade. A chamada “ordem baseada em regras”, de viés liberal – o disfarce sob o qual os EUA tentaram impor seu domínio global – tornou-se completamente inviável.

Trump reverteu completamente a política estabelecida pelo imperialismo dos EUA / Imagem: Domínio público

Trump defende o recuo e o isolacionismo. Com isso, vem a retirada do apoio ao capitalismo europeu, que se tornou uma nota de rodapé nos interesses do capital americano. Durante 80 anos, a segurança, a economia, a política e até a cultura da Europa giraram em torno do apoio dos EUA. Não mais. Os americanos agora têm desafios mais importantes em outras partes do mundo. Sem esse suporte, como explicamos anteriormente, o continente europeu ficou completamente exposto.

Embora não esteja morta, a Otan agora é apenas uma casca vazia. Assim, os europeus pretendem assumir ainda mais dívidas para financiar um rearmamento frenético, buscando desesperadamente uma saída. No entanto, os últimos dias expuseram aquilo que, fundamentalmente, impede o capitalismo europeu de avançar: trata-se de um mosaico de pequenas economias, pouco competitivas em escala global, sem influência, com interesses nacionais divergentes que se afastam rapidamente sem a sustentação externa dos EUA. Com isso, essas pequenas nações serão empurradas para diferentes direções à medida que avançamos.

No passado, a UE, o BCE e outras instituições intervieram para resgatar países à beira da falência, com o objetivo de manter a União Europeia unida. Vimos isso durante a crise da dívida da zona do euro e, mais recentemente, no programa de recuperação pós-pandemia de Covid-19. Grandes quantias foram canalizadas para a Itália, por exemplo, para garantir sua permanência na UE, já que o país estava entre os membros mais próximos da insolvência, enquanto os Fratelli d’Italia se aproximavam do poder.

Mas será que poderão repetir esse tipo de intervenção? Entre as classes dominantes da Europa, cresce o sentimento de que devem se resguardar primeiro, mesmo que às custas do restante do continente. Podemos ver, nos próximos anos, a ascensão de políticas como “Alemanha Primeiro”, “França Primeiro” e assim por diante, o que pode levar até mesmo à dissolução completa da União Europeia.

Enquanto Trump fala em suspender as sanções contra a Rússia, ele não abandonou sua ameaça de impor tarifas à Europa. Sem o apoio americano, a Rússia se torna agora a grande potência militar na fronteira europeia – e cobrará seu preço por isso. Esses pequenos países serão engolidos pelas grandes potências: EUA, China e Rússia.

A Europa é o berço do capitalismo. Agora, em meio à agonia de morte desse sistema, o continente se encontra no centro da tempestade, sendo dilacerado, sem perspectivas dentro desse modelo econômico.

Tudo isso tem enormes consequências sociais para o continente. A Europa já enfrenta uma crise de dívida, mesmo antes de novos gastos militares serem adicionados à equação. A classe dominante sabe o que precisa ser feito: atacar brutalmente a classe trabalhadora. No entanto, Macron está politicamente enfraquecido, o Reform UK cresce nas pesquisas no Reino Unido, e o AfD parece pronto para alcançar o segundo lugar na Alemanha. O mesmo acontece em muitos outros países.

A ascensão desses partidos não é apenas um reflexo de uma “guinada à direita” na sociedade. Trata-se de uma manifestação da raiva crescente contra toda a classe dominante e o establishment. A ausência de uma alternativa de esquerda – ou melhor, as traições da própria esquerda, que se aliou aos liberais desde 2008 – permitiu que esse cenário se desenhasse. No entanto, esse quadro prepara o terreno para mudanças ainda mais bruscas à esquerda em todo o continente, bem como para explosões revolucionárias que abalarão os alicerces do capitalismo na Europa — alicerces que já estão rachando e se fragmentando diante de nossos olhos.

TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.