A crise orgânica do capitalismo – Parte 1

“Onde estavam os Marxistas em 2008, quando a queda de Lehman Brothers quase provocou o colapso do capitalismo?”, se pergunta um desconcertado Ralph Atkins, o editor de mercados de capitais do Financial Times. Bem, ao contrário do Sr. Atkins e do seu círculo de partidários do livre mercado, não estávamos em estado de total desconcerto. Tínhamos previsto este acontecimento.

““Onde estavam os Marxistas em 2008, quando a queda de Lehman Brothers quase provocou o colapso do capitalismo?”, se pergunta um desconcertado Ralph Atkins, o editor de mercados de capitais do Financial Times. Bem, ao contrário do Sr. Atkins e do seu círculo de partidários do livre mercado, não estávamos em estado de total desconcerto. Tínhamos previsto este acontecimento.

Enquanto o capitalismo mergulhava em profunda depressão, estávamos explicando a uma audiência cada vez maior que a crise, que os economistas burgueses negavam que poderia ocorrer, foi uma confirmação impressionante da correção das ideias de Marx. Essas ideias, que haviam sido repetidamente declaradas como obsoletas pelos apologistas do capitalismo, se mostraram surpreendentemente relevantes, em total contraste com a teoria econômica burguesa e em especial com a desacreditada hipótese da eficiência do mercado.

Em 2008, o capitalismo sofreu o que muitos já reconheceram como a crise mais profunda desde a década de 1930 e, em termos de alcance, possivelmente na história. O colapso inicial no comércio mundial foi muito pior do que no primeiro ano da Grande Depressão. Os estrategistas burgueses ficaram em estado de pânico abjeto. “A produção industrial global acompanha horrivelmente de perto o declínio da produção industrial durante a Grande Depressão”, escreveu Martin Wolf, economista-chefe do Financial Times. “Sem a Europa, o declínio da produção industrial da França e da Itália foi pior do que a esta altura na década de 1930. O declínio nos EUA e no Canadá também está muito perto daquele nos anos 1930. Mas o colapso industrial do Japão foi muito pior do que nos anos 1930, apesar de uma recuperação muito recente” (FT, 16/09/09).

Alguns chegaram a ousar comparar a recessão a uma parada cardíaca quase fatal. Mas o paciente enfermo, com a ajuda de resgates estatais de emergência, logo foi transferido de seu leito de morte para uma unidade de tratamento intensivo. Em igualdade de condições, eles acreditavam que o capitalismo se recuperaria desta crise da mesma forma como nas recessões cíclicas do passado. Uma recuperação da recessão era vista como inevitável. Contudo, as coisas não são sempre iguais e o caráter das crises não é sempre o mesmo. Foi um erro ver esta crise como uma simples repetição das anteriores. Ademais, é errado julgar o estado de um organismo simplesmente a partir de sua aparência exterior. Temos de descobrir sua verdadeira natureza, sua evolução e, sobretudo, suas profundas contradições internas, e ver como essas contradições operam na prática. Isto significa adotar não uma abordagem mecânica, que domina a perspectiva burguesa, mas uma abordagem dialética.

Situação anterior a 2008

Mesmo no período anterior a 2008, o auge do capitalismo se manteve em grande medida artificial, o que mostra como as contradições estavam se manifestando mesmo nesta etapa. O capitalismo já não podia mais se manter como no passado. O investimento na capacidade produtiva foi cada vez mais substituído em todos os aspectos pela especulação e jogos de azar. “Bolhas manifestamente insustentáveis e o afrouxamento dos padrões de crédito em meados da década passada, junto com o dinheiro muito fácil, foram suficientes para impulsionar somente um crescimento econômico moderado”, explicou Lawrence Summers, o ex-secretário do tesouro no governo de Bill Clinton. Estranhamente, medidas excepcionais somente produziram resultados modestos. O sistema capitalista não estava funcionando como antes. Mesmo então, isto resultou ser insustentável e somente teve êxito em preparar o caminho para uma crise devastadora.

A catástrofe de 2008 não foi, certamente, uma crise comum. Dada a sua profundidade e severidade, sem dúvida não haveria uma recuperação rápida, o que os economistas burgueses sérios foram forçados a reconhecer. O crédito, que serviu para prolongar o auge pré-crise, agora se transformou em uma montanha de dívidas. A recessão de fato marcou um ponto de viragem fundamental, como no crash de 1929, e serviu para inaugurar uma época totalmente nova para o capitalismo moderno, mais parecida com a Grande Depressão dos anos 1930. Esta não foi, portanto, nenhuma crise “normal”, onde, com pequenos e inteligentes ajustes, tudo voltaria como antes. Tal crise não correspondia aos livros de texto econômicos ou aos modelos de computador.

Sempre fiéis, desde o verão de 2009 os comentaristas burgueses estavam procurando desesperadamente ao redor por sinais dos “brotos verdes”. Mas, todas as vezes ficaram desapontados. Falsos alvoreceres após outros foram proclamados. Estes eruditos cavalheiros e damas não entenderam nada, e menos ainda a natureza desta crise capitalista. Atribuem a crise a todo tipo de coisas – a tudo, menos ao fato de que esta era um sintoma de um sistema social agonizante. Os Marxistas, por outro lado, entenderam muito bem que a velha “normalidade” havia desaparecido e que o capitalismo tinha entrado em uma agonia de morte “secular”, de longo fôlego, quando a crise é a regra e não a exceção.

Sem crise “final”

Diferentemente dos estalinistas do Terceiro Período, que declararam que 1929 era a “crise final” do capitalismo, os Marxistas não reconhecem tal coisa de “crise final”. “As crises capitalistas não são numeradas, nem é indicado com antecedência qual delas será a ‘última’”, explicou Trotsky (Trotsky, sobre a França, p. 71). O sistema capitalista pode continuar mesmo mancando, não importa a profundidade da crise, causando cada vez mais miséria e degradação. Sem a sua derrubada pela classe trabalhadora, a continuação do capitalismo lançará a humanidade no caos e na barbárie, com novas crises e catástrofes.

Naturalmente, recuperações, contudo anêmicas ou parciais, certamente podem ocorrer, mesmo em períodos de crise profunda, como a atual. Isto não contradiz a análise geral de um capitalismo doentio e declinante, causando miséria cada vez maior. Mesmo um organismo em agonia mostra ocasionalmente alguns movimentos espasmódicos de vida. Isto aconteceu nos anos 1930, durante a “Recuperação Roosevelt”, mas não alterou o caráter fundamental do período, que era de crise, depressão e desemprego em massa. Em qualquer caso, a recuperação de 1934-37 nos EUA não se prolongou, apesar das ilusões em contrário, e foi seguida por um novo colapso. “Surgiram esperanças de que o processo de crescimento econômico interrompido pela crise seria novamente restabelecido. Mas, mais cedo do que se poderia esperar, a hora de uma nova crise golpeou”, explicou Trotsky no momento. “Começou a partir de um nível mais baixo do que a crise de 1929 e está se desenvolvendo em ritmo mais rápido. Isto demonstra que não é uma recessão acidental, nem mesmo uma depressão conjectural, mas uma crise orgânica de todo o sistema capitalista” (Trotsky, 29 de novembro de 1937, ênfase nossa).

Usamos esta descrição de crise orgânica do capitalismo de Trotsky muitas vezes para descrever a natureza da presente época. Isto não deve ser confundido, naturalmente, com o termo de Marx, a composição orgânica do capital, que se refere simplesmente às relações entre trabalho vivo e trabalho morto (a ratio entre capital constante e capital variável). A crise orgânica do capitalismo é uma descrição de uma profunda crise histórica que reflete a desintegração das contradições inerentes ao sistema, ou seja, um sistema em declínio terminal.

Explicação cíclica da crise

Enfatizamos este ponto porque há aqueles que, mesmo se reivindicando Marxistas, veem as coisas em termos de ciclos econômicos e ciclos de lucro. Eles explicam a severidade da crise atual como “enraizada” nas debilidades e desequilíbrios do auge anterior, e não porque o capitalismo alcançou seus limites. Embora tenha havido uma especulação selvagem no período anterior, isto não explica a natureza da crise. Tal explicação é superficial e ignora a profunda natureza histórica desta crise do sistema capitalista.

Esta visão está muito ligada à ideologia do reformismo, que reconhece estas “debilidades e desequilíbrios” no capitalismo e busca corrigi-los. Os reformistas aceitam a explicação cíclica da crise, em oposição à crise histórica do capitalismo. Para eles, uma crise cíclica significa que os anos de auge voltarão e tudo caminhará bem. É por isso que os reformistas, bem como aqueles que abandonaram a política revolucionária, estão atraídos pelos ciclos de Kondratiev. Esta teoria é pouco diferente das estranhas ideias de Henry L. Moore, cuja teoria de “ciclos de geração” de oito anos estava vinculada à órbita de Vênus, que interceptava o Sol e a Terra, produzindo crises econômicas. Outro economista, W. Stanley Jevons, culpou a crise econômica pela existência das manchas solares.

Todas as teorias cíclicas de equilíbrio assumem que, sem importar o quanto as coisas piorem, sempre há uma tendência natural para restabelecer o equilíbrio. Para eles, o desenvolvimento capitalista é um caso de ganhos e perdas que se compensam. “Bem, existem problemas, mas no final tudo ficará bem; então, por que se preocupar com este absurdo de revolução socialista?”.

Nos anos 1930, a Grande Depressão resultou do colapso total e do impasse do sistema capitalista mundial, que se mostrou incapaz de desenvolver as forças produtivas como antes. Ela teve o mesmo caráter da crise atual: uma crise orgânica. Na década de 1930, a “solução” da crise capitalista veio através da guerra mundial e da destruição em massa das forças produtivas. Hoje, com o atual equilíbrio de forças e com a existência de armas nucleares, uma guerra mundial “solucionadora” está descartada. Com a guerra mundial fora da agenda, isto significa que todas as contradições serão internalizadas e que enfrentaremos anos, senão décadas, de austeridade selvagem e crises – pelo menos até que a classe trabalhadora tome o poder. Um “Verão” a la Kondratiev está descartado.

A recuperação mais fraca da história

Apesar da euforia atual da imprensa sobre a atual e fraca “recuperação”, a economia mundial continua em estado de crise, muito longe das expectativas previstas pelos estrategistas do capital. Até mesmo os estrategistas burgueses reconhecem este fato. Um recente e sombrio editorial do austero Financial Times abria com estas palavras: “Nos últimos cinco anos, a economia mundial esteve em crise” (FT, 19/04/2014). A “recuperação”, tal como é, é a recuperação mais fraca da história – sim, da história, o que diz muito sobre a natureza real da crise.

Hoje, depois de um impulso inicial, a economia japonesa foi reduzida a um ritmo muito lento, e ameaça reverter como nos vinte anos anteriores. A Europa continua a definhar em estancamento ou recessão aberta, com a potência alemã mostrando sinais alarmantes de exaustão e com o desemprego na Europa em níveis historicamente elevados. Há pouco espaço para melhorias. “Estamos caminhando de uma crise aguda para uma crise crônica”, explicou Philippe Legrain, um ex-assessor do Presidente da Comissão Europeia (FT, 8/4/2014). A crise do Euro simplesmente está se movendo da periferia para o centro, enquanto as preocupações se espalham à França e à Itália.

Mesmo nos EUA, a situação está longe de ser satisfatória, onde o crescimento mais uma vez reduziu a velocidade e onde a proporção de pessoas empregadas recentemente atingiu seu nível mais baixo desde 1978, enquanto milhões de homens e mulheres aptos abandonam a força de trabalho e desaparecem dos números do desemprego. 20 milhões estão desempregados ou subempregados, e entre 37 milhões e 50 milhões vivendo na linha da pobreza. O crescimento dos EUA desde 2010 tem flutuado entre deprimentes 1,8% e 2,4%, uma pobre performance quando comparada às recuperações anteriores. O PIB dos EUA está mais de 10% abaixo do que tinha sido previsto nas tendências antes da recessão. Na Grã-Bretanha, não está muito longe dos 20% abaixo daquelas tendências.

Com a estagnação das economias ocidentais, os capitalistas levantaram os olhos desesperadamente para as economias BRIC, como ajuda para retirá-los deste pântano. Mas estas economias estão agora experimentando uma desaceleração. A dívida familiar no Brasil, China, Cingapura, Tailândia e Turquia aumentou mais de 40% desde 2008. Segundo o FMI, no ano passado, “o déficit projetado no Brasil, Índia e China é similar aos golpes às taxas de produção que as economias avançadas sofreram no período pós-crise” (FT, 9/10/2013). O Financial Times explicou que “a razão para se ter medo é que o mundo parece que vai enfrentar anos de crescimento abaixo da média. O surto de crescimento dos últimos 30 anos dos mercados emergentes está chegando ao fim” (FT, 19/4/2014). Com todas as saídas bloqueadas, o sistema está, na melhor das hipóteses, aprisionado na estagnação de longo prazo, o que será acompanhado por um devastador e longo impacto sobre os níveis de vida. Ou seja, até a próxima recessão mundial.

Medidas desesperadas

Além do desespero, os capitalistas foram reduzidos a tomar medidas sem precedentes, não somente para evitar outra Grande Depressão, como também para manter o sistema capitalista funcionando. Precisa-se apenas considerar que o atual e magro crescimento foi obtido somente como resultado do maior programa de apoio monetário da história. E isto apesar das virtudes da economia de mercado e da livre empresa, que se supunham ser magníficos exemplos para todos nós! Estes são mares desconhecidos. O sistema capitalista em crise está sendo impulsionado artificialmente pela máquina de apoio vital de um Banco Central, que está despejando trilhões de dólares no sistema financeiro. Contudo, quanto mais essas medidas extraordinárias são usadas para impulsionar o sistema, menos impacto elas produzem, como um viciado em drogas que necessita de doses cada vez maiores para obter o mesmo resultado. Há cinco anos, precisava-se de mais de 1 dólar de dívida para gerar 1 dólar de crescimento na China. Em 2013, necessitava-se de perto de 4 dólares de dívida para gerar 1 dólar de crescimento – e um terço da nova dívida agora vai para pagar dívidas velhas. A taxa de crescimento da China caiu ao nível mais baixo em mais de 20 anos, enfraquecendo as importações e causando estragos no Brasil, África do Sul, Indonésia, Chile, Colômbia, Rússia e Peru. A maior parte deste dinheiro “novo” acaba em negócios especulativos e aventura de alto risco, e não no investimento produtivo, causando todo tipo de novas contradições.

Nos EUA, os efeitos da Expansão Quantitativa (QE – Quantitative Easing), de início bombeando 85 bilhões de dólares no sistema bancário por mês, teve resultados dúbios e o programa está sendo gradual e cautelosamente reduzido. Os balancetes da Reserva Federal agora alcançaram proporções assombrosas. Na Europa, enfrentado aos riscos de deflação, o Banco Central Europeu está pensando em embarcar em sua própria versão de imprimir dinheiro através da compra de títulos. Os alemães, no entanto, estão relutantes, devido ao medo da inflação, e são eles que têm a chave do cofre.

No final, todas as tentativas de aplicar esta morfina monetária longe de tirar o sistema capitalista da crise causaram grave mal estar, especialmente nos mercados emergentes. Em seu semestral Informe de Estabilidade Financeira Global, o FMI observou que “a redução progressiva de certos apoios políticos extraordinários não tem sido acompanhada pela preparação adequada de um novo ambiente de crescimento normal e autossustentável” (FT, 10/4/2014). Assim que anunciaram que a torneira de dinheiro barato estava para ser fechada, todo o dinheiro “quente” começou a desaparecer, causando desvalorizações e turbulências em seu rastro.

Mais uma vez, as taxas de juros se mantiveram artificialmente baixas para encorajar o crescimento. Na Grã-Bretanha, a taxa oficial de juros se encontra em nível mais baixo que há 300 anos, com poucas perspectivas de aumentar em breve. Nos principais países capitalistas, elas estão em nível próximo de zero. Isto não tem precedentes e mostra a profundidade da crise atual e como ela é qualitativamente diferente das crises mais recentes. Agora, o Banco Central Europeu está ameaçando se mover para onde nenhum banco central foi antes, o corte de suas principais taxas de juros abaixo de zero para promover o crescimento. A ideia de se pagar a um banco para guardar suas poupanças parece bizarra, mas é um reflexo dos tempos pouco convencionais em que estamos vivendo.

Segundo o novo livro de James Richards, um ex-conselheiro geral do Fundo de Gestão de Capital de Longo Prazo, que colapsou espetacularmente em 1998, já estamos vivendo em uma nova depressão. Para Richards, a economia dos EUA está como um alpinista em uma montanha de 28 mil pés de altura, com uma fenda de um lado e um precipício abrupto do outro. Insistir na escalada torna a coisa ainda mais difícil, mas voltar – e abandonar a QE – significa enfrentar a dor evitada em 2009. Não é uma má analogia. Seu destino não está em suas mãos.

Ademais, a OCDE e o FMI advertiram que o mundo capitalista corre o risco de cair durante anos, senão durante décadas, em crescimento mais baixo (“abaixo da média”) e em desemprego mais alto, a menos que os governos sigam em frente com as reformas estruturais radicais. Com um crescimento tipo depressão e alguns 50 milhões já desempregados nos principais países capitalistas, os informes apontam que o pior está por vir. O atual desemprego não tem caráter temporário, como no passado; não é meramente um desemprego cíclico, mas um desemprego estrutural, a expressão mais mortal da decadência do capitalismo. O capitalismo está tão quebrado e enfermo que não pode mais pôr em uso as forças produtivas, incluindo a força de trabalho humana a sua disposição. Se, no alvorecer do capitalismo, os trabalhadores ignorantes e famintos quebravam as máquinas, hoje são os capitalistas que são Ludditas, os que destroem as máquinas e deixam as pessoas sem trabalho, não como medida temporária, mas permanentemente. O desemprego de longa duração se tornou uma ferida aberta em todos os lugares. Agora, eles falam levianamente de uma “Nova Era da Máquina”, da tecnologia inteligente que eliminará as franjas dos postos de trabalho, causando ondas de choque de desemprego, derrubando os salários e fazendo declinar o nível de vida. Este é o pesadelo que está sendo preparado pelo capitalismo em seu leito de morte.

Oscilações clássicas

Nos anos 1930, Trotsky fez um ponto crítico assinalando a diferença entre “uma crise orgânica” de todo o sistema e as crises cíclicas normais, que faziam parte integrante do sistema capitalista desde seus inícios. O ciclo de boom/recessão do capitalismo é o ritmo natural do sistema, da mesma forma como a inalação de oxigênio e a exalação de dióxido de carbono do corpo humano. As oscilações críticas são inevitáveis, e são processos que acompanham o padrão cíclico de produção e troca sob o capitalismo.

Frederick Engels deu uma descrição clássica do ciclo normal de boom/recessão em seu livro Anti-Dühring:

“O enorme poder de expansão da indústria de grande escala, em comparação com o poder de expansão dos gases, é uma mera brincadeira de crianças; agora nos aparece como necessidade para a expansão, qualitativa e quantitativa, que ri de toda pressão contrária. Esta pressão contrária vem do consumo, venda, mercados para os produtos da indústria de grande escala. Mas a capacidade do mercado de se expandir, tanto extensiva quanto intensivamente, é diretamente controlada por muitas outras e menos eficazes leis. A expansão do mercado não pode seguir o ritmo de expansão da produção. A colisão se torna inevitável, e como não se pode dar nenhuma solução, desde que não destrua o próprio modo de produção capitalista, se torna periódica. A produção capitalista traz em si mesma um novo ‘círculo vicioso’ …

“A estagnação dura anos, tanto as forças produtivas quanto os produtos são desperdiçados e destruídos em grande escala, até que a massas acumuladas de mercadorias são por fim lançadas em uma depreciação mais ou menos considerável, até que a produção e a troca comecem gradualmente a se mover novamente. Pouco a pouco, o ritmo se acelera; torna-se um trote; o trote industrial passa ao galope, e o galope, por sua vez, passa para um mergulho de cabeça em uma completa corrida de obstáculos industrial, comercial, de crédito e especulativa, só para aterrissar mais uma vez no final, depois dos mais vertiginosos saltos – na vala de uma queda. E assim por diante, uma e outra vez”.

Esta é uma descrição excelente do ciclo de boom/recessão. O desenvolvimento capitalista toma esta forma cíclica da natureza anárquica da produção que sempre aumenta ao ponto em que se choca com a barreira do consumo limitado. Como explicou Engels, as leis da produção agem mais vigorosamente que as leis do consumo. Os investimentos massivos que ocorrem durante um boom derramam uma quantidade crescente de mercadorias que, em determinada etapa, começa a ultrapassar a capacidade de consumo da sociedade, levando assim a uma crise de superprodução – superprodução de consumidores e de bens de capital para a finalidade da produção capitalista. A finalidade da crise capitalista é a de eliminar esta superprodução e preparar o caminho para um novo boom.

Sob o capitalismo, todo boom contém dentro de si mesmo as sementes de uma nova crise, “Nestas crises, grande parte, não somente dos produtos existentes como também das forças produtivas previamente criadas, são periodicamente destruídas”, explicaram os autores do Manifesto Comunista. “Nestas crises irrompe uma epidemia que, em todas as épocas anteriores, teria parecido um absurdo – a epidemia da superprodução”. Estas recessões são exclusivas ao sistema capitalista e contrastam com as crises de sub-produção das sociedades pré-capitalistas.

O excesso de produção emerge das contradições da economia de mercado e da divisão da sociedade em classes mutualmente conflitantes. A classe trabalhadora, que produz todos os valores, não pode comprar de volta os produtos que produz, o que, em determinado ponto, se torna uma barreira para o desenvolvimento econômico provocando a crise. Os capitalistas logram contornar esta contradição fundamental, pelo menos temporariamente, reinvestindo a mais-valia extraída do trabalho da classe trabalhadora, criando, dessa forma, novos mercados. Contudo, isto, por sua vez, cria uma maior capacidade produtiva global e serve para exacerbar as novas crises quando elas surgem.

“As condições de exploração imediata e de realização desta exploração não são idêntica”, explicou Marx. “Não estão separadas somente no tempo e no espaço, também estão separadas teoricamente. A primeira é apenas restringida pelas forças produtivas da sociedade, a última pela proporcionalidade entre os diferentes ramos da produção e pelo poder de consumo da sociedade. E isto não é determinado nem pelo poder de produção absoluto nem pelo poder de consumo absoluto, mas sim pelo poder de consumo dentro de um determinado quadro de condições antagônicas de distribuição, que reduzem o consumo da vasta maioria da sociedade a um nível mínimo, capaz de variar somente dentro de limites mais ou menos estreitos… Mas, quanto mais se desenvolve a produtividade, mais entra em conflito com a estreita base em que as relações de consumo descansam” (Marx, O Capital, Livro 3).

“Deixem-nos igualmente ignorar”, afirma Marx, “os negócios fraudulentos e as transações especulativas que o sistema de crédito favorece. Neste caso, uma crise seria explicável somente em termos de uma desproporção na produção entre os diferentes ramos e de uma desproporção entre o consumo dos próprios capitalistas e sua acumulação. Mas, como as coisas realmente são, a substituição dos capitais investidos na produção depende em grande medida da capacidade de consumo das classes não produtivas; enquanto que a capacidade de consumo dos trabalhadores é restringida, em parte, pelas leis que regem os salários e, em parte, pelo fato de que eles são somente utilizados unicamente na medida em que se podem empregar em benefício da classe capitalista. A razão final de todas crises reais continua sendo a pobreza e o consumo restrito das massas, devido ao movimento da produção capitalista de desenvolver as forças produtivas como se somente a capacidade absoluta de consumo da sociedade estabelecesse um limite para elas” (Marx, O Capital, Livro 3, ênfase nossa).

Experimentamos uma dessas crises de superprodução em 2008-9, quando a economia capitalista mundial sofreu uma recessão devastadora. Deram um jeito para adiar esta recessão durante décadas por todos os tipos de meios, mas, no final, os capitalistas simplesmente agravaram a crise quando ela finalmente chegou. Como o Rei Canuto, foram incapazes de conter a maré. O comércio mundial colapsou em 30% em questão de meses, e a produção industrial desabou. Há muitas razões para a crise, mas a razão fundamental foi que a produção havia superado completamente a capacidade da sociedade de consumir os produtos que se vertem no mercado mundial, apesar da expansão em massa da dívida e do crédito barato.

O sistema de crédito

O crédito certamente permitiu ao sistema capitalista ir além de seus limites durante certo tempo, até que o castelo de cartas veio abaixo. O crédito não se cria no vazio, e tem que ser pago, com juros. Ele tem seus limites, como tudo o mais. Como explicou Marx: “Se o sistema de crédito aparece como a principal alavanca da superprodução e da especulação excessiva no comércio, isto se dá simplesmente porque o processo de reprodução, que é elástico por natureza, agora é forçado a ir aos seus limites extremos… Ao mesmo tempo, acelera os violentos surtos desta contradição, as crises, e com estas os elementos de dissolução do velho modo de produção” (Marx, O Capital, Livro 3).

Em certo ponto, todo o processo se inverte com as dívidas sendo reembolsadas e o consumo retomado. Este processo entra em uma espiral descendente até que todo o negócio se tenha desenvolvido. Os limites do sistema capitalista são alcançados e um recuo econômico massivo entra em ação, como Marx e Engels descreveram.

O ciclo normal de boom/recessão toma uma forma aguda, provocada pelos estragos da velhice. Em contraste com sua juventude, o fôlego de um regime capitalista em decadência se torna errático e até mesmo convulsivo. Os efeitos da recessão se tornam acentuados e dolorosos, como a respiração ofegante de um velho asmático. Em consequência, a recuperação também se torna dolorosa e anêmica, e não pode coincidir com as recuperações do passado. O crescente estancamento do sistema capitalista ficou revelado na sua incapacidade de recuperar as taxas de crescimento, rentabilidade, níveis de investimento ou de produtividade, que eram característicos dos anos 1950 e da chamada Idade de Ouro. Cada década desde então vê um declínio nas taxas de crescimento. Nos anos 1950, o comércio mundial – que desempenhou um papel chave em impulsionar a produção para a frente na etapa de expansão – cresceu a uma taxa anual de 12,5%. No período anterior à crise, o crescimento médio se reduziu a 6% durante a maior parte dos anos 1990 e 2000. No ano passado, o quarto ano da “recuperação”, ele foi abaixo para uns meros 2,1%, e não conseguiu se recuperar. Dados o crescimento lento e as debilidades por toda parte, isto dificilmente surpreende. Mas é uma clara indicação da crise orgânica de que sofre o capitalismo. As artérias enfermas do sistema tornaram-se cada vez mais bloqueadas.

Durante décadas, o comércio mundial se expandiu, em média, ao dobro da taxa da produção global. Foi a chave para a ascensão econômica do pós-guerra e que duraria uns 25 anos. Mas, acompanhando o colapso no comércio mundial na recessão de 2008-9, o comércio se tornou débil e anêmico. Isto provocou um acalorado debate entre os economistas burgueses sobre se a marcha da globalização está definitivamente chegando ao fim. O FMI prevê o crescimento do comércio mundial neste ano em 3,6%, enquanto a OMC prevê uma elevação de 4,7%, sendo que ambas as previsões são demasiado otimistas. O último, a OMC, é obrigado a advertir que “os riscos geopolíticos introduziram um elemento adicional de incerteza para a previsão”. Delta Economics, uma empresa de análise com sede em Londres, que monitora o comércio, prevê o crescimento do comércio mundial este ano, medido em preços correntes, em mero 1%. “2014 não está sendo um bom ano para o comércio”, disse Rebecca Harding, executiva-chefe de Delta Economics. Este é um quadro alarmante após cinco anos de “recuperação”, e é um claro reflexo do completo impasse do capitalismo mundial, como foi o caso no período entre as guerras. A globalização alcançou os seus limites. A globalização agora se manifesta, como previmos, como uma crise global do capitalismo.

Enquanto na década de 1930, o protecionismo serviu para espremer o comércio mundial, este não é mais o caso hoje, pelo menos abertamente. Existem barreiras e subsídios disfarçados em todos os níveis, que adicionaram atritos ao comércio, sobretudo entre a China, os EUA e a Europa. A manipulação da moeda também está no topo da agenda, com os EUA atacando a China, na sequência de uma forte desvalorização do Yuan desde o início de 2014. Falar de “guerra de divisas” não está muito longe das possibilidades. Mas as tendências protecionistas estão certamente emergindo e podem passar a primeiro plano na próxima recessão.

Morte agônica

“Na atual crise europeia e mundial de desemprego, os acontecimentos conjunturais estão ligados a processos orgânicos de decadência capitalista”, explicou Trotsky. “Temos mais de uma vez repetido que os ciclos conjunturais são inerentes à sociedade capitalista em cada etapa de seu desenvolvimento. Mas em diferentes estágios esses ciclos têm caráter diferente. Da mesma forma como nos anos de declínio de uma pessoa um surto de vitalidade é tão incerto quanto breve e cada enfermidade afeta todo o organismo, então os ciclos conjunturais do capitalismo imperialista, particularmente na Europa, mostram uma tendência à prolongação da crise, aliviada por comparativamente curtas mudanças para melhor” (Trotsky, Escritos 1930).

“O capitalismo em sua morte agônica, como sabemos, também tem ciclos, mas estes ciclos são declinantes e mórbidos”, ele explicou. “Somente a revolução proletária pode dar um fim à crise do sistema capitalista”.

“A retomada do ciclo de negócios não pode ser nem considerável nem de longa duração, porque agora estamos enfrentando o ciclo de um capitalismo que está irremediavelmente enfermo. As novas crises, depois de uma breve recuperação, serão mais devastadoras que a atual. Todos os problemas se levantarão novamente com força e nitidez redobradas…”, afirma Trotsky. “Mas, hoje, a retomada econômica não é mais do que uma hipótese. A realidade é o aprofundamento da crise, os dois anos de serviço militar obrigatório, o rearmamento da Alemanha, o perigo de guerra”.

Foi o advento da Segunda Guerra Mundial, de fato, que atalhou esta perspectiva e forneceu uma rota de fuga ao capitalismo. Ainda houve a traição da onda revolucionária que se seguiu à guerra pelos líderes reformistas e estalinistas, para permitir ao capitalismo a oportunidade de se recuperar.

Toda uma série de fatores se uniram, na sequência da Segunda Guerra Mundial, permitindo ao capitalismo não somente se estabilizar, como também experimentar uma ascensão colossal que iria durar 25 anos. O comércio mundial foi a força impulsora por trás deste extraordinário desenvolvimento, o que permitiu ao capitalismo superar temporariamente suas contradições fundamentais, no caso, os limites do estado-nação e a propriedade privada dos meios de produção. O capitalismo foi muito além de seus limites. No entanto, as contradições do capitalismo, que tinham sido parcialmente reprimidas, não foram removidas.

Finalmente, o capitalismo em 1974 experimentou sua primeira e simultânea recessão mundial. Esta representou um ponto de viragem que marcou o fim da “Idade de Ouro” e o início de uma nova crise no capitalismo. Todas as velhas contradições vieram agora à superfície, produzindo uma crise de superprodução e de desemprego em massa em todos os lugares. Isto marcou o surgimento de uma nova crise orgânica que levantou barreiras ao desenvolvimento capitalista.

No entanto, o capitalismo ainda foi capaz de avançar cambaleante, tentando superar as contradições por todos os meios possíveis. O crédito foi o principal método, mas de forma alguma o único, para impulsionar o sistema para a frente. O crédito nos EUA sozinho cresceu de um trilhão de dólares, em 1964, a 50 trilhões de dólares em 2007. O capitalismo sempre conseguiu superar seus limites, mas unicamente criando barreiras cada vez maiores no futuro.

Finalmente, o sistema capitalista se exauriu. Quanto mais tempo ele conseguiu adiar sua crise interna, maior ela se tornaria quando finalmente chegasse. Todos os fatores que impulsionaram o sistema à frente se transformaram em seu oposto. Todos esses fatores que empurraram o capitalismo para a frente foram os fatores que se combinaram para levá-lo abaixo em uma espiral incontrolável.

Os estrategistas do capital, embora alarmados com a profundidade da recessão de 2008, assumiram que, da mesma forma que em todas as outras recessões do pós-guerra, uma forte recuperação ocorreria. Mas isto foi no passado. As perspectivas para o capitalismo mundial se parecem mais à experiência do Japão dos anos 1990, que entrou em uma prolongada e tortuosa estagnação que continua até hoje.

Mas os capitalistas não conseguiam entender o que tinha acontecido. Os anos de boom prolongado e de recuperação se foram para sempre. Estes foram um produto de um conjunto único de circunstâncias, que não podem se repetir. Em vez disso, estamos enfrentados, na melhor das hipóteses, a uma prolongada estagnação e aprofundamento da crise. As contradições do capitalismo, longe de serem resolvidas, se agravam. O sistema passou de um freio relativo a um freio absoluto para o desenvolvimento das forças produtivas e para o avanço da sociedade.

Mesmo antes da recessão de 2008, apesar de um aumento que durou 30 anos da taxa de lucro, o sistema capitalista somente pôde se desenvolver em ritmo muito lento, apesar das bolhas especulativas, montanhas de crédito e de dívidas e oceanos de dinheiro barato. Esta é uma clara indicação da exaustão do sistema capitalista, que alcançou seus limites há muito tempo e somente pode se sustentar artificialmente e com medidas excepcionais. Esta crise orgânica, que reemergiu em 1974, continuou com altos e baixos até hoje.

(Continua)

Tradução Fabiano Adalberto