100 anos do caso de Sacco e Vanzetti

Este ano é o centenário do esquema policial nos Estados Unidos contra dois militantes anarquistas de origem italiana, que os levou à morte sete anos depois e gerou um movimento de solidariedade internacional. Na época, milhões de trabalhadores socialistas, comunistas e anarquistas saíram às ruas para denunciar o ultraje com relação a Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti.

O evento se passa na etapa final do “pânico vermelho” (Red Scare): três anos de perseguição policial a ativistas, sindicalistas e militantes de esquerda em solo americano, os quais sofreram detenções em massa, prisões e expulsões para a Europa (local de origem de muitos deles) o que foi um mecanismo do governo e do establishment para conter a influência da Revolução Russa nos Estados Unidos.

Nesse período, os jornais exacerbaram a xenofobia em relação aos estrangeiros, já que os partidários do anarquismo e do socialismo, muitas vezes, eram imigrantes de origem europeia (muitos deles judeus, italianos etc). Estima-se que mais de 500 pessoas foram expulsas, incluindo vários líderes esquerdistas proeminentes, como Emma Goldman. Sem dúvida, os mais conhecidos de todos os ativistas presos naquela época eram Sacco e Vanzetti.

Os anos de 1919 e 1920 foram difíceis nos Estados Unidos devido à inflação, como na Europa. A ascensão do sindicalismo gerou muitas greves em todo o país. Em 1919, havia 4,1 milhões de grevistas exigindo melhores salários e redução da jornada de trabalho. Algumas greves degeneraram em violência e geraram confrontos em várias cidades importantes, como Boston.

Na América da década de 1920, os trabalhadores de origem afro-americana e latina (negros na terminologia da época) e os trabalhadores imigrantes, ganhavam em média a metade do que um norte-americano branco ganhava. A classe dominante americana financiou o incitamento ao ódio racial. Foi a época de ouro da Ku Klux Klan. Os trabalhadores negros e ativistas eram espancados, mutilados e mortos rotineiramente. Os jornais burgueses espalhavam o ódio contra os estrangeiros, contra o sindicalismo e o comunismo, fazendo um amálgama semelhante ao que a extrema-direita faz hoje. Esse período lançou as bases para o macarthismo da década de 1950.

Quem foram Sacco e Vanzetti?

Vanzetti era, originalmente, de Cuneo, no norte da Itália. Estudante de teorias sociais revolucionárias e leitor autodidata. Depois de chegar aos Estados Unidos, trabalhou por dois anos como lavador de pratos em um restaurante de Nova York, foi contratado periodicamente em fazendas em Connecticut, trabalhou nas pedreiras de Meriden e na Springfield Railroad, antes de, finalmente, se estabelecer em Plymouth, Massachusetts. Vanzetti estudou a Divina Comédia de Dante e outras obras da literatura clássica que apresentou em teatros operários. Leu Marx, Darwin, Tolstoi, Hugo e Zola.  Foi um daqueles trabalhadores autodidatas que tanto encontramos no movimento operário antes da Primeira Guerra Mundial. Em 1917, fixou residência no México até o fim da guerra. Em Plymouth, ele liderou uma greve numa fábrica de cordas, pelalo que foi demitido do emprego e ficou visado. Isso provocou uma luta constante para encontrar trabalho, e ele sobreviveu vendendo peixes. Era o trabalho que ele estava fazendo quando foi preso.

Sacco era originário da província italiana de Foggia e se estabeleceu nos arredores de Boston. Posteriormente, foi vendedor ambulante de água, trabalhador de fundição em Hopedale e trabalhador na Milford Shoe Company (1909-1917). Também foi para o México e permaneceu até o fim da guerra. Ao retornar, foi contratado pela  Michael J. Kelly, fabricante de calçados. Kelly o considerava um trabalhador modelo. Mas Sacco também foi um revolucionário ativo. Participou de piquetes e manifestações. Dizia-se socialista, depois anarquista. Para ajudar financeiramente vários grevistas, ele e a mulher, Rosina, às vezes agiam nas ruas de bairros italianos.

Bartolomeo Vanzetti e Nicola Sacco /Foto: Bettmann

O modo de vida de ambos reflete as condições de vida de milhões de trabalhadores que, antes da Primeira Guerra Mundial, saltavam de um emprego para outro acompanhando as oscilações do mercado, situação que lembra o que alguns chamam de ‘precarização’, e afirmam ser uma invenção da atual fase do capitalismo. Há 100 anos, setores importantes da classe trabalhadora tinham condições de trabalho comparáveis.

Sacco e Vanzetti também fizeram campanha contra a prisão e deportação de sindicalistas, comunistas e anarquistas, algo muito comum nos Estados Unidos entre 1917 e 1920. De fato, em 1917, o jovem sindicalista irlandês Tom Mooney foi condenado junto a Warren K. Billings por um ataque em San Francisco em 1916. Ele foi considerado, por muitos, culpado de um ataque que não havia cometido, pelo qual passou 22 anos na prisão antes de ser perdoado. Curiosamente, a primeira vez que Lenin apareceu na história da imprensa americana, foi como o líder de uma manifestação em Petrogrado, no verão de 1917, em solidariedade aos membros dos Trabalhadores Industriais do Mundo-IWW (os Wobblies), Warren e Billings.

Em fevereiro de 1920, a tipógrafa anarquista italiana Andrea Salsedo foi presa em Nova York. Vanzetti foi lá para saber mais sobre o caso. Mas logo depois, no dia 3 de maio, Salsedo caiu do 14º andar do prédio do Ministério da Justiça. Ele havia sido jogado no vazio pela polícia – ou ele pulou, levado ao limite por oito semanas de detenção e interrogatório? Sacco e Vanzetti organizaram imediatamente uma reunião de protesto. Era para ser realizado em Brockton em 9 de maio, mas em 5 de maio, os dois ativistas foram presos pela polícia, que encontrou os folhetos anunciando o encontro.

Esquema

Inicialmente presos por atividade sediciosa, logo foram acusados ​​de roubo na empresa Slater and Morill em South Braintree em 15 de abril de 1920, no qual dois funcionários foram mortos. Vanzetti também foi acusado de outro roubo em Bridgewater.

No julgamento deste último roubo, o juiz Webster Thayer, conhecido por seu ódio aos “vermelhos” e seus preconceitos contra “forasteiros”, dirigiu-se ao júri dizendo, durante o julgamento: “Este homem, embora não tenha cometido o crime que lhe é imputado, é, contudo, moralmente culpado, porque é inimigo da ordem estabelecida”. Vanzetti foi condenado a uma pena de prisão de 12 a 15 anos. O julgamento dos dois homens pelo assalto àa Braintree e duplo assassinato ocorreu em maio de 1921 em Dedham, Massachusetts. Foi presidido pelo mesmo juiz.

Acorrentados e trancados em uma jaula, os dois homens se defenderam bravamente. Mas para a imprensa da burguesia americana, sua culpa estava fora de questão. Aqueles que defenderam os ativistas foram acusados ​​de incitar contra o patriotismo e o bom senso. O perímetro do tribunal era vigiado por policiais armados com fuzis e metralhadoras. Uma campanha de histeria foi desencadeada contra os “vermelhos”, que eram vistos como terroristas e assassinos. O ambiente no tribunal não poderia deixar de ser afetado por este contexto. As evidências e o testemunho de defesa foram afogados em uma avalanche de preconceito político e racista. Em suas instruções ao júri, o juiz Thayer jogou a carta patriótica: “Pense em um de nossos jovens soldados que deu sua vida nos campos de batalha da França. Peço-lhe que ajam aqui com o mesmo espírito patriótico que nossos jovens mostraram no exterior”.

Várias testemunhas oculares da promotoria – uma prostituta, a quem havia sido prometido um emprego regular, um criminoso condenado que testemunhou sob um nome falso – eram mais do que questionáveis. Lawrence Letherman, um funcionário do Departamento de Justiça de Boston, e Fred Weyand, um agente especial do Departamento de Justiça de Boston, entraram com depoimentos atestando a acusação dos dois ativistas. Essas duas testemunhas que dificilmente poderiam ser suspeitas de simpatias “vermelhas”, posteriormente alegaram que as autoridades federais estavam convencidas da inocência de Sacco e Vanzetti, mas queriam condená-los e executá-los por suas ideias e atividades políticas. De acordo com a declaração de Letherman, por exemplo: “O Departamento de Justiça de Boston queria encontrar provas suficientes contra Sacco e Vanzetti para obter sua deportação, mas não foi capaz de fazê-lo.” Na opinião de funcionários do Departamento, uma condenação por assassinato contra Sacco e Vanzetti seria uma forma de se livrar deles. Os policiais com conhecimento do caso estavam convencidos de que não tinham nada a ver com o crime na Braintree.

Numerosas testemunhas declararam que viram os dois homens fora de Braintree no dia do duplo assassinato. Entre eles, um funcionário do consulado de Boston disse que Sacco estava no consulado naquele dia para obter um passaporte. Ele estava se preparando para visitar seu pai na Itália. Inclusive 31 testemunhas disseram que nenhum dos homens envolvidos no roubo era Vanzetti, outras 13 disseram que o viram vendendo peixe em Plymouth na hora do crime. Desconsiderando esses depoimentos, a juíza Thayer disse que a decisão do tribunal deveria se basear, não tanto nos depoimentos, mas na “consciência [do acusado] por ter agido mal“. Após o julgamento, o depoimento de pessoas do círculo de Thayer indicou que o próprio juiz reconheceu a inocência dos dois homens, mas sentiu que eles deveriam ser condenados para proteger a sociedade. Com tanta independência do Judiciário, não havia dúvidas sobre o possível desfecho do julgamento.

A Campanha Internacional

O Socorro Vermelho Internacional (SVI) fez uma grande campanha pelos “Mártires Sacco e Vanzetti”. O SVI foi fundado pela Internacional Comunista em 1922. A organização foi criada para funcionar como uma espécie de Cruz Vermelha Internacional, independente de qualquer organização ou confissão religiosa. O SVI trabalhou em conjunto com o Socorro Obrero Internacional (SOI) e foi, por assim dizer, a ala mais agitada das duas. O SVI conduziu campanhas de apoio a presos políticos comunistas e anarquistas e reuniu apoio material e humanitário em situações específicas. O SVI era liderado, entre outros, por Clara Zetkin e Tina Modotti (que durante a guerra civil espanhola lutou no Quinto Regimento, sendo de origem ítalo-mexicana). Os jovens partidos comunistas fizeram do julgamento de Sacco e Vanzetti um importante “casus belli[1]“.

Durante seis longos anos de processos, polêmicas e protestos, Sacco e Vanzetti definharam na prisão. Manifestações e petições foram organizadas em todo o mundo. Na França, Inglaterra, Itália, Alemanha, Brasil, China e Índia, centenas de milhares de trabalhadores se mobilizaram contra a flagrante injustiça que os jornais chamam de “linchamento legal”.

Em 1925, um jovem criminoso, Celestino Madeiros, condenado à morte por homicídio e aguardando apelação, confessou o crime de Braintree. Sua confissão foi detalhada. A defesa de Sacco e Vanzetti solicitou um novo julgamento. Mas o juiz Thayer negou provimento ao recurso. A Suprema Corte decidiu que não houve erros nas decisões de Thayer e, em 9 de abril de 1927, impôs a sentença de morte aos dois homens. Em um breve discurso, Nicola Sacco disse: “Eu sei que a sentença é uma sentença de classe, uma luta entre a classe oprimida e a classe rica. Sempre haverá uma luta entre as duas. Nós confraternizamos com o povo, damo-lhes livros, literatura. Eles perseguem, intimidam, matam“.

Um último esforço para salvá-los – um pedido de clemência ao governador – não teve sucesso, e os dois mártires pela causa dos trabalhadores foram executados em uma cadeira elétrica na noite de 22 a 23 de agosto de 1927. Entre os que pediram clemência estavam, Albert Einstein, Marie Curie, Bernard Shaw, Orson Welles e Miguel de Unamuno, além de outros intelectuais, cientistas, atores e organizações que defendiam os direitos civis. Em 21 de agosto, Bartolomeo Vanzetti enviou uma carta ao Comitê de Defesa criado, que os apoiou até o fim. Aqui está um trecho dele: “Amigos e camaradas, agora que a tragédia desta provação está chegando ao fim, tenham todos vocês um só coração. Apenas dois de vocês morrem. Nosso ideal vive. Vocês, nossos camaradas, viverão aos milhões. Não estamos derrotados. Faça um tesouro de nossos sofrimentos, nossas dores, nossas faltas, nossas derrotas, nossa paixão pelas lutas futuras e pela grande emancipação”.

Em 23 de agosto de 1977, exatamente 50 anos após sua execução, o governador de Massachusetts, Michael Dukakis, absolveu os dois homens, reabilitou-os oficialmente e declarou que todas as desgraças deveriam ser removidas de seus nomes para sempre. É nossa tarefa lembrar o papel do Estado e o sacrifício desses dois homens.

[1] Casus belli expressão latina que significa “um ato ou evento que provoca ou é usado para justificar a guerra“, literamente – caso de guerra.

TRADUÇÃO DE MARITANIA CAMARGO.
PUBLICADO EM LUCHADECLASES.ORG