Publicamos este artigo em homenagem ao 140º aniversário da Comuna de Paris que, de 18 de março a 28 de maio de 1871 mostrou na prática pela primeira vez ao mundo que a classe trabalhadora pode cumprir seu papel histórico. E cumprirá! Outras Comunas virão!
Há 140 anos, milhares de homens e mulheres decidiam tomar as rédeas de seus próprios destinos, assumindo o poder da então “capital do mundo” – Paris. Uma Paris que já havia seis meses estava cercada pelas tropas de Bismarck, envolta numa guerra entre a Prússia e a França – mais uma guerra que nada interessava à sua população trabalhadora. Uma Paris sem comida, que havia armado milhares de cidadãos para resistir à guerra. Uma Paris de homens e mulheres famintos e armados que, ao contrário dos seus governantes, não estavam dispostos a se render diante do invasor. E o que parecia impossível aconteceu. Foi descrito por Karl Marx como um “assalto ao céu”.
Semanas antes, o frágil governo provisório francês se rende aos alemães, entrega os exércitos e permite que o Imperador da Alemanha seja coroado no Palácio de Versalhes. Depois de uma série de rendições em campos de batalha nos últimos meses de 1870, a capitulação oficial da França ocorreu em 28 de janeiro de 1871. Adolphe Thiers, velho político francês, foi eleito pela assembléia como chefe do Executivo e solicitou uma trégua aos prussianos, que foi concedida por Bismarck. O acordo de trégua incluía a eleição de uma assembléia nacional francesa que teria a autoridade de firmar a paz definitiva – afinal, para os alemães a paz era sinônimo de rendição francesa, entrega de territórios e pagamento de altíssimas indenizações. A Assembléia Nacional Francesa reuniu-se em Bordeaux, em 13 de fevereiro, nomeando Thiers o primeiro presidente da Terceira República Francesa. O acordo, negociado por Thiers, foi assinado em 26 de fevereiro e ratificado em 1º de março.
Mas em Paris, a Guarda Nacional que então está composta por centenas de milhares de cidadãos comuns, se recusa a aceitar o comando designado pelo governo de Thiers e elege o “Comitê Central da Federação de Guardas Nacionais”, representando 215 batalhões, equipados com 2 mil canhões e 450 mil armas de fogo. Novos estatutos foram adotados, com os quais os Guardas Nacionais passaram a ter o direito absoluto de eleger seus comandantes e revogá-los a qualquer momento.
O novo governo de Thiers, que já havia se transferido de Paris para Versalhes, não podia permitir esta situação de “duplo poder”. Na madrugada de 18 de Março de 1871, 20 mil soldados do exército regular francês, enviados por Thiers para recuperar as armas da Guarda Nacional rebelada, entram em Paris, mas uma multidão de trabalhadores, incluindo mulheres e crianças, cerca a operação. Logo depois chegam os Guardas Nacionais. O resultado foi a confraternização entre a multidão, os soldados regulares e a Guarda Nacional. O pouco que restava do pessoal do governo deixou Paris. Ao final da noite de 18 de Março, o Comitê Central da Guarda Nacional se deu conta que era, de fato, o governo de Paris!
Sobre este momento histórico, numa de suas cartas a Ludwig Kugelmann, Karl Marx avalia:
“Que elasticidade, que iniciativa histórica, que capacidade de sacrifício desses parisienses! Depois de seis meses de fome e ruína, causadas mais pela traição que pelo inimigo externo, eles levantam-se, por sobre as baionetas prussianas como se nunca houvera uma guerra entre a França e a Alemanha e o inimigo não estivesse às portas de Paris. A história não tem exemplo semelhante de tamanha grandeza. Se eles forem derrotados apenas se poderá censurar seu ‘bom caráter’. Eles deviam ter marchado imediatamente sobre Versalhes, depois que Vincy, primeiro, e em seguida o setor reacionário da Guarda Nacional de Paris se retiram. O momento preciso foi perdido por causa de escrúpulos de consciência. Eles não queriam começar a guerra civil, como se esse nocivo aborto Thiers já não a houvesse iniciado com sua tentativa de desarmar Paris. Segundo erro: o Comitê Central entregou seu poder muito cedo, para dar caminho à Comuna. Outra vez por escrúpulos ‘muito honrados’! Entretanto, pode ser que o atual levante de Paris – mesmo se ele venha a ser esmagado pelos lobos, porcos e cães sujos da velha sociedade – seja o feito mais glorioso do Partido desde a insurreição de Junho em Paris. Compare esses parisienses, que vão em assalto ao céu, com os escravos celestes do sacro Império Romano Germano-Prussiano, com seus disfarces póstumos encobrindo os quartéis, a Igreja, os latifúndios e, sobretudo, os filisteus.” (Karl Marx, 12 de abril de 1871)*
Faltava ao Comitê Central da Guarda Nacional uma direção clara e experiente. Suas lideranças que em maior parte se construíam no decorrer do próprio processo, careciam de um programa claro. Na verdade nem sabiam aonde ir. Tinham sido pegos de surpresa pelas circunstâncias e tomaram um susto ao notar que estavam no poder da capital.
O Comitê Central da Guarda Nacional convoca eleições para uma Comuna, que foi instituída 10 dias depois, em 28 de Março. Foi o primeiro governo operário da história da humanidade, protótipo da república dos sovietes na Rússia e serve de modelo ainda hoje para os futuros governos revolucionários que estão por vir. Em todos os bairros de Paris foram eleitos delegados membros da Comuna. A Comuna foi constituída por cerca de 90 membros revogáveis a qualquer momento, que eram o novo governo de Paris, ao mesmo tempo com poderes legislativos e executivos. Isso diminuía bastante a burocracia e permitiu que a Comuna realizasse em poucas semanas o que todos os governos da França não haviam realizado em séculos.
A Comuna oficializou o fim do exército permanente e sua substituição pelo armamento geral do povo. Dissolveu a polícia e em seu lugar foram criadas em cada bairro milícias populares compostas por voluntários, homens e mulheres, que tinham a tarefa de garantir a segurança de todos e a organização da comunidade. A Comuna proclamou a separação da Igreja e do Estado. Aboliu todas as antigas autoridades, como juízes, tribunais, parlamento, etc. No lugar das antigas autoridades estabelece-se a gestão popular de todos os meios de vida coletiva, preenchendo todos os cargos administrativos, judiciais e do magistério através de eleições, mediante o sufrágio universal, concedendo aos eleitores o direito de revogar a qualquer momento o mandato concedido. E todos os funcionários públicos, graduados ou não, eram pagos como os demais trabalhadores. O salário mais alto pago pela Comuna era de 6 mil francos – o salário médio de um operário qualificado em Paris. Assim deu-se fim ao arrivismo e à corrupção por altos cargos.
A Comuna também decretou a gratuidade de tudo o que fosse necessário à sobrevivência, como os serviços públicos. Declarou educação e saúde públicas e gratuitas para todos.
A Comuna proibiu o trabalho noturno e aboliu o sistema de multas que era aplicado aos operários. Foi abolida a pena de morte, declarada a anistia geral e o fim de toda a censura seja de ordem política, moral ou religiosa. Foram demolidos os monumentos do militarismo e da reação. Os nomes das ruas foram substituídos para eliminar os nomes de figuras odiosas. Foi eliminada a ajuda financeira do Estado à Igreja, declarando a religião como assunto privado.
Foram proclamadas também Comunas em Lion, Marselha, Toulouse e algumas outras cidades que, entretanto, foram ainda mais efêmeras que a Comuna de Paris.
O grande trunfo da Comuna de Paris foi que seus membros constataram imediatamente a necessidade de destruir a máquina estatal burguesa e de criar um Estado de novo tipo, um Estado operário. O novo aparato do poder se organizava de acordo com os princípios democráticos: a elegibilidade, responsabilidade e a demissibilidade de todos os funcionários, além do caráter colegiado da direção.
Para dirigir os assuntos públicos foram criadas comissões eletivas que substituíram os antigos ministérios: comissão do trabalho, da indústria e comércio, de serviços públicos, de alimentos, da fazenda, da segurança pública, da justiça, da educação, de relações exteriores e militar. O trabalho das comissões era coordenado por uma Comissão Executiva, que posteriormente incluiu todos os presidentes de todas as comissões. Essa Comissão Executiva foi substituída, em 1º de maio, pelo Comitê de Salvação Pública, órgão executivo superior da Comuna de Paris. Cada membro da Comuna se integrou em uma comissão conservando ao mesmo tempo os vínculos com seu distrito eleitoral e reunindo-se ali com os eleitores.
Como governo da classe operária, a Comuna de Paris exercia seu poder em benefício do povo. Agiu rapidamente pela melhoria das condições materiais das grandes massas: fixou a remuneração mínima do trabalho, foram tomadas medidas de proteção do trabalho e de combate ao desemprego, de melhoria das condições de moradia e do abastecimento da população. A Comuna preparou a reforma escolar, fundamentada no princípio da educação geral, gratuita, obrigatória, laica e universal. Tiveram extraordinária importância também os decretos da Comuna sobre a organização de cooperativas de produção nas empresas abandonadas por seus donos, a implantação do controle operário, a elegibilidade dos dirigentes de algumas empresas estatais, etc.
Era, a Comuna, comunista?
A palavra “comuna” não tem a ver com comunismo, mas com comunidade, governo comunitário. Na verdade praticamente não havia marxistas – os defensores do comunismo, do socialismo científico – entre os membros da Comuna de Paris. Pelo contrário, sua maioria era composta por blanquistas, predominantes também no Comitê Central da Guarda Nacional, e uma minoria composta por membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, entre os quais prevaleciam os seguidores de Proudhon. Os blanquistas eram socialistas apenas por instinto revolucionário e proletário, não tiveram contato com o socialismo científico alemão, e isso explicava porque não realizaram as tarefas necessárias no terreno econômico. Por exemplo, detiveram-se respeitosamente ante os portões do Banco da França. Nas palavras de Engels: “o Banco da França teria valido mais do que dez mil reféns”.
Entretanto, apesar da composição blanquista-proudhoniana, na prática estes mesmos blanquistas e proudhonianos foram levados a “agir como marxistas”. Apesar dos erros cometidos pela Comuna, a decisão de organizar a grande indústria, inclusive a manufatura, não só na associação dos operários dentro de cada fábrica, como também unificando-as em uma grande federação, os conduzia ao caminho do comunismo, justo o contrário do defendido por Proudhon. Como disse Engels num prefácio de A Guerra Civil na França, “vinte anos mais tarde a escola Proudhoniana desapareceu dos meios operários franceses; neles, atualmente, predomina a doutrina de Marx”, tal foi a comprovação prática da teoria marxista nos dias da Comuna de Paris.
A guerra franco-alemã e a Guerra Civil na França foram precedidas, acompanhadas e seguidas por uma terceira guerra: a guerra contra a Associação Internacional dos Trabalhadores. Após a derrota da Comuna de Paris, a Internacional se viu confrontada a um ataque generalizado da reação, que se somava às intrigas internas provocadas pelos anarquistas e agentes do Estado.
No final das contas, a burguesia européia constatou que era preciso eliminar o marxismo para evitar que outras Comunas como a de Paris surgissem.
O professor Fabiano Stoiev, explica:
“Alguns historiadores desenham a Comuna como uma simples reação popular, desesperada e inconseqüente, de uma cidade sitiada pela guerra e exasperada pela traição do governo republicano. Por outro lado, líderes políticos da época, incluindo Bismarck, denunciaram a ação “manipuladora” da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) por trás da insurreição operária, e organizaram a perseguição aos seus dirigentes, como Marx. Mas nem tão ao céu, nem tão à terra.
Na verdade, nos anos 1860 em diante, a Europa experimentou a ascensão do movimento proletário. Ondas de greves e agitações trabalhistas percorreram o continente de uma ponta à outra: na França e na Alemanha em 1868; na Bélgica, Áustria e Hungria em 1869; em 1870 no improvável Império Russo; na Itália e na Espanha em 1871; e entre 1871 e 1873 na Inglaterra. Foi nesse contexto de formação de novos sindicatos e de agitação operária que surgiu a AIT (1864-1872). Seus militantes conseguiram imprimir ao movimento dos trabalhadores o internacionalismo e a ideologia socialista, superando concepções anarquistas, blanquistas e radical-liberais que predominavam até então (e isso constituiu a principal contribuição dessa Associação ao movimento operário mundial). Longe de ser uma ação isolada e desesperada do povo parisiense, a Comuna de Paris de 1871 foi a expressão mais aguda de um período de ascensão da luta de classes, coincidindo com o auge do apelo popular da AIT.
Por outro lado a Comuna não foi obra de uma pequena vanguarda organizada para dar um golpe de Estado. Não. A Comuna foi um movimento de massa. De fato, entre os conselheiros da Comuna se encontravam membros da AIT. Eram valorosos, mas minoritários no movimento. O levante operário não foi arquitetado previamente por nenhum gênio revolucionário, ainda que à frente da AIT estivesse o cérebro poderoso de Karl Marx. A Associação funcionava como um elo de ligação internacional entre os operários mais avançados da Europa e Estados Unidos. E como explicou o próprio Marx, onde quer a luta de classes adquirisse certa consistência, era lógico que o movimento operário encontraria entre os membros da Associação sua vanguarda mais resoluta”.**
O massacre contra a Comuna
Finalmente, após dois meses de árdua luta, foi morta a recém-nascida Comuna de Paris. Assassinada pelas baionetas do exército regular francês que, ajudado por seu inimigo alemão, recuperou mais de 100 mil soldados que haviam sido presos na Guerra Franco-Prussiana e ordenou um ataque brutal a Paris, que teve início em 21 de maio e só terminou uma semana depois, em 28 de maio, com a cidade afogada em sangue.
As tropas de Versalhes avançaram bairro por bairro, enquanto a Comuna erigia centenas de barricadas com pedras de calçamento e sacos de areia. Os comunardos eram mais numerosos, entretanto a maioria não tinha treinamento militar, enquanto que os disparos do exército regular eram muito mais certeiros.
Com a queda da última barricada, no dia 28 de maio de 1871, terminou o que ficou conhecido como a “semana sangrenta”, mas não terminou o derramamento de sangue. Mais de 30 mil parisienses foram executados nos dias seguintes, nos parques, quintais e nas casernas. A burguesia queria assegurar-se de que havia acabado com a ameaça do socialismo para sempre. Mas, como sabemos, a monstruosidade deles só deu mais força à luta pela derrubada do capitalismo em todas as partes.
Outras Comunas virão! Serão derrotadas?
Uma pergunta que temos que fazer é: O que aconteceu nos 90 anos entre a Revolução Francesa e a Comuna de Paris? Como foi possível que em apenas 90 anos – um pequeno período histórico – a classe que havia decapitado a velha ordem agora perdia o controle de Paris para os operários?!
Sabemos que logo após a proclamação da república francesa, Napoleão toma o poder e se declara imperador. Sabemos que isso acontece novamente e de novo! A última com Napoleão III, o sobrinho do primeiro Napoleão sendo preso pelas tropas de Bismarck 6 meses antes da Comuna de Paris.
Ou seja, a Grande Revolução Francesa, que prometia “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, ao instaurar o poder da burguesia baseado na propriedade privada dos meios de produção, não pôde cumprir sua promessa. Os períodos de impérios napoleônicos que se alternaram aos breves suspiros de frágeis repúblicas desde a Revolução de 1789 até a Comuna de Paris eram nada mais nada menos do que uma necessidade da classe burguesa francesa e européia para estabelecer as condições necessárias para o desenvolvimento da indústria capitalista, completando a tarefa de “acumulação primitiva do Capital” e, posteriormente, concentrando o Capital nas mãos das famílias mais poderosas enquanto se consolidavam Estados capazes de gerenciar seus negócios. A unificação da Alemanha levada a cabo por Bismarck é também parte deste processo. Os capitalistas necessitavam de um Estado unificado para gerir seus negócios e manter a classe operária domada.
De “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, a burguesia européia deu aos trabalhadores fome, guerras, desemprego e nenhuma liberdade. Quando Napoleão III é levado preso por Bismarck em Setembro de 1870 e é declarada nova república na França, a classe trabalhadora não só temia a volta da monarquia, mas também começava a compreender que a república burguesa não é capaz de satisfazer suas necessidades básicas de sobrevivência, muito menos lhes dar uma vida boa. Este é o sentido que tem a tomada do poder em suas próprias mãos por parte dos trabalhadores de Paris numa França dominada pelos exércitos de Bismarck.
E hoje, muito mais que na França de 1871, está claro que em nenhum país do mundo a burguesia é capaz de satisfazer as necessidades da população trabalhadora. Não pode e não quer fazê-lo. A cada dia que passa mais e mais trabalhadores tomam consciência disso e se mobilizam. Vimos a experiência da Comuna de Oaxaca em 2006. Estamos acompanhando os desenvolvimentos na Tunísia, Egito, Líbia e em outros países árabes. Também estamos vendo o que fazem os trabalhadores de Madison, em Wisconsin, nos EUA. Em todos os cantos, cada vez mais a questão da tomada do poder político pelos trabalhadores está na ordem do dia.
Mas assim como ocorreu com a Comuna de Paris, ou com a Comuna de Oaxaca, ou como já vem ocorrendo nos países árabes, se não há um partido revolucionário, com uma direção experiente e um programa claro, todas essas experiências tendem a fracassar. Hoje, mais que nunca, necessitamos de uma Internacional Revolucionária de Massas.
São Paulo, 28 de abril de 2011.
Este artigo foi originalmente escrito para a publicação PUC Viva – revista teórica da Associação dos Professores da PUC-SP (APROPUC) – em sua edição especial de aniversário de 140 anos da Comuna de Paris.
Referências bibliográficas:
* MARX, Karl “O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann”, Editora Paz e Terra, 7ª edição, 2002.
** STOIEV, Fabiano “E viva a Comuna de Paris!”, publicado em www.marxismo.org.br em 21/04/2008.
Sugestões de leitura:
• A Guerra Civil na França, Karl Marx.
• Cartas a Kugelmann, Karl Marx.
• O Estado e a Revolução, V. I. Lênin.
• Lições da Comuna, L. Trotsky.
• A Comuna de Paris e a Rússia dos Sovietes, L. Trotsky.
2 comentários
Pingback: #34 – 150 anos da Comuna de Paris – Esquerda Marxista
Pingback: Ativistas de todo o país discutem a Comuna de Paris – Esquerda Marxista