Imagem: Thierry Frères, Biblioteca Nacional (Brasil)

150 anos da Lei do Ventre Livre

Lata d’água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria

Sobe o morro e não se cansa, pela mão leva a criança, lá vai Maria
Lata d’água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria
Sobe o morro e não se cansa, pela mão leva a criança lá vai Maria
Maria lava roupa lá no alto, lutando pelo pão de cada dia
Sonhando com a vida do asfalto que acaba onde o morro principia

(Candeias Júnior – 1955)

Há 150 anos em 28 de setembro de 1871 era promulgada no Brasil a Lei do Ventre Livre, impedindo que o ventre das mulheres negras continuasse a ser reprodutor de vidas escravizadas. A referida lei em prol da liberdade dos cativos que nascia em meio aos debates abolicionistas incidia diretamente sobre a propriedade privada dos senhores de escravos, onde não mais apenas os negros escolhidos pelo Senhor seriam alforriados. Dessa forma, a disputa entre propriedade e liberdade estava uma vez mais na pauta daqueles dias de meados do século 19.

Se por um lado a Lei do Ventre Livre caracterizou-se como um paliativo para uma busca lenta e gradual do rompimento com os grilhões, por outro, foi mais um palco de disputas e possibilidade de organização da população escravizada num cotidiano marcado pela resistência independentemente da existência de qualquer dispositivo legal emancipacionista.

Sendo a liberdade um atributo prioritário dos brancos, a Lei do Ventre Livre não impediu que atrocidades continuassem a acometer a população negra, uma vez que a elite escravocrata brasileira arrastou a escravidão até onde foi possível e foi dando, com o passar das décadas, novos contornos para esse modelo econômico baseado na exploração de uma classe sobre a outra.

A historiadora Arlette Gautier diz que “a escravidão no Novo Mundo foi um verdadeiro túmulo para os cativos” por conta da alta mortalidade dos recém-chegados. Por outro lado, os registros de natalidade eram baixos, o que se explicava pela recusa de muitas mulheres negras escravizadas em trazerem ao mundo crianças privadas de liberdade.

“As africanas teriam transmitido seus conhecimentos sobre contracepção e aborto e deixado seus filhos morrerem durante os primeiros nove dias, nos quais, tradicionalmente, eles ainda não têm nome. Ter filhos escravos era doloroso demais”1

O papel da mãe negra nessas condições era o de ensinar os filhos a obedecerem, calarem-se e aceitar a sua condição sem questionar, com o único propósito de lhes pouparem a vida. Ser mãe de meninas era um suplício extra, uma vez que eram tomadas ainda muito pequenas. A mortalidade de crianças negras era infinitamente maior do que de crianças brancas. Nesse cenário, é compreensível que essas mulheres negassem a gravidez.

Historicamente é importante observarmos que a partir da expressão latina “partu sequitur ventre”, ou seja, à gravidez segue o nascimento, o destino das crianças brancas e negras era traçado de forma distinta para esses dois extratos sociais: ao contrário da criança branca, que seguia a condição livre do pai branco, porque as mães não eram suas tutoras; a criança negra nascia na condição de escrava herdada de sua mãe negra, ou seja, a infância negra inexistia. Se a mulher negra no modelo escravista era tanto produtora quanto reprodutora, a partir da Lei do Ventre Livre esse segundo aspecto sofreu uma alteração legal, o que em quase nada se refletiu na vida prática das crianças nascidas a partir da promulgação da lei, uma vez que continuavam tuteladas pelo Senhor e pelo Estado.

A atualidade histórica desse episódio está em que coloca a mulher negra, o direito à infância e à exploração da classe trabalhadora como elementos centrais no combate ao sistema capitalista que, passados 150 anos, continua a explorar, reprimir e matar centenas de milhares de adultos, jovens e crianças em função da sua cor da sua pele e classe social.

Em 2020 escrevemos um artigo sobre esse tema, onde já mencionamos que os interesses que estavam em jogo eram os das potências colonialistas que estavam em um outro estágio de desenvolvimento econômico. Nesse sentido, constatamos que a emancipação e a disputa por liberdade continuam figurando entre os anseios mais caros para humanidade.

As lutas dentro do ventre do sistema capitalista persistem diariamente e, hoje, assistimos a classe trabalhadora mundial clamando por igualdade e lutando contra a escravidão assalariada, isto é, o capitalismo. Esse combate ganhará muito mais força na medida em que os trabalhadores brancos e negros se organizarem em torno das suas reivindicações mais sentidas e construírem um partido revolucionário, que seja capaz de dirigir a classe trabalhadora na tarefa de derrubada desse sistema.

1 GAUTIER, ARLETE. In: FERRO, MARC. O livro negro do colonialismo. Rio de Janeiro, Ediouro: 2004. p. 668