Uma casa dividida: como o bolchevismo e o menchevismo se formaram

“Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás: A Crise no Nosso Partido” é uma obra que retrata Lênin analisando as consequências do Segundo Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR). O Congresso de 1903 viu surgir a famosa divisão no movimento operário russo entre bolcheviques e mencheviques. No entanto, a divisão não se referia inicialmente a diferenças políticas e perspectivas, surgindo sobre questões organizacionais aparentemente secundárias. Apenas nos anos subsequentes, especialmente em torno da Revolução de 1905, é que essas diferenças se tornariam nitidamente aparentes, culminando em uma divisão formal e final entre bolcheviques e mencheviques em 1912.

Durante e imediatamente após o Congresso, Lênin foi castigado por sua conduta “ditatorial” por seus adversários, alegações reforçadas pelas calúnias dos historiadores burgueses. Mas seu relato pinta um quadro muito diferente. Neste panfleto, ele expõe o verdadeiro conteúdo político das divergências sobre questões organizacionais aparentemente triviais, que mais tarde obteriam importância decisiva.

Lênin vinha lutando há muito tempo contra o amadorismo das forças embrionárias do marxismo russo, especialmente à medida que novas ondas de greves sinalizavam um renascimento da luta de classes no país.

O POSDR havia sido alvo de uma severa repressão, com líderes sendo presos e exilados após seu congresso fundador de 1898 em Minsk. Nessas condições, disciplina e coesão eram essenciais.

Lênin vinha lutando há muito tempo contra o amadorismo das forças embrionárias do marxismo russo / Imagem: The Communist

Do exílio na Europa Ocidental, Lênin lutava contra os métodos prevalecentes de informalidade e o que ele chamava de “mentalidade de pequeno círculo”. No lugar deles, ele defendia um partido de revolucionários profissionais – treinados ideologicamente na teoria marxista, que Lênin sempre enfatizava – sob um centro comum e disciplina.

Essa luta foi conduzida usando o jornal Iskra (A Centelha), que era produzido no exterior e contrabandeado para a Rússia. Apesar de ter apenas nove agentes na Rússia no final de 1901, o Iskra encontrou eco em uma camada avançada dos trabalhadores russos e rapidamente ganhou apoio.

O conselho editorial emigrante de seis membros (Lênin, Plekhanov, Axelrod, Zasulich, Martov e Potresov) mudou-se para Londres em 1902. Sua autoridade cresceu com a audiência do Iskra e a expansão de sua rede de agentes. Mas enquanto a tendência do Iskra se desenvolvia como a tendência dominante no marxismo russo, as tensões cresciam dentro de sua liderança.

Apesar de seu papel exemplar como o “avô do marxismo russo”, Plekhanov começou a sentir os eventos o ultrapassando, e o ferimento de seu prestígio o tornou especialmente difícil de lidar. Enquanto isso, os outros “veteranos” de seu Grupo de Emancipação do Trabalho não haviam feito contribuições reais há anos, mas ainda ocupavam posições-chave. Alguns desses veteranos também expressaram desconforto com as críticas contundentes de Lênin aos liberais, prenunciando futuros desacordos políticos.

No entanto, o conselho editorial do Iskra estava unido em sua oposição ao Bund judaico, o qual se opunha à formação de um partido centralizado em favor de um federalismo vago; e contra os chamados economistas (organizados em torno do jornal Rabocheye Dyelo), que tentavam enfraquecer o caráter político do marxismo russo focando exclusivamente em questões econômicas básicas.

A convocação de um segundo congresso oficial do POSDR pelo Iskra para 1903 era esperada para confirmar o fato de que os iskristas haviam vencido a batalha contra as tendências revisionistas. Na verdade, para surpresa de todos os participantes, o Congresso trouxe à tona profundas discordâncias entre os próprios apoiadores do Iskra.

O congresso finalmente se reuniu em 17 de julho de 1903 em Bruxelas, embora a vigilância policial tenha forçado sua transferência para um alojamento de pescadores em Londres. Quarenta e três delegados estavam presentes, incluindo um Leon Trotsky, de 23 anos. Lênin reconheceu a “jovem águia” como um polemista e escritor talentoso, e esperava que ele fosse seu “porrete” nos debates. Alguns delegados foram deportados antes do fim dos trabalhos, em parte porque um membro do comitê organizador era um agente da Okhrana.

O grupo Iskra começou com uma maioria firme de 33 votos. No entanto, à medida que os procedimentos avançavam, divisões surgiram dentro da facção, primeiro durante a 22ª sessão, sobre as regras do partido. O rascunho de Lênin sobre critérios de adesão dizia: “Um membro do POSDR aceita seu programa e apoia o partido tanto financeiramente quanto pela participação pessoal em uma das organizações partidárias.” Enquanto isso, Martov simplesmente defendia “cooperação pessoal regular sob a direção de uma das organizações partidárias”.

Essa distinção sutil refletia a atitude conciliatória de Martov em relação aos pequeno-burgueses e “simpatizantes intelectuais” que orbitavam o partido. Axelrod expressou isso claramente quando afirmou:

“[…] tomemos, por exemplo, um professor que se considera social-democrata e se declara como tal. Se adotarmos a fórmula de Lênin, estaremos jogando para fora do barco uma seção daqueles que, mesmo que não possam ser admitidos diretamente em uma organização, são, no entanto, membros…”

Estes eram exatamente os tipos que precisavam ser jogados fora! Ao confundir a linha divisória entre membros e simpatizantes acadêmicos, a proposta de Martov mostrava a influência persistente de uma “mentalidade de pequeno círculo”, caracterizada por uma organização frouxa e uma predominância de relações pessoais sobre política. Lênin respondeu:

“A formulação de Martov… serve aos interesses dos intelectuais burgueses, que ficam tímidos perante a disciplina e organização proletárias… Para pessoas acostumadas ao roupão folgado e aos chinelos da domesticidade do círculo de Oblomov, regras formais parecem estreitas, restritivas, irritantes, maldosas e burocráticas, um vínculo de servidão e um grilhão sobre o ‘processo’ livre da luta ideológica. O anarquismo aristocrático não pode entender que regras formais são necessárias precisamente para substituir os laços de círculo estreitos pelo laço amplo do partido.”

No entanto, Lênin ofereceu ceder terreno sobre este assunto, dizendo que não precisava levar a uma divisão no partido.

Um bloco entre a direita (delegados do Rabocheye Dyelo e do Bund Judaico) e um “charco” iskrista vacilante resultou em uma votação de 28 a 23 a favor de Martov. Mas este resultado foi revertido após a 27ª sessão, na qual os delegados do Bund Judaico exigiram um monopólio em todas as questões relacionadas aos trabalhadores judeus na Rússia. Esta concepção federalista inaceitável, baseada em preconceitos nacionalistas, foi esmagadoramente derrotada (41-5) com Lênin, Plekhanov, Martov e Trotsky votando contra, e este último falando apaixonadamente em oposição. Isso provocou uma retirada dos bundistas.

Em seguida, foram seguidos pelos apoiadores do Rabocheye Dyelo, depois que o Congresso reconheceu a Liga dos Revolucionários Social-Democratas de Lênin e Plekhanov como os únicos representantes do partido no exterior. A mudança na composição significava que Lênin ficava com uma maioria (a palavra russa para isso, bolshinstvo, inspirou o nome de sua facção bolchevique), com Martov em minoria (menshinstvo, ou menchevique).

Mas as divisões dentro dos iskristas surgiram novamente de forma acentuada sobre a composição do conselho editorial do jornal e do comitê central do partido. Lênin defendia um conselho editorial mais enxuto, composto por três pessoas, e a remoção daqueles “veteranos” que não contribuíam mais seriamente para o trabalho político de ambos os órgãos.

Tudo o que ele queria era uma liderança funcional para o partido e seu órgão, o que um conselho editorial de três pessoas facilitaria ao garantir uma maioria clara em todas as decisões. Ainda assim, a proposta provocou uma grande discussão, com Trotsky (que mais tarde admitiu que ainda estava infectado por um certo sentimentalismo juvenil pelos velhos veteranos) denunciando Lênin como ditador.

Lênin ficou surpreso com a reação, especialmente porque havia apresentado essa proposta ao antigo conselho editorial sem controvérsias. Ele identificou corretamente o verdadeiro cerne da questão como, mais uma vez, derivado de hábitos antigos, onde considerações sobre o orgulho ferido dos indivíduos eram colocadas acima dos interesses do partido:

“Tais argumentos simplesmente colocavam toda a questão no plano da piedade e dos sentimentos feridos, e eram uma admissão direta de falência no que diz respeito a argumentos reais de princípio, argumentos políticos reais.”

Graças à ausência dos bundistas e economistas, Lênin foi capaz de conquistar uma maioria, mas apesar de ter sido convidado para o conselho editorial como representante da facção minoritária, Martov recusou petulantemente assumir o cargo.

Embora formalmente vitorioso, Lênin ficou angustiado com os resultados do congresso, que viu os delegados partirem em meio à cerimônia e rumores de uma divisão.

A facção de Martov não perdeu tempo em denunciar as “tendências ditatoriais” e o “centralismo implacável” de Lênin, apesar das múltiplas tentativas deste em colaborar. Trotsky escreveu apreciações contundentes do “jacobinismo” de Lênin após os ocorridos, as quais Lênin aceitou com certo orgulho, respondendo: “Um jacobino que se identifica plenamente com a organização do proletariado é um social-democrata revolucionário”.

Delegados do POSDR. Embora formalmente vitorioso, Lênin ficou angustiado com os resultados do congresso / Imagem: domínio público

Trotsky logo romperia com os mencheviques, e mais tarde repudiaria seus erros juvenis, escrevendo em sua autobiografia, anos após a morte de Lênin: “A ruptura com os mais velhos que permaneceram nas fases preparatórias era inevitável de qualquer maneira. Lênin entendeu isso antes de qualquer outra pessoa”.

Contrariamente às alegações contra Lênin, foram os mencheviques que agiram de maneira vergonhosamente antidemocrática. Eles lançaram uma campanha de sabotagem, fundando um comitê central paralelo em antecipação a uma possível divisão, e difamaram Lênin na imprensa estrangeira, a qual eles controlavam.

Martov acusou escandalosamente Lênin de fomentar um “estado de sítio” no partido, simplesmente por tentar cumprir o mandato democrático de seu congresso soberano, que o próprio Martov se recusava a respeitar.

No final, Plekhanov, que inicialmente se aliou aos bolcheviques, vacilou e mudou de lado, permitindo aos mencheviques recapturarem o controle do Iskra em setembro de 1903, apesar de ter apenas apoio minoritário no Congresso. Tudo isso cobrou um preço de Lênin. Após se recuperar da provação, ele começou a escrever “Um Passo à Frente, Dois Passos Atrás”, e a acertar as contas.

Ele tirou as conclusões necessárias sobre a fonte fundamental das discordâncias no Segundo Congresso. Uma ruptura se abriu entre a ala “dura” revolucionária do partido e os oportunistas que tinham uma atitude ‘”uave” em relação aos liberais e aos simpatizantes pequeno-burgueses, e que não estavam dispostos a construir o partido proletário combativo necessário para garantir a vitória:

“A minoria era formada por aqueles elementos no partido que são menos estáveis ​​na teoria, menos firmes em questões de princípio. Foi da ala da direita do partido que a minoria se formou. A divisão em maioria e minoria é uma continuação direta e inevitável daquela divisão dos social-democratas em uma ala revolucionária e uma oportunista, em uma Montanha e uma Gironda, que não apareceu apenas ontem, nem apenas no partido dos trabalhadores russos, e que sem dúvida não desaparecerá amanhã.”

Esta avaliação franca provocou mais indignação da minoria quando o panfleto foi publicado em maio de 1904, mas os anos turbulentos que se seguiriam e a divisão eventual entre bolcheviques e mencheviques provariam a verdade do prognóstico de Lênin.

Embora o Congresso de 1903 tenha produzido divisões acentuadas entre as alas revolucionária e oportunista do partido, essas se concentraram principalmente na atitude em relação aos princípios organizacionais. Foi o teste dos eventos – acima de tudo, dos poderosos eventos revolucionários de 1905 – que destacou diferenças claras sobre as perspectivas políticas e as tarefas dos revolucionários na Rússia. As diferenças que surgiram naquele ano crucial foram destacadas e analisadas de forma incisiva por Lênin em outra obra-chave, “Duas Táticas da Social-Democracia”, sobre a qual falaremos no próximo artigo da série Ano Lênin.

TRADUÇÃO DE CAROLINA LÜCKEMEYER GREGORIO.