“Meia-noite e vinte de 25 de abril de 1974: a rádio Renascença toca a música ‘Grândola, Vila Morena’, de Zeca Afonso. Era a senha para o Movimento das Forças Armadas entrar em ação. O capitão Salgueiro Maia adentra em Lisboa, com esta ainda às escuras.”
Dez horas e cinqüenta e cinco minutos da noite de 24 de abril de 1974, a rádio Alfabeta toca a música “E depois do adeus”, de Paulo Carvalho. Era o primeiro sinal para as tropas se moverem. Meia-noite e vinte minutos do dia 25 de abril de 1974, a rádio Renascença toca a música “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso. Era a senha para o Movimento das Forças Armadas (MFA) entrar em ação. O capitão Salgueiro Maia adentra em Lisboa, com esta ainda às escuras.
Portugal vivia uma ditadura desde o golpe militar de 1926, que empossou em 1932 o primeiro ministro Antonio Oliveira Salazar. Ele instalou um governo inspirado nos regimes fascistas da época e, já no ano seguinte, promulgou uma constituição que negava liberdades de expressão, de reunião, de imprensa e de organização. Salazar permaneceu no poder até 1968, quando, após um derrame cerebral, foi substituído por Marcelo Caetano, que prosseguiu com sua política.
A ditadura, entre outros problemas, tornou Portugal um país colonialista atrasado, com índices de desenvolvimento muito aquém do resto do continente Europeu. Predominantemente rural, com 40% da população economicamente ativa trabalhando no campo, tinha ainda um dos maiores índices de analfabetismo da Europa (33% em 1970), e uma taxa de mortalidade infantil na casa dos 37,9% (em 2002 era de 5%). Possuía mais de 400.000 desempregados em uma população de 9 milhões.
O alto índice de desemprego somado ao baixo desenvolvimento não dava perspectivas à população e cerca de um milhão de portugueses emigrou para as Américas ou outros países da Europa, em busca de melhores condições de vida. Até 1974, 25% dos trabalhadores portugueses eram mulheres, que ganhavam em média um salário 40% inferior aos dos homens, pela mesma função.
No campo dos direitos, a legislação era dominada pela moral burguesa, o que tornava a mulher ainda mais oprimida no país. Como exemplo da opressão às mulheres e falta de igualdade no campo de direitos, lembramos que naquela época em Portugal, o casamento era indissolúvel, mas o marido poderia repudiar a mulher se ela não fosse mais virgem ao casar. Havia distinção de filhos legítimos (frutos do casamento) e ilegítimos e mães solteiras não tinham qualquer amparo legal. O marido tinha inclusive o direito de matar a mulher, quando configurado flagrante adultério. A pena limitava-se ao desterro (exílio).
Como já citado, Portugal mantinha ainda um regime colonialista, a explorar territórios na África, como Angola e Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe e na Ásia, o Timor Leste. Estas colônias iniciaram na década de 60 um movimento de libertação, a partir de Angola já em 16 de janeiro 1961, que levou à guerra de guerrilha, uma vez que Portugal recusava-se a aceitar a independência dos territórios que considerava seus.
Uma das maiores contradições é que as empresas que exploravam os recursos naturais das colônias portuguesas eram de outros países europeus e dos EUA. Apenas a Inglaterra detinha 42,2% dos investimentos nas colônias. O petróleo de Angola estava nas mãos da Shell, Standart Oil e Tanganica Concessions. O cobre pertencia à belga Commerce Bancaire, à Cooper Co. dos EUA, ao grupo Pecheney da Inglaterra e à Thissen alemã, por exemplo. Assim a guerra não era interessante a esses países, porque atrapalhava seus negócios locais.
O crescente número de baixas das forças armadas portuguesas obrigaria o país a destacar um número cada vez maior de soldados para a guerra colonial, o que aumentaria ainda mais o número de baixas, tornando a guerra cada vez mais impopular e dispendiosa para o povo português, o que desgastou o país econômica e moralmente, levando ao aumento do índice de deserção de jovens, que não queriam se alistar e combater em outro continente.
Culpados no seu país pelas derrotas e no exterior por manter uma guerra imperialista, os membros das forças armadas tornam-se cada vez mais insatisfeitos. Estes fatores acumulados, impulsionaram-nos, principalmente os mais jovens oficiais, a organizarem o MFA – um dos fatores que muito contribuiu para o desencadeamento da Revolução dos Cravos.
Esse nome, Revolução dos Cravos, se deve às fotos nas quais os soldados apareciam com cravos nos canos de seus fuzis, que teriam sido colocadas neles pelo próprio povo português, ao tomar as ruas em apoio à ação do MFA.
Com a vitória da revolução se deu a deposição do então presidente Marcelo Caetano e o general António de Spínola assume temporariamente o poder. Marcelo Caetano refugiou-se no Brasil, que vivia nessa época uma ditadura militar. Spínola encontrava-se afastado da chefia do Estado Maior das forças armadas pela ditadura.
As lideranças operárias, como Álvaro Cunhal do Partido Socialista Português (PSP) e Mário Soares do Partido Comunista Português (PCP), puderam retornar ao país apenas no mês maio. Ambos encontravam-se exilados pela ditadura. No ano de 1975 foi eleita uma assembléia constituinte e um parlamento.
A Revolução dos Cravos não foi apenas uma ação do MFA, como querem fazer acreditar alguns historiadores. Teve apoio do povo, que impôs a ela uma direção inicialmente não prevista no seu programa de “modernização” proposto pela burguesia local, os três “D”s : Democratização, Descolonização e Desenvolvimento.
A organização popular garantiu conquistas como o direito de greve e obrigou o governo provisório a avançar em suas pretensões liberais, com a nacionalização de bancos, empresas de comunicação e de seguros. Nas greves de 1974/75, o ministro Carlos Carvalhas (do PCP) ordenou retorno imediato ao trabalho e autorizou a repressão policial aos grevistas. A partir destas greves, foi conquistada a jornada de trabalho de 40 horas, mas a coalizão PSP e PCP que governava o país, promulgou uma lei limitando o direito de greve em Portugal. PSP e PCP se afastam um do outro, por conta dos desacordos com as traições como a lei que limitava o direito de greve. O MFA racha, entre um setor que apoiava o governo e outro que clamava por uma esquerda mais atuante.
Fruto das contradições internas e externas de Portugal, a Revolução dos Cravos, mesmo proporcionando inegáveis avanços ao povo, por conta das traições do PCP e do PSP, acabou preparando o terreno para que Portugal integrasse a União Européia (UE), ao invés de garantir o avanço dos seus trabalhadores rumo ao socialismo.
Esse ingresso na UE, exaltado nos últimos anos como decisão acertada rumo ao desenvolvimento e modernidade acaba de mostrar sua verdadeira face, quando o índice de desemprego em Portugal já atingia 11,2% em dados oficiais de janeiro deste ano. Também o agravamento da pobreza, com um número crescente de pessoas com rendimento disponível abaixo do nível de risco da pobreza, hoje na casa dos 20% da população do país demonstra inegavelmente que a direção rumo à UE não representou avanço para o povo português e sua classe trabalhadora.
O compositor brasileiro, Chico Buarque, fez uma canção em homenagem à Revolução dos Cravos já em 1975, “Tanto Mar”. No ano de 1978, realizava um segunda versão da letra, que demonstrava já o rumo vacilante que tomava a revolução dos cravos:
Tanto Mar
(primeira versão de 1975)
Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
Tanto Mar
(segunda versão de 1978)
Foi bonita a festa pá
Fiquei contente
E ainda guardo, renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é difícil pá
Navegar, navegar
Canta a primavera pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim
A segunda versão se deve ao fato de que a primeira, de 1975, foi censurada e liberada apenas para gravação em 1978. As expectativas de Chico em relação à revolução encontravam-se então frustradas, o que o levou a refazer a letra. Segundo o jornalista Humberto Werneck, citado por Wagner Homem em seu livro “Chico Buarque”, a letra foi censurada e passou apenas a música, motivo da primeira gravação no disco Chico Buarque e Maria Betânia Ao Vivo ser apenas instrumental:
“O censor encarregado de encrencar com a música era Augusto da Costa – ninguém menos que o zagueiro Augusto da seleção de 1950, em cuja jurisdição, ou quase, o ataque uruguaio enfiou aquelas duas bolas no fatídico 16 de julho (referência aos dois gols de Schiaffino e Ghiggia, aos 26 e 36 minutos do segundo tempo respectivamente, dando a vitória ao Uruguai pelo placar de 2×1 e o título de campeão da copa do mundo). “Porra Augusto, você perde a copa e ainda vem me aporrinhar”, disse Chico. O zagueiro chutou a responsabilidade pra cima dos cartolas. “Tanto Mar” passou, mas sem letra.”
Mas se o bom humor e a provocação são armas suficientes para um único indivíduo dobrar um censor despreparado, reverter a situação em que Portugal se encontra hoje só poderá ocorrer com muita organização coletiva e mobilização da classe trabalhadora de Portugal e do mundo inteiro. Porque sem luta não ocorre mudança concreta nos cenários político e/ou econômico. E a história já demonstrou que a luta da classe trabalhadora não pode ficar isolada em um ou dois países, sob o risco de retroceder em todas as suas conquistas.
Como a Esquerda Marxista sempre coloca em suas análises, as revoluções não significam simplesmente avanços ascendentes, uma vez que as massas precisam apreender com a própria experiência. A falta de uma direção realmente revolucionária, de um partido que pudesse orientar a Revolução dos Cravos para conquistas socialistas não representa absolutamente o fim das lutas e a condição de um refluxo inexorável.
Neste mesmo mês de abril, o governo Português recorreu ao FMI e à UE por uma ajuda econômica de 80 bilhões de euros, aceitando políticas de austeridade impostas pelo fundo como condição ao empréstimo. Em resposta a mais esse ataque, a classe trabalhadora já avisa que não vai pagar pela crise capitalista e a principal central sindical portuguesa, a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP-Intersindical), está organizando a convocação de uma greve geral. Segundo o sindicato, “O tempo não é de medos, nem de silêncios. O tempo tem de ser de protesto, de ação, de resposta” (Agência EFE de notícias, 14/04/2011).
Feitas na luta prática de todos os dias, as revoluções podem parecer dormir por mais de três décadas, um tempo muito longo para uma biografia individual, mas nada longo diante do tempo histórico.
Acompanhemos as mobilizações em Portugal, não apenas como observadores, mas como apoiadores ativos em solidariedade! E a melhor forma de nos solidarizarmos à recusa dos trabalhadores portugueses de pagar pela crise capitalista, é recusando-nos enquanto classe trabalhadsora a pagá-la no Brasil também.
Viva os 37 anos da Revolução dos Cravos!
Viva a classe trabalhadora Portuguesa!
Viva a luta pelo socialismo!
São Paulo, 24 de abril de 2011.