As diversas mobilizações contra os cortes na educação levaram milhares de jovens às ruas nos últimos anos. Esses cortes foram principalmente na educação pública, institutos e universidades federais, além da educação básica. Mesmo assim, milhares de estudantes de universidades privadas participaram dessas manifestações em defesa da educação pública.
O fato é que os estudantes de universidades privadas são a imensa maioria dos jovens que alcançaram o ensino superior. E, ao contrário do que costuma se apresentar, esse setor tem um papel fundamental na luta pela educação pública, gratuita e para todos. Sua luta histórica é uma bandeira que confronta diretamente os tubarões do ensino e as receitas de austeridade do imperialismo para a educação no Brasil, a federalização das universidades privadas, que a União Nacional dos Estudantes (UNE) abandonou sob a direção da chapa ‘’Frente Brasil Popular’’, encabeçada pelo PCdoB, PT, PDT, Consulta Popular e Levante Popular da Juventude.
Para entender as bases dessa traição e resgatar uma bandeira fundamental para a luta do movimento estudantil brasileiro, fundamentalmente, para os estudantes das universidades privadas, a Liberdade e Luta traz a público esse artigo com o sentido de fortalecer a luta dos estudantes na direção de sua verdadeira bandeira histórica: a luta pelo ensino público, gratuito e para todos.
Qual a cara do ensino superior privado no Brasil hoje?
O setor privado de educação no Brasil representa 75,8% das 8.604.526 milhões de matrículas no ensino superior, ou seja: 6.524.108 milhões de estudantes estão vinculados ao ensino superior privado[1]. O fato é que a rede pública de ensino superior ainda continua sendo para uma estrita minoria, o que empurra milhões e milhões de jovens a procurarem uma vaga nas universidades privadas. No Brasil, existem 2.306 instituições privadas de ensino superior, contra somente 302 públicas. E a cada estudante matriculado em cursos presenciais nas universidades públicas, há 2,5 matriculados nas privadas. Na rede privada, 50,7% das matrículas são de cursos de Educação à Distância, enquanto nas instituições públicas esse percentual já alcança 5,8% das matrículas. No Censo de 2016, o MEC projetava que somente em 2016 os cursos EaD superariam as matrículas dos cursos presenciais na rede privada, mas como vemos pelos dados do Censo de 2019, só foi preciso três anos para que isso se tornasse realidade. A pandemia de Covid-19 transformou ainda mais essa realidade, levando a que praticamente todos os cursos, na rede privada e pública, se tornassem remotos, isto é, continuidade da turma e do professor no mesmo horário que aconteceriam as aulas presenciais. Contudo, a sanha do capital por reduzir custos piorou o cenário, expandindo mesmo a Educação à Distância, com aulas gravadas, demissão de professores e funcionários, superlotação de salas, alterações na grade e manutenção das mensalidades dos cursos presenciais.
Como chegamos até aqui?
Para responder a essa pergunta, nos baseamos nos dados apresentados na pesquisa do Professor Antonio Carlos Pereira Martins, Ensino superior no Brasil: da descoberta aos dias atuais[2], disponível nas fontes desse artigo.
A expansão do ensino superior privado sempre esteve conectada com a precarização e a expansão insuficiente das universidades públicas. A burguesia brasileira não tinha (e continua não tendo) entre seus interesses a expansão das universidades públicas, que começaram a existir de forma muito elitizada e lenta ainda durante o período imperial com a chegada da família real portuguesa ao Brasil.
“Com a independência política em 1822 não houve mudança no formato do sistema de ensino, nem sua ampliação ou diversificação. A elite detentora do poder não vislumbrava vantagens na criação de universidades. Contam-se 24 projetos propostos para criação de universidades no período 1808-1882, nenhum dos quais aprovado. Depois de 1850 observou-se uma discreta expansão do número de instituições educacionais com consolidação de alguns centros científicos como o Museu Nacional, a Comissão Imperial Geológica e o Observatório Nacional. A ampliação do ensino superior, limitado às profissões liberais em poucas instituições públicas, era contida pela capacidade de investimentos do governo central e dependia de sua vontade política.”
Foi a partir do final do século XIX que a iniciativa privada começou a criar suas próprias instituições com aval da Constituição da República de 1891. Essas instituições surgiram da iniciativa das elites confessionais católicas e foram as primeiras faculdades que não estavam sob o controle do governo central. Existiam somente 24 instituições de ensino superior com 10 mil estudantes. Depois que foi permitido à iniciativa privada a criação de estabelecimentos, o total era de 133 universidades, das quais 86 foram criadas somente na década de 1920.
Nessa época não existiam universidades no sentido que temos hoje, mas faculdades isoladas em diferentes cantos do país. Isso era alvo de crítica e debates no meio acadêmico que reivindicavam centros de saber – que, obviamente, deveriam servir aos interesses da burguesia. A USP, por exemplo, surgiu da união da Escola Politécnica de São Paulo, Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, Faculdade de Medicina, Faculdade de Direito, Faculdade de Farmácia e Odontologia com a mais recente Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. A UFRJ, criada pelo decreto n.º14.343 de 1920 pelo governo federal, foi a primeira universidade do Brasil no sentido moderno que conhecemos, mas mesmo ela foi criada a partir da união de três escolas criadas no século XIX após a chegada da família real: a Escola de Engenharia (criada a partir da Academia Real Militar em 1810), a Faculdade de Medicina (criada em 1832 nas dependências do Hospital Militar) e a Faculdade de Direito (criada em 1891, pelas já existentes Faculdades de Ciências Jurídicas e Sociais e Faculdade Livre de Direito da Capital Federal)[3]
“Foi com base nestes debates que o governo provisório de Getúlio Vargas promoveu (em 1931) ampla reforma educacional, que ficou conhecida como Reforma Francisco Campos (primeiro-Ministro da Educação do país), autorizando e regulamentando o funcionamento das universidades, inclusive a cobrança de anuidade, uma vez que o ensino público não era gratuito.”
É interessante observar que nem mesmo o ensino público nesse período era gratuito. De 1945 a 1968, o movimento estudantil e dos professores defendia a educação pública e a abolição do ensino privado por absorção pública. É o que chamamos de federalização das universidades privadas. Esse movimento, no entanto, foi desmantelado com a ditadura militar, a partir de 1964. Com as grandes mobilizações em todo o mundo no ano de 1968, o movimento estudantil e professores reagiram e reorganizaram sua luta. Uma reforma universitária era exigida e o regime militar teve que ceder em alguns pontos. Essa reforma, que abordaremos em outros documentos, é vista por alguns setores como modernizadora do ensino superior, contudo, outro lado da moeda é que ela deu condições para a expansão do ensino superior privado. Isso se deu pela possibilidade de criação de estabelecimentos isolados em “caráter excepcional”. [4]
Já em 1933, o setor privado correspondia a 64,4% dos estabelecimentos de ensino superior contra 43,7% de instituições públicas. Até 1960 houve um balanceamento entre a quantidade de instituições públicas e privadas, pois houve a criação de universidades estaduais e um processo de federalização de universidades privadas, esse processo fez parte, por exemplo, da história do movimento estudantil da PUC-SP, contado do livro Memórias – a luta pelo ensino público e gratuito numa universidade particular de Maria Luisa Santos, que vamos retomar mais a frente.
O período de 1940 a 1970 foi de expansão da quantidade de universitários. Esse aumento da demanda levou a uma expansão do ensino superior que foi em muito absorvida pelo setor privado.
“No período 1940-1960 a população do país passou de 41,2 milhões para 70 milhões (crescimento de 70%), enquanto as matrículas no ensino superior triplicaram. Em 1960, existiam 226.218 universitários (dos quais 93.202 eram do setor privado) e 28.728 excedentes (aprovados no vestibular para universidades públicas, mas não admitidos por falta de vagas)6. Já no ano 1969 os excedentes somavam 161.527. A pressão de demanda levou a uma expansão extraordinária no ensino superior no período 1960-1980, com o número de matrículas saltando de aproximadamente 200.000 para 1,4 milhão, ¾ partes do acréscimo atendidas pela iniciativa privada. Em finais da década de 1970 o setor privado já respondia por 62,3% das matrículas, e em 1994 por 69%4. A partir de 1980 observou-se uma redução progressiva da demanda para o ensino superior em decorrência da retenção e evasão de alunos do 2º grau, inadequação das universidades às novas exigências do mercado e frustração das expectativas da clientela em potencial.”
A partir de 1990, o ensino superior se mantém praticamente estável, oferecendo cerca de 1,5 milhão de vagas. A relação entre público e privado diminui um pouco, com o decréscimo relativo de vagas ofertadas pelo setor privado. Nos anos 90, a relação de matrículas no setor privado passou de 62%, durante o governo Collor, para 58% no final do governo Itamar.
[1] Censo da Educação Superior 2019. Disponível em: https://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2020/Apresentacao_Censo_da_Educacao_Superior_2019.pdf
[2] Disponível em: < https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-86502002000900001>
[3] Informações disponíveis em: https://ufrj.br/acesso-a-informacao/institucional/historia/#:~:text=Em%207%20de%20setembro%20de,Rio%20de%20Janeiro%20(URJ). Acesso em 19/03/2021
[4] Ver mais na pesquisa de Carlos Benedito Martins “A reforma universitária de 1968 e a abertura para o ensino superior privado no Brasil”. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302009000100002