A miséria da filosofia pós-moderna

Há mais de 20 anos, as ideias “pós-modernas” não param de ganhar terreno no mundo acadêmico. Por diluição, progrediram para outras esferas sociais. São o centro de teorias – interseccionalidade, teorias decoloniais, entre outras – que encontram eco até na esquerda reformista. Elas também são frequentemente citadas pela mídia burguesa, na qual não é incomum um político reacionário bradando contra o pós-modernismo.

Quando proveniente da direita, a crítica a essas ideias não tem valor teórico e deve ser denunciada pelo que é: uma ofensiva contra toda a esquerda e contra as camadas mais oprimidas da população. No entanto, essas ideias também devem ser criticadas pela perspectiva da esquerda, a favor do interesse da luta revolucionária contra o capitalismo. Isto é o que faremos aqui.

Contudo, vejamos primeiro de onde vêm das ideias pós-modernas, quer dizer, qual o contexto histórico e político favoreceu seu surgimento.

A origem do pós-modernismo

A irresistível ascensão da burguesia, entre os séculos 16 e 19, fez surgir grandes filósofos, entre eles Descartes, Spinoza, Leibniz, Kant e Hegel, sem esquecer os materialistas franceses do século 18. Para além de suas distinções, essas filosofias refletiam o otimismo da burguesia, sua confiança em sua própria força. Tal confiança se justificava: em sua fase ascendente, a burguesia desempenhava um papel eminentemente progressista. Ao destruir a ordem feudal, abriu caminho para um crescimento sem precedentes das forças produtivas e, portanto, da cultura. Marx apontou isso no Manifesto do Partido Comunista.

Mas Marx também apontou que, em dado momento, a dominação burguesa se torna obstáculo ao crescimento das forças produtivas e ao progresso em geral. A burguesia vira, então, contrarrevolucionária. Isso claramente se manifestou já no século 19 e, então, de uma maneira terrível na grande carnificina imperialista de 1914-19181. Tal nova situação teve reflexo na filosofia burguesa, ao renunciar ao pretérito otimismo e, distanciando-se de uma realidade ameaçadora, refugiou-se em racionalizações subjetivistas ou lógico-linguísticas: fenomenologia, existencialismo, positivismo lógico, entre outras.

No entanto, a herança das grandes filosofias burguesas não foi perdida. A filosofia marxista – o materialismo dialético – é uma extensão dela: tem raízes no materialismo francês e na dialética de Hegel. Contudo, o marxismo é também uma negação da filosofia burguesa, pois é uma arma nas mãos da nova classe revolucionária: a classe trabalhadora (os assalariados).

Na trilha da Revolução Russa de 1917, a influência do marxismo foi tal que despertou a simpatia de muitos intelectuais das classes média e burguesa (os surrealistas, em particular). Mas a degeneração stalinista da Revolução Russa de meados da década de 1920 contaminou toda a Internacional Comunista e transformou o marxismo “oficial” em mingau dogmático. No desdobrar do final da Segunda Guerra Mundial, a autoridade do stalinismo estava mais forte do que nunca – e a “teoria” oficial dos partidos comunistas permaneceu o que foi antes da guerra: um dogma destinado apenas a defender os interesses e privilégios da burocracia stalinista.

Esse é o contexto geral que favoreceu o surgimento da filosofia pós-moderna na década de 1960. Repelida, não sem razão, pelo “marxismo” oficial, uma fração da intelectualidade de esquerda procurou um novo caminho entre o stalinismo e a infértil filosofia burguesa2. Na realidade, não era necessário buscar um novo caminho: bastava se reconectar com as ideias autênticas do marxismo. Incapazes de irem por tal caminho, os intelectuais pós-modernos desenvolveram uma filosofia que, sob um exterior radical e subversivo, marcava um profundo retrocesso não só em relação ao marxismo, mas também – na medida em que rejeitava a dialética – em relação a Hegel. As derrotas do movimento operário na década de 1970 consolidaram essa tendência filosófica.

Entre os pós-modernos se costuma classificar toda uma série de intelectuais – Foucault, Deleuze, Derrida, Baudrillard, Lyotard, entre outros – cujas obras estão longe de apresentarem uma homogeneidade. Para os propósitos deste artigo, isso não importa. O fato é que esses intelectuais compartilhavam, numa graduação variada, certas ideias filosóficas fundamentais que hoje dominam a corrente pós-moderna. É, então, sobre tais ideias que nossa crítica se apoiará.

A concepção da História

A filosofia pós-moderna decreta a impossibilidade de uma verdadeira ciência da história. No livro sobre Michael Foucault, o historiador Paul Veyne – pós-moderno desde sempre – escreve:

“Na natureza física, que as ciências exatas escrutam, os objetos do discurso científico apresentam regularidades […]. Em compensação, nas coisas humanas, só existem e só podem existir singularidades de um momento […], uma vez que o devir da humanidade é sem fundamento, sem vocação nem dialética que o ordenem; a cada época não há senão um caos de singularidades arbitrárias, provenientes da concatenação caótica precedente”3.

Aqui, como em outras partes do livro, o marxismo é alvo. Marx fundou uma ciência da história: o materialismo histórico. Ele demonstrou que o desenvolvimento das forças produtivas constitui a força motriz da história: a viabilidade de um determinado sistema econômico e social depende de sua capacidade de desenvolver suas forças produtivas (tecnologia, ciência, produtividade do trabalho humano). Quando um determinado sistema – com suas relações de produção e suas relações políticas, jurídicas, entre outras – impede o desenvolvimento das forças produtivas, mergulha em uma crise irreversível. O feudalismo foi varrido pela burguesia em ascensão por esta razão. O capitalismo é ameaçado pela classe trabalhadora pela mesma razão. A dialética das forças produtivas e das relações de produção constitui o fio condutor pelo qual é possível compreender o curso da história – melhor ainda: antecipá-la, o que nos permite nele intervir.

Como os pós-modernistas refutam o materialismo histórico? Em geral, atribuem a Marx a concepção de história de Hegel, uma concepção teleológica segundo a qual haveria um “Fim da História” – no sentido de uma finalidade – que estaria inteiramente contido em sua Origem. Em Hegel, a última etapa do Saber Absoluto já está potencialmente contida, desde a origem, na Ideia Absoluta, que se realiza e se aliena na História para retornar a si mesma no final do percurso.

Contudo, diferente do que muitos pós-modernistas afirmam, essa não é a concepção marxista da história. De fato, Marx colocou a dialética hegeliana sobre bases materialistas, mudando tudo: há, na história, um fio condutor e leis que nos permitem compreender seu processo como um todo, mas não há Ideia Absoluta, nem teleologia, nenhuma direção ou propósito predeterminado4. O marxismo permite antecipar tendências e eventos históricos, mas nada é escrito com antecedência. Isso está, aliás, implícito na famosa fórmula de Rosa Luxemburgo: “socialismo ou barbárie”.

É verdade que, na década de 1960, os “teóricos” stalinistas também confundiram alegremente as concepções hegeliana e marxista da história. Do ponto de vista deles, era um modo de justificar tudo: a burocracia e as traições da direção do Partido viraram momentos positivos “necessários” da Grande Dialética da História. Então, silêncio nas linhas de batalha! Diante disso, os pós-modernistas não conseguiram – e não quiseram – regressar ao marxismo autêntico. Eles simplesmente rejeitaram o materialismo histórico e o método dialético. A partir de então, eles não buscaram na história nem lei ou fio condutor, tampouco encontraram algo parecido – e puderam proclamar, como Paul Veyne, que a história é uma sucessão de “caos de singularidades”.

Idealismo

Para os marxistas, a análise de uma determinada sociedade – presente ou passada – requer um estudo aprofundado da sua base econômica, de sua superestrutura e das interações recíprocas entre as duas, e ainda assim entre os diferentes elementos da superestrutura (por exemplo, entre as lutas sociais, os sindicatos e os partidos). É necessário um método dialético que, na multiplicidade de fatores, procure determinar aqueles que em dado momento são essenciais, a fim de identificar as tendências fundamentais do processo. É uma tarefa criteriosa, como é toda ciência digna desse nome.

Para os pós-modernos, as coisas são mais simples. Uma vez que tenham reduzido a História a uma sucessão de “caos de singularidades”, sua tarefa é colher desse “caos” um certo número de elementos, depois articulá-los como bem entenderem. Na medida em que renunciaram a toda lei e a todo fio comum, podem negligenciar a análise das relações de produção. Mas como estes constituem a base material de todo o edifício social, os pós-modernos inevitavelmente afundam no idealismo filosófico.

Michel Foucault é sem dúvida o mais “concreto” dos pós-modernos, pelo menos em alguns de seus livros. Por exemplo, suas narrativas sobre o sistema penal e as instituições psiquiátricas estão repletas de fatos e extratos de documentos legislativos, administrativos, teóricos etc. São geralmente interessantes, mas o conjunto fica como que suspenso no ar pela ausência de uma análise global das dinâmicas econômicas e políticas que determinaram as evoluções do tratamento social da loucura e da criminalidade. Ao invés de uma análise materialista, temos generalizações articuladas em torno dos conceitos de “discurso” e “práticas”. “Discurso” e “práticas” substituem os princípios explicativos. Mas de onde vêm esses discursos e práticas? Os marxistas respondem: em última análise, eles estão enraizados nas relações de produção, ou seja, na estrutura de classes da sociedade.

Não estamos dizendo que escrever uma história marxista do sistema penal ou das instituições psiquiátricas seria uma tarefa fácil. Mas Foucault rejeita sua necessidade. Ele nos diz, em suma, “existem tais discursos e tais práticas – e isso é tudo”. Ele nem mesmo procura compreender como um “discurso” sucede ao outro. Na verdade, ele dispersa essa questão como algo irrelevante.

Trazendo outro exemplo: em “As Palavras e as Coisas”, Foucault pretende resgatar a história da ciência na Europa, desde o Renascimento, sob a ótica de uma sequência da “episteme“, termo que designa, a grosso modo, as “condições do discurso” científico de uma determinada época. Ainda assim, neste livro, a base econômica e social da história da ciência é notável por sua ausência. Isso dá origem a afirmações absurdas, como nas seguintes linhas:

No nível profundo do conhecimento ocidental, o marxismo não introduziu nenhum corte real; alojou-se sem dificuldade, como uma figura cheia, tranquila, confortável, e minha fé, satisfatória por um tempo (a sua), dentro de uma disposição epistemológica que o acolheu favoravelmente (…). O marxismo é no pensamento do século 19 como um peixe na água: ou seja, em qualquer outro lugar ele para de respirar”.5

Só podemos sorrir ao comparar a recepção “favorável” que, segundo Foucault, a “disposição epistemológica” do século 19 reservou ao marxismo – e a recepção glacial que as classes dominantes reservaram a Marx, seus camaradas e a todos aqueles que, a partir de então, lutaram pelo socialismo. Mas, acima de tudo, a ideia de que o marxismo “para de respirar” fora do século 19 é um desses erros patentes ao qual leva o método idealista de Foucault. A vitalidade científica do marxismo não depende de quem sabe qual “disposição epistemológica“; ela decorre, em última análise, das próprias relações capitalistas de produção, isto é, das relações de classe que determinaram o surgimento… do marxismo. Até que o capitalismo seja derrubado, o marxismo continuará sendo a arma mais poderosa disponível para a classe trabalhadora internacional para acabar com esse sistema. Que outra arma, senão? Nenhuma suplantou o marxismo, até onde sabemos.

É verdade que o “marxismo” oficial (stalinista) que Foucault enfrentou na década de 1960 deixou de respirar. Mas isso não foi consequência de uma nova “disposição epistemológica“; foi a consequência da degeneração burocrática da Revolução Russa e seu impacto extremamente negativo no movimento comunista internacional. Dentro do movimento trabalhista, o marxismo autêntico foi marginalizado, certamente, mas não perdeu nada de sua vitalidade científica. Ele estava respirando a plenos pulmões – e respira muito bem ainda hoje.6

Relativismo e irracionalismo

Tal idealismo filosófico está associado a um relativismo com implicações francamente reacionárias. Para o pós-moderno, não só a história é uma sucessão de “caos de singularidades“, como não há nada – nenhum critério objetivo – pelo qual se possa afirmar que um sistema econômico e social apresenta progresso em relação ao outro. Em suma, todas as eras e todos os sistemas “são iguais”. O progresso seria a velha ideia de um racionalismo ilusório e opressor. O pós-modernismo claramente se inclina para uma forma de irracionalismo – mesmo que isso signifique se contradizer, já que mesmo para escrever bobagens pós-modernas é preciso recorrer a um mínimo de racionalidade lógica e conceitual. Da mesma forma, os pós-modernos condenam as “generalizações”, mas continuam a fazê-las – muito mais confusas e arbitrárias, ainda por cima.

O marxismo rejeita esse relativismo e esse irracionalismo. Compreendendo como um todo, a história da humanidade marcou um progresso colossal. E o critério desse progresso não é nem subjetivo, nem moral; ele é objetivo: é o crescimento das forças produtivas. Que esse progresso tenha sido acompanhado por guerras, exploração e opressão de todos os tipos, é óbvio. Entretanto, ele marcou um prodigioso desenvolvimento da cultura, da ciência e da tecnologia, que constitui a premissa necessária e indispensável de uma nova etapa da história: a transição para uma sociedade sem classes, sem exploração e sem opressão.

Nessa perspectiva, pode-se caracterizar como progressista qualquer coisa que promova a luta pela revolução socialista – e como reacionária qualquer coisa que a impeça, de uma forma ou de outra. É claro que na teia de contradições políticas e sociais nem sempre é fácil distinguir o que é progressista do que não é. Mas pelo menos os marxistas têm um critério objetivo e cientificamente estabelecido.

Tomemos a questão do Imperialismo. Os marxistas de todo o mundo apoiam firmemente a luta contra o imperialismo e contra todas as formas de opressão nacional, porque este combate é parte da luta contra o sistema capitalista. É bem diferente nas teorias “pós-coloniais” (e para ativistas “decoloniais”), que são inspiradas no relativismo e no irracionalismo pós-modernos. De acordo com essas teorias, não apenas todos os sistemas são iguais, mas a “racionalidade ocidental” é inoperante no Oriente. Pior: seria opressor. Conclusão: os trabalhadores das potências imperialistas ocidentais não devem interferir no que está acontecendo nos países oprimidos por essas mesmas potências, porque não podem entender nada sobre isso. Toda essa tagarelice termina, frequentemente, em uma idealização das tradições e dos governos, por mais reacionários que sejam, dos países dominados pelo imperialismo – porque pelo menos, dizem os ativistas pós-coloniais, essas são “nossas” tradições e “nossos” governos! Este é o atoleiro para o qual o pós-modernismo empurrou vários ativistas.

Por meio da crítica da “racionalidade ocidental“, é o marxismo em particular que é visado. As ideias do alemão Karl Marx seriam ineficazes – e até mesmo opressoras! – fora do Ocidente. Para refutar tal infantilidade, basta fazer as seguintes perguntas: há, sim ou não, uma luta de classes no Oriente? As relações capitalistas de produção são ali desenvolvidas? A propriedade privada dos grandes meios de produção e a busca pelo lucro dominam a vida econômica, social e política de lá? Respostas: três vezes, sim. Mas então, por que o marxismo, que nos permite analisar e combater o capitalismo no Ocidente, não nos permite analisar e combater o capitalismo no Oriente? Procuraríamos em vão, nas teorias pós-coloniais, uma tentativa séria de responder a esta questão.

Fragmentação das lutas

Encontramos as mesmas premissas filosóficas– e o mesmo tipo de reacionarismo – em teóricos e ativistas da “interseccionalidade”. Em vez de unir todas as camadas exploradas e oprimidas da população em uma luta comum contra o sistema capitalista, eles fragmentam a luta em uma miríade de “lutas” específicas à cada opressão e estritamente reservadas às suas vítimas diretas. De fato, eles explicam, os brancos “não conseguem entender” a opressão que os negros sofrem; os homens, a opressão que as mulheres sofrem; os heterossexuais, a opressão que os homossexuais sofrem – e assim por diante ad nauseam, de modo que apenas “alianças” pontuais entre categorias oprimidas seriam possíveis. Tudo isso equivale a excluir a possibilidade de uma luta comum e unitária das massas exploradas e oprimidas contra a burguesia – que, claro, se alegra com tal espetáculo, ao mesmo tempo em que estimula os latidos racistas, machistas e homofóbicos da extrema direita contra as teorias pós-modernas.

Os marxistas lutam contra todas as formas de opressão – incluindo, é claro, quando são os próprios trabalhadores que oprimem os outros. Mas nos opomos a tudo o que, sob o pretexto de uma luta contra a opressão, divide a classe operária, da qual só uma mobilização unitária e massiva permitirá pôr fim ao capitalismo. Enquanto o capitalismo não for derrubado, as opressões continuarão e, devido à crise desse sistema, se agravarão. É claro que devemos lutar ainda hoje contra todas as formas de opressão, porque esse combate é parte integrante da luta contra o capitalismo; mas deve ser feito de forma a promover a unidade de nossa classe em sua luta contra a burguesia.

Na ausência de viés de classe que subordine a luta contra as opressões à necessidade de uma luta unitária das massas, os ativistas interseccionais caem constantemente em posições completamente reacionárias. Por exemplo, em uma mobilização contra a opressão aos negros, jovens e trabalhadores brancos serão mantidos fora da luta, ou privados do direito de se expressar, sob o pretexto de que são “privilegiados” (pelo simples fato de serem brancos). Infelizmente, este exemplo não é um exagero. No universo implacável dos interseccionalistas, tais práticas são comuns e muitas vezes degeneram em uma vasta confusão em que todos estigmatizam o “privilégio” do próximo – novamente, para deleite da classe dominante.

O poder, o Estado, o partido

Acabamos de mencionar a ausência de um ponto de vista de classe entre os teóricos interseccionalistas. Na realidade, é necessário ser mais específico. Os interseccionalistas – e os pós-modernos em geral – expressam um ponto de vista de classe: aquele organicamente confuso e contraditório, da pequena burguesia, que está presa entre as duas classes fundamentais da sociedade capitalista (a burguesia e o proletariado). Incapaz de vincular seu destino ao do trabalhador assalariado, o intelectual pós-moderno rejeita os métodos revolucionários e o programa de luta pela transformação socialista da sociedade.

Consideraremos a questão do Estado. Com base em toda a experiência do movimento operário internacional, o marxismo afirma que os trabalhadores devem tomar o poder, esmagar o aparelho estatal burguês e substituí-lo por um Estado operário (o “proletariado organizado como classe dominante“, escreveu Marx).7 Além disso, a história dos últimos 150 anos demonstrou, por meio da experiência de numerosas revoluções, que os trabalhadores não podem tomar o poder – e mantê-lo – se não tiverem um partido revolucionário suficientemente poderoso, determinado, lúcido e disciplinado.

O pós-modernismo, por outro lado, põe de lado essas preciosas lições da história, e remenda, no lugar, uma teoria do poder extremamente abstrata, cujas conclusões gerais são as seguintes: não há necessidade de tomar o poder, não há necessidade de um estado operário, não necessidade de um partido revolucionário, porque tudo isso faz parte da velha estratégia marxista que deve ser substituída por lutas “locais”, “descentralizadas” e até, por que não, “destotalizadas”. Sobre o livro “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault, seu amigo Gilles Deleuze escreveu com evidente entusiasmo:

É como se, finalmente, algo novo tivesse surgido desde Marx. (…) Ao fundo ressoa uma batalha, com suas táticas locais, suas estratégias gerais, que entretanto não procedem pela totalização, mas por revezamento, conexão, convergência, extensão. (…) O privilégio teórico que [o marxismo] dá ao Estado como aparelho de poder conduz de certa forma à concepção prática de um partido dirigente, centralizador, procedendo à conquista do poder estatal (…). Outra teoria, outra prática de luta, outra organização estratégica são as apostas do livro de Foucault”.8

Gilles Deleuze tem o cuidado de não nos dizer em que consiste essa nova “prática de luta” e essa nova “organização estratégica“. No entanto, antes de abandonar a construção do partido revolucionário e o objetivo de conquistar o poder estatal, gostaríamos de saber mais! Não há nada mais concreto, aliás, em “Vigiar e Punir”. Nesta história do sistema prisional, não há vestígios das “práticas de luta” e da “organização estratégica” que deveria substituir o programa e a estratégia marxistas. Ao contrário do que afirma Deleuze, este livro não formula uma alternativa séria ao tesouro teórico do marxismo sobre as questões do poder, do partido e do Estado. Comparados a esse tesouro, os “revezamentos, conexões, convergências, extensões” e outras “estratégias gerais” que “não procedem pela totalização” são abstrações vazias, apenas boas o suficiente para fornecer uma base “teórica” para o ativismo interseccionalista e pós-colonial. Eles não representam a sombra de uma ameaça para a burguesia, que, portanto, os acolhe com benevolência.

Em sua obra, Michel Foucault destaca que as relações de poder percorrem a sociedade a uma boa distância do aparato estatal. O marxismo não contesta essa verdade geral. É óbvio que nem todas as formas de “poder” – no sentido amplo da palavra – estão constante e diretamente ligadas ao aparelho de Estado. Afinal, mesmo a empresa capitalista é o lugar de uma relação de poder que geralmente dispensa o Estado; este só intervém diretamente, na forma das CRS [Companhias Republicanas de Segurança], quando os trabalhadores se mobilizam e, por exemplo, bloqueiam o acesso ao local. Bastões limpando uma linha de piquete: “revezamento”, “conexão”, “convergência” ou “extensão”? Aos pós-modernos, para nos esclarecer, nós apontamos a incompetência!

No entanto, o essencial está em outro lugar: para os marxistas, a conquista do poder estatal pelos trabalhadores é a condição sine qua non de uma transformação radical e progressiva de todas as relações sociais. Esta é precisamente a ideia “totalizadora” que Deleuze e Foucault rejeitam. Parecem suspeitar que “totalizações” abrem caminho para o totalitarismo. É verdade que na época, as burocracias stalinistas haviam transformado a teoria marxista do partido e do Estado em uma caricatura dogmática cuja única função era defender seus próprios interesses e privilégios. Na URSS, o Estado operário estava monstruosamente “deformado“, como Trotsky havia explicado há muito tempo. Quanto ao chamado “partido revolucionário”, ele não passava de um órgão da burocracia e uma forma de ascensão. Nos países capitalistas, os dirigentes dos partidos comunistas não superavam as “ideias” formuladas pelos burocratas soviéticos. Diante disso, em vez de se voltarem para as ideias autênticas de Marx e Lenin, os intelectuais pós-modernos mergulharam em toda sorte de abstrações que marcaram uma profunda regressão do marxismo – e o abandono de toda perspectiva revolucionária.

Atualmente, 30 anos após o colapso da União Soviética, a influência do stalinismo também desmoronou, mas não a das ideias pós-modernas, que encontraram terreno fértil no mundo acadêmico. A burguesia joga um jogo duplo com essas ideias: por um lado, favorece sua difusão, porque não ameaçam seu poder e confundem o movimento operário; por outro, incentiva as ofensivas da extrema direita que, sob o pretexto de atacar o pós-modernismo, ataca as mulheres e as minorias oprimidas. Quanto à esquerda reformista, está cada vez mais sujeita à influência do pós-modernismo, inclusive em suas formas mais francamente reacionárias (pós-colonialismo, interseccionalidade etc.).

Esta é a atual situação. É provável que a maré alta da luta de classes, em escala global, mine a influência das ideias pós-modernas. Mas não se deve esperar passivamente por esse desdobramento. De agora em diante, devemos nos engajar em uma luta resoluta contra essas ideias. Isso é parte integrante do trabalho de rearmar, teoricamente, a juventude e o movimento operário.

Notas e referências:

1. A denominada Primeira Guerra Mundial (Nota do Tradutor – N.T.).

2. Não por acaso que a filosofia pós-moderna tenha florescido primeiramente na França: o Partido Comunista Francês (PCF) era um dos partidos mais poderosos da Europa Ocidental.

3. VEYNE, Paul. Foucault. seu pensamento, sua pessoa. Tradução de Marcelo Jacques de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p.86-87 (N.T.)

4. Tampouco existe um “fim” da história no sentido de uma “parada”. O comunismo marca não o fim da história, mas o fim da sociedade de classes.

5. Les mots et les choses. Tel Gallimard, p. 274.

6. Segundo Foucault, o que determina a sucessão da “episteme“? Em Les mots et les chooses, ele coloca a questão nos seguintes termos: “Só o pensamento se recuperando na raiz de sua história poderia encontrar, sem dúvida, o que foi a verdade solitária deste evento” aqui “evento” designando a passagem de uma “episteme” para outra. Mas Foucault abandona imediatamente a “verdade solitária” à sua solidão – e explica que quer se contentar, neste livro, em “viajar pelo acontecimento em sua disposição manifesta“. (págs. 229 e 230)

Nota-se, de passagem, que essas formulações de Foucault estão carimbadas com o selo do idealismo filosófico. Do ponto de vista do materialismo marxista, não pode haver “verdade solitária” na evolução do conhecimento (incluindo momentos de ruptura), porque essa evolução é constantemente determinada – de forma complexa, contraditória, dialética, mas não menos eficaz – pela evolução das relações de produção e de toda a superestrutura social, política etc. Em outras palavras, o pensamento não tem história independente da história em geral, a começar pela das relações de produção. A história da ciência e da filosofia está enraizada na história das relações materiais entre os homens. Portanto, o pensamento não pode “se recompor” – em outras palavras: compreender a si mesmo – senão estudando o que o funda e o determina constantemente: a realidade material em todas as suas dimensões, inclusive as sociais.

7. Uma análise detalhada da teoria marxista do Estado está além do escopo deste artigo. Sobre este tema, é preciso ler prioritariamente “O Estado e a Revolução”, de Lênin. Basta dizer: ao contrário dos Estados monstruosos dos regimes stalinistas, o Estado operário deve morrer à medida que as velhas classes dominantes se dissolvem na nova ordem social – e à medida que o padrão de vida crescente das massas elimina os estigmas herdados do capitalismo.

8. Foucault. Les Editions de minuit. Reprise. p. 38.

TRADUÇÃO DE NATHAN BELCAVELLO DE OLIVEIRA

PUBLICADO EM MARXISTE.ORG