INTRODUÇÃO
Qual papel pode exercer a violência quando usada pela classe vitoriosa em uma revolução? Na Rússia pós-outubro, os sovietes e seus principais dirigentes, os bolcheviques, enfrentaram não só desafios administrativos por terem se apoderado da velha máquina estatal tsarista, mas também grandes desafios militares.
Após os bolcheviques tomarem o palácio do governo enfrentando pouquíssima resistência, apoiados por operários dos principais centros industriais e por destacamentos de soldados que queriam pôr fim à Primeira Guerra, iniciou-se uma campanha, mais ou menos aberta, para derrubar militarmente o governo socialista soviético. Estavam envolvidos, na ação contrarrevolucionária, setores tradicionais das forças armadas, destacamentos de cossacos, a burguesia dos países imperialistas, grupos anarquistas, socialistas, e até mesmo integrantes do Partido Bolchevique. O cadáver do capitalismo fedia e impregnava todo o ar.
A tomada do Estado foi uma vitória inegável e estrondosa para a classe operária mundial, que inevitavelmente inspiraria novas revoluções proletárias. Entretanto, diante da crescente organização militar da contrarrevolução no interior e no exterior da Rússia, cada vez mais profissionalizada e ousada, o Estado soviético precisou construir uma tropa própria, igualmente profissional, que estivesse à altura das necessidades do uso da força. O objetivo: salvaguardar, desesperadamente, a revolução. Não bastavam mais as guerrilhas revolucionárias, heroicas até certa altura, ou destacamentos dispersos que se soltaram do antigo exército tsarista. Era urgente que o proletariado defendesse a revolução munido com as mais modernas técnicas de organização e comando militar, em um exército fortemente centralizado.
Para realizar essa tarefa, Leon Trotsky foi eleito, em março de 1918, pelo Comitê Executivo do Congresso Pan Russo dos Sovietes, como Comissário do Povo Para a Guerra. Em um contexto tumultuado e em meio a grandes fragilidades, Trotsky expõe neste texto, com tradução inédita do inglês para o português, a trajetória da construção e da vitória do que se tornou um dos exércitos mais poderosos do planeta, que em 1920 era composto por 5 milhões de efetivos. Nas palavras do líder: “A partir da massa frágil, instável e desintegrada, um verdadeiro Exército foi criado”.
O presente artigo foi escrito por Trotsky para a Internacional Comunista, em 21 de maio de 1922, e publicado no jornal nº 8, de 1922, da Administração Chefe das Escolas Militares. Retirado diretamente dos Escritos Militares de Trotsky (Vol. 1), disponível no site Marxists Internet Archive e acessado em 18/11/2020.
Boa leitura!
Pedro Henrique Corrêa
A trajetória do Exército Vermelho
Os problemas conectados com a criação das forças armadas da revolução são de imensa importância para os partidos comunistas de todos os países. Desconsiderar estes problemas, ou, ainda pior, uma atitude negativa diante deles, escondida atrás da fraseologia humanitária pacifista, é realmente criminoso. Argumentos segundo os quais toda violência, incluindo a violência revolucionária, é má, e que os comunistas, portanto, não deveriam se envolver na “glorificação” da luta armada e das forças armadas revolucionárias, equivalem a uma filosofia digna dos Quakers, Dukhobors[1] e dos solteirões do Exército da Salvação. Permitir tal propaganda no Partido Comunista é como permitir propaganda tolstoiana na guarnição de uma fortaleza sitiada. Quem deseja o fim deve desejar os meios. O meio para emancipar os trabalhadores é a violência revolucionária. Desde o momento da conquista do poder, a violência revolucionária toma a forma de um exército organizado. O heroísmo do jovem trabalhador que morre na primeira barricada da revolução quando ela está começando não se difere em nada do heroísmo do soldado vermelho que morre em um front da revolução depois que o poder do Estado foi tomado. Apenas tolos sentimentalistas podem supor que o proletariado de países capitalistas corre o risco de exagerar na regra da violência revolucionária e mostrar excessiva admiração pelos métodos do terrorismo revolucionário. Pelo contrário, o que falta ao proletariado é, precisamente, a compreensão do papel libertador da violência revolucionária. Essa é toda a razão pela qual o proletariado ainda permanece na escravidão. Propaganda pacifista entre os trabalhadores leva apenas ao enfraquecimento da vontade do proletariado, e ajuda a violência contrarrevolucionária, armada até os dentes, a continuar.
Antes da revolução, nosso partido possuía uma organização militar. Ela tinha um duplo propósito: exercer propaganda revolucionária nas forças armadas, e preparar pontos fortes dentro do próprio exército para derrubar o Estado. Desde que o entusiasmo revolucionário agarrou o exército como um todo, o papel puramente organizacional das células bolcheviques nos regimentos não foi, particularmente, evidente. Mas ele foi muito importante, dada a possibilidade que existia para selecionar elementos que, embora pequenos em número, fossem decisivos – elementos cuja importância provou ser enorme nas horas mais críticas da revolução. No momento da insurreição de outubro, estes homens desempenharam seus papéis como comandantes, comissários das unidades, e assim por diante. Depois, nós encontramos muitos deles na função de organizadores da Guarda Vermelha e do Exército Vermelho.
A revolução cresce diretamente fora da guerra, e uma das mais importantes de suas palavras de ordem foi pelo fim da guerra, que coincidia ao fenômeno do cansaço de guerra e do ódio pela guerra. No entanto, a própria revolução originou novos perigos de guerra, que continuaram aumentando. Por isso a extrema fraqueza externa da revolução no primeiro período. A quase completa vulnerabilidade da revolução foi revelada no momento das negociações de Brest-Litovsk. Os homens não queriam lutar, considerando que a guerra tinha sido completamente consignada ao passado: os camponeses apropriaram-se da terra, os trabalhadores estavam construindo suas organizações e tomando conta da indústria.
Daí emergiu o colossal experimento no pacifismo do período de Brest-Litovsk. A República Soviética declarou que ela não poderia assinar um tratado forçado, mas tampouco poderia lutar, e emitiu uma ordem para o exército se dispersar. Essa foi uma medida muito arriscada a ser tomada, mas ela diz respeito às circunstâncias do tempo. Os alemães retomaram sua ofensiva, o que se tornou o ponto de partida para uma profunda mudança na consciência das massas: elas começaram a pensar que foi necessário defender a si mesmas com armas. Nossa declaração pacifista introduziu um fermento de desintegração no Exército de Hohenzollern. A ofensiva do General Hoffman nos ajudou a trabalhar seriamente para a criação de um Exército Vermelho.
Inicialmente, no entanto, nós ainda não tínhamos decidido usar o recurso do alistamento compulsório: nem possibilidades políticas nem organizacionais estavam presentes para mobilizar os camponeses que tinham acabado de ser desmobilizados. O exército foi construído no princípio voluntário. Naturalmente, ele foi preenchido não apenas com jovens trabalhadores abnegados, mas também com vagabundos, elementos instáveis que foram muito numerosos nesse momento, e os quais não foram sempre da melhor qualidade. Nossos novos regimentos, criados no período de rompimento dos antigos, careciam de estabilidade e não eram muito confiáveis. Isso foi tão inteiramente óbvio para amigos e adversários quando a revolta dos checoslovacos, inspirada pelos Socialistas Revolucionários (SRs) e em outros brancos, eclodiu em Volga[2]. A capacidade de resistência de dos nossos regimentos foi infinitesimal: cidade após cidade caiu, durante o verão de 1918, na mão dos checoslovacos e dos contrarrevolucionários russos que se juntaram a eles. O centro deles foi Samara. Eles capturaram Simbirsk e Kazan. Nizhny-Novgorod foi ameaçada. Por trás de Volga eles preparavam assaltar Moscou. Nesse momento (agosto de 1918), a República Soviética colocou à frente extraordinários esforços para desenvolver e fortalecer seu exército. Em um primeiro momento, o método da mobilização de massas dos comunistas foi aplicado. Um aparato centralizado de liderança e educação políticas foi formado para as tropas na fronte de Volga. Junto com isso, nas regiões de Moscou e Volga foram feitas tentativas de mobilizar certas faixas etárias de trabalhadores e camponeses. Pequenas unidades de comunistas garantiram a realização dessa mobilização. Nas províncias da Região de Volga, um regime rigoroso foi estabelecido, em concordância com a extensão e a gravidade do perigo. Ao mesmo tempo uma intensa agitação foi levada a frente, através tanto da palavra escrita quanto da falada, com grupos de comunistas seguindo de vila em vila. Depois da hesitação inicial, a mobilização se desenvolveu sob larga escala. Ela foi apoiada por uma dura luta contra a deserção e contra aqueles grupos sociais que sustentaram e inspiraram deserção – os kolas, parte do clero, e o que sobrou da velha burocracia. As unidades recém-criadas foram administradas por trabalhadores comunistas de Petrogrado, Moscou, Ivanovo-Voznesensk, e assim por diante. Para um primeiro momento, comissários receberam nas unidades o status de líderes revolucionários e representantes diretos do poder soviético. Através de poucas sentenças exemplares os tribunais revolucionários alertaram a qualquer um que a pátria socialista, que estava em perigo mortal, requeria obediência incondicional de todos. A combinação de medidas de agitação, organização e repressão trouxeram dentro de poucas semanas a virada que era necessária. A partir da massa frágil, instável e desintegrada, um verdadeiro exército foi criado. Nós tomamos Kazan em 10 de setembro de 1918, e recuperamos Simbirsk no dia seguinte. Aquele momento foi uma data notável na história do Exército Vermelho. Imediatamente, nós sentimos chão firme debaixo de nossos pés. Estas não eram mais nossas primeiras tentativas impotentes: de agora em diante nós poderíamos combater e vencer.
O aparato da administração militar foi construído naquele tempo, por todo o país, em estreita combinação com os sovietes locais de cada província, uyezd e volost[3]. O território da república, o qual, embora separado pelo inimigo, era ainda enorme, era dividido em distritos, cada um abrangendo diversas províncias[4]. Desse modo, a centralização necessária da administração foi alcançada.
A dificuldades políticas e organizativas foram incrivelmente grandes. As mudanças psicológicas ao longo da destruição do antigo exército até a criação de um novo, foi alcançada somente ao custo de contínua fricção e conflito interno. O antigo exército lançou comitês eleitos pelos soldados, e comandantes eleitos que eram na verdade subordinados a estes comitês. A medida era, evidentemente, não militar, mas politicamente revolucionária em seu caráter. Do ponto de partida de controlar tropas na batalha e prepará-las para a batalha, ela era intolerável, monstruosa, fatal. Não existia e não poderia existir qualquer possibilidade de controlar tropas pelos meios de comitês eleitos e comandantes que eram subordinados a estes comitês, e que poderiam ser substituídos a qualquer momento. Mas o exército não queria lutar. Ele tinha levado a cabo uma revolução social dentro dele mesmo, pondo de lado os comandantes das classes dos senhores de terra e da burguesia e estabelecendo órgãos do autogoverno revolucionário, no formato dos sovietes de deputados operários. Estas medidas organizativas e políticas foram corretas e necessárias do ponto de vista do rompimento com o antigo exército. Mas um novo exército capaz de lutar certamente não poderia crescer diretamente deste. Os regimentos tzaristas, depois de experienciarem o período Kerensky, debandaram depois de outubro e foram reduzidos a nada. A tentativa de aplicar nossos velhos métodos organizacionais para a construção de um Exército Vermelho ameaçou miná-lo desde o início. A eletividade dos comandantes no exército tzarista foi um caminho de purgá-lo de possíveis agentes da restauração. Mas o sistema de eleição não poderia de nenhuma maneira garantir seguramente comandantes competentes, adequados e com autoridade para o exército revolucionário. O Exército Vermelho foi construído do alto, em concordância com os princípios da ditadura da classe trabalhadora. Comandantes foram selecionados e testados pelos órgãos do poder soviético e pelo Partido Comunista. A eleição de comandantes pelas próprias unidades – as quais eram politicamente pouco instruídas, sendo compostas por jovens camponeses recém-mobilizados – inevitavelmente se transformaria em um jogo de azar, e frequentemente, de fato, criou circunstâncias favoráveis para maquinações de vários intriguistas e aventureiros. Similarmente, o exército revolucionário, como um exército para ação e não como uma arena de propaganda, foi incompatível com o regime de comitês eleitos, que na verdade não poderiam se não destruir todo o controle centralizado, ao permitir que cada unidade decidisse por ela própria se ela concordaria em avançar ou permanecer na defensiva. Os socialistas revolucionários de esquerda carregaram essa pseudodemocracia caótica ao ponto do absurdo quando eles solicitaram aos regimentos individuais para decidirem se eles aceitariam realizariam as condições do armistício com os alemães ou partiriam para a ofensiva. Fazendo isso os socialistas revolucionários de esquerda estavam meramente tentando levantar o exército contra o poder soviético que o havia criado.
O campesinato, tomado por si mesmo, é incapaz de criar um exército centralizado. Ele não pode ir além de unidades locais de guerrilha, a “democracia” primitiva que é frequentemente um biombo para a ditadura pessoal do chefe cossaco. Estas tendências guerrilheiras, refletindo o elemento da espontaneidade camponesa na revolução, encontra sua expressão mais acabada entre os socialistas revolucionários de esquerda e os anarquistas, mas também tomou posse de uma considerável seção dos comunistas, especialmente aqueles que vieram dos camponeses ou tinham formalmente sido soldados ou suboficiais[5].
No primeiro período, a guerra de guerrilhas foi uma arma necessária e adequada. A luta contra a contrarrevolução, a qual ainda não tinha se unida, unificando e armando suas forças, foi travada por corpos de tropas pequenas e independentes. Esse tipo de guerra solicitou auto sacrifício, iniciativa e independência. Mas na medida em que a guerra cresceu em seu alcance, ela demandou por organização própria e disciplina. Os hábitos da guerra de guerrilha começaram a girar o seu polo negativo em direção à revolução. Transformar unidades em regimentos, colocar regimentos em divisões, subordinar comandantes de divisão aos comandantes dos exércitos e das frontes foi uma tarefa de grande dificuldade, e nem sempre foi efetuada sem perda.
A indignação contra o centralismo burocrático da Rússia Tzarista formou uma característica constituinte da revolução. Regiões, províncias, uyezds, e cidades rivalizam umas com as outras na tentativa de mostrar sua independência. A ideia de “poder nas localidades” assumiu um caráter extremamente caótico no período inicial. Nos círculos socialistas revolucionários de esquerda e anarquistas, ela foi unida com o doutrinalismo federalista reacionário, mas entre as amplas massas ela foi uma inevitável e, tanto quanto suas origens estavam preocupadas, uma reação saudável contra o antigo regime que a havia sufocada. A partir de um determinado momento, contudo, com a rigorosa unificação das forças contrarrevolucionárias e o crescimento das ameaças externas, estas tendências primitivas para autonomia se tornaram cada vez mais perigosas, tanto do ponto de vista político quanto, em particular, do militar. Esse problema irá certamente desempenhar um grande papel na Europa ocidental, acima de tudo na França, onde os prejuízos em favor do autonomismo e do federalismo são mais fortes do que em qualquer outro lugar. A superação mais rápida possível de tais prejuízos, sob a bandeira do centralismo proletário revolucionário, é um pré-requisito para a futura vitória sobre a burguesia.
O ano de 1918 e uma substancial parte de 1919 foram gastos na luta obstinada para criar um exército centralizado, disciplinado, abastecido e controlado a partir de um único centro. Na esfera militar esse exército refletiu, embora de maneira mais acentuada, o processo que se desenvolvia em todas as esferas da construção da república soviética.
A seleção e criação da equipe de comando envolveu um número de dificuldades muito grandes. Nós tínhamos a nossa disposição o que foi deixado dos velhos corpos de oficiais regulares, um largo estrato de oficiais contratados durante a guerra, e, finalmente, os comandantes apresentados pela própria revolução no seu primeiro período, o guerrilheiro.
Do antigo corpo de oficiais permaneceu conosco os homens mais idealistas, quem entendiam, ou, pelo menos, sentiam o significado da nova época (estes foram, certamente, uma minoria muito pequena), ou os burocratas, inertes, sem iniciativa, homens a quem faltava energia para ir para cima dos brancos: enfim, não existiram mais que uns poucos contrarrevolucionários ativos, quem os eventos tinham apanhado desprevenidos.
Quando nós tomamos nossas primeiras medidas construtivas, a questão destes antigos oficiais do antigo exército tzarista surgiu de uma forma aguda. Nós precisávamos deles como representantes da sua profissão, como homens quem eram familiares com a rotina militar, e sem que devêssemos ter que começar do zero. Nossos inimigos, nesse caso, dificilmente nos permitiriam seguir nossa preparação até que ela alcançasse o nível requerido. Nós não poderíamos construir um aparato militar centralizando, e um exército correspondente, sem trazer para o trabalho muitos representantes do antigo corpo de oficiais. Eles entraram agora no exército não como representantes das velhas classes dominantes, mas como capatazes da nova classe revolucionária. Muitos deles, para ser preciso, nos traíram, passaram para o lado do inimigo ou participaram de revoltas; mas, no essencial, seu espírito de resistência de classe foi quebrado. Nunca antes, o ódio sentido por eles pelas massas de praças[6] foi tão intenso, e constituiu uma das fontes da atitude de guerrilha: dentro do enquadre de uma pequena unidade local não havia necessidade de trabalhadores militares qualificados. Foi necessário, ao mesmo tempo que esmagando a resistência dos elementos contrarrevolucionários entre os velhos oficiais, assegurar para os elementos leais entre eles, pouco a pouco, a possibilidade de trabalharem como parte do Exército Vermelho.
As tendências oposicionistas “de esquerda” (que eram na verdade tendências intelectuais e camponesas) na esfera da construção do Exército tentaram encontrar uma fórmula teórica generalizada para servir seus propósitos. O exército centralizado foi declarado ser o exército de um Estado imperialista. A revolução deve, em conformidade com sua natureza total, desistir de uma vez por todas não só da guerra de posições, mas também do exército centralizado. A revolução foi inteiramente baseada na mobilidade, no golpe ousado, na manobra. Sua força de combate foi unidade independente, pequena, composta de todos os tipos de armamentos, não ligadas a qualquer base, contando com a simpatia da população, movendo-se livremente pela retaguarda do inimigo, e assim por diante. Em suma, as táticas da revolução foram proclamadas para serem as táticas do combate de guerrilha. Experiências graves da guerra civil muito rapidamente refutaram estes preconceitos. As vantagens da organização centralizada e da estratégica sob a improvisação local, separatismo e federalismo militares, foram reveladas tão rapidamente e vividamente que hoje os princípios básicos da reconstrução do Exército Vermelho são incontestáveis.
O papel mais importante na criação de um aparato de comando para o exército foi desempenhado pela instituição dos comissários. Eles foram escolhidos dentre os trabalhadores revolucionários, os comunistas, e em parte também, no primeiro período, dentre os SRs de Esquerda (até julho de 1918). O papel do comandante foi, desse modo, dividido, por assim dizer. Apenas a liderança puramente militar foi deixada nas mãos do próprio comandante. O trabalho político e educacional foi concentrado nos comissários. Mas o que foi mais importante foi que o comissário foi o representante direto do poder soviético nas forças armadas. A tarefa do comissário era, sem interferir no trabalho puramente militar do comandante, e em nenhum caso diminuindo sua própria autoridade como comandante, criar condições de modo que essa autoridade não pudesse ser usada contra os interesses da revolução. A classe trabalhadora entregou seus melhores filhos ao cumprimento dessa tarefa. Centenas de milhares deles sentiram-se em seus postos como comissários. Depois, um número não pequeno de comandantes revolucionários emergiu das fileiras dos comissários.
Desde o início, nós estabelecemos uma rede de escolas de treinamento militar. Inicialmente, elas refletiram a fraqueza geral de nossa organização militar. Cursos de curta duração que duravam poucos meses produziram, principalmente, não comandantes, mas meramente soldados medianos do Exército Vermelho. Uma vez que, contudo, na maioria dos casos, os que estiveram em combate nesse período foram as massas que seguraram um rifle pela primeira vez, aqueles soldados do Exército Vermelho que tinham se submetido ao curso de quatro meses, eram frequentemente comandantes não apenas de seções, mas também de pelotões e até de companhias.
Nós, assiduamente, recrutamos antigos sargentos do exército tzarista. Contudo, deve ser reconhecido que uma proporção considerável destes tinham sido atraídos, a seu tempo, dentre as melhores partes do campo e da cidade. Eles eram, predominantemente, filhos alfabetizados de famílias camponesas do tipo kulak. Ao mesmo tempo, a hostilidade para os “homens com ombreiras de ouro”, ou seja, os oficiais, com seu contexto nobre e intelectual, foi sempre uma característica deles. Daí a divisão que atravessa esta categoria: eles deram para nós excepcionais comandantes e lideranças militares, cujos representante mais brilhante é Budyonny; mas esse mesmo grupo de homens também forneceu muitos comandantes para revoltas contrarrevolucionárias e para o Exército Branco.
Criar um corpo de comandantes revolucionários é a tarefa mais difícil. E enquanto o alto comando foi selecionado já nos primeiros três ou quatro anos da existência do Exército Vermelho, no que diz respeito aos níveis mais baixos da equipe de comando, isso não pode ser considerado totalmente realizado até hoje. Nossos principais esforços estão direcionados para proporcionar um exército com comandantes de seção que são completamente capazes de realizar suas respectivas tarefas. O trabalho de treinamento militar pode orgulhar-se de seus grandes sucessos. O treinamento e a educação dos comandantes vermelhos estão melhorando constantemente.
O papel desempenhado pela propaganda no Exército Vermelho é amplamente conhecido. O trabalho político que precedeu, conosco, cada passo em frente ao longo da trajetória da construção, tanto na esfera militar quanto em qualquer outra, levou à necessidade de criar um vasto aparato policial para o exército. O mais importante órgão desse trabalho são os comissários, como já mencionado. Contudo, a imprensa burguesa da Europa evidentemente deturpa a questão quando retrata a propaganda como uma intenção maligna dos bolcheviques. A propaganda desempenha um imenso papel em todos os exércitos do mundo. O aparato político da propaganda burguesa é muito mais poderoso e rico tecnicamente que o nosso. A superioridade de nossa propaganda consiste em seu conteúdo. Nossa propaganda invariavelmente uniu o Exército Vermelho, enquanto atrapalha as forças do inimigo, não por qualquer método especial ou procedimentos técnicos, mas pela ideia comunista que está no conteúdo dessa propaganda. Esse nosso segredo militar nós divulgamos abertamente, sem temer qualquer plágio por parte de nossos adversários.
A técnica do exército vermelho refletiu e reflete a situação econômica geral em nosso país. No primeiro período da revolução nós tivemos a nossa disposição o legado material da guerra imperialista. Nesse sentido, ele foi colossal, mas extremamente caótico. De algumas coisas existia muito, outras pouco, e além disso, nós não sabíamos exatamente o que possuíamos. As chefias voluntárias de administração ardilosamente escondiam o pouco que eles próprios sabiam sobre. O “poder nas localidades” estava nas mãos de quem passou a estar presente em determinado território. Os líderes da guerrilha revolucionária tomavam suprimentos para suas unidades de toda e qualquer coisa que aparecia em seu caminho. As autoridades das estradas-de-ferro astuciosamente direcionavam carretas carregadas com munição, até mesmo comboios cheios, a outras destinações do que aquelas para as quais eles foram destinados. O primeiro período foi então um tempo de horrível desperdício de recursos deixados para trás da guerra imperialista. As unidades militares individuais (principalmente regimentos) arrastaram atrás de si carros blindados e aviões enquanto não tinham baionetas para seus rifles, e muitas vezes faltava munições. A indústria da guerra tinha parado a produção no final de 1917. Apenas em 1919, quando os suprimentos antigos estavam perto da exaustão, iniciou-se o trabalho de reviver a produção de armas. Por volta de 1920 a indústria por inteira já estava trabalhando para propósitos de guerra. Nós não tivemos reservas. Todo rifle, toda munição, todo par de botas, foi despachado, diretamente da máquina ou torno mecânico que o produziu, para o front. Houve vezes – e estas duraram semanas – quando cada um dos estoques de munição dos soldados contava, e quando o atraso da chegada de um trem especial trazendo munição resultava em divisões inteiras recuando várias dúzias de verstas[7] da fronte.
Apesar do fato de que o desenvolvimento subsequente da guerra civil levou ao colapso da economia, o abastecimento do exército – tanques, em uma mão, e direção dada para as forças da indústria e, e, outra, e, principalmente, graças ao crescente grau de regulação da economia da própria economia de guerra – tornou-se, e, continua a tornar-se, mais e mais necessário.
Uma situação especial no desenvolvimento do Exército Vermelho ocorre pela criação da cavalaria. Sem entrar aqui no argumento sobre o papel a ser jogado pela cavalaria, em geral, nas guerras futuras, nós podemos dizer que, no passado, eram os países atrasados que tinham a melhor cavalaria: Russia, Polônia, Hungria, e, ainda recentemente, Suécia. Para cavalaria é preciso estepes, e espaços amplos abertos. Aqui, eles naturalmente nasceram em Kuban e Don, e não nos arredores de Petersburgo e Moscou. Na guerra civil nos Estados Unidos a vantagem no que se refere à cavalaria foi completamente em favor dos latifundiários sulistas. Apenas na segunda metade da guerra os nortistas dominaram essa arma. Foi o mesmo conosco. A contrarrevolução entrincheirou-se nas zonas fronteiriças atrasadas, e tentou, pressionando para dentro, espremer-nos na área central ao redor de Moscou. A mais importante arma manejada por Denikin e Wrangel, foi a dos Cossacos, e, em geral, a cavalaria. Suas ousadas incursões, no primeiro período, criaram dificuldades muito grandes para nós. Contudo, essa vantagem possuída pela contrarrevolução – uma vantagem derivada do atraso – provou estar ao alcance da revolução, igualmente, uma vez que ela tinha compreendido o significado da cavalaria na guerra civil de manobra, e tinha colocado a si mesmo a tarefa de criar uma força de cavalaria a qualquer custo. O slogan do Exército Vermelho em 1919 tornou-se: “Proletarios, ao cavalo!”. Depois de apenas alguns meses, nossa cavalaria poderia ser comparada com a do inimigo, e subsequentemente ela passou a ter a iniciativa de uma vez por todas.
A unidade do exército e a autoconfiança cresceu constantemente. No primeiro período, não só os camponeses, mas também os trabalhadores estavam relutantes em ingressar no Exército. Apenas um estreito estrato de proletários devotados conscientemente começou a construir as forças armadas da República Soviética. E foi esse estrato que suportou o encargo do trabalho no primeiro período, mais difícil. O humor do campesinato oscilou incessantemente. Regimentos inteiros compostos por camponeses – verdade, na maioria dos casos eles eram muito despreparados, tanto politicamente quanto tecnicamente – renderam-se no primeiro período, algumas vezes sem participar de qualquer luta, e então depois, quando os brancos tinham os envolvido sob sua bandeira, atravessavam para nosso lado novamente. Algumas vezes as massas camponesas tentaram mostrar sua independência, abandonando tanto brancos como vermelhos, entrando nas florestas para formar suas unidades “verdes”. Mas a natureza dispersa e politicamente impotente dessas unidades destinou elas a derrota. Então, em todas os frontes da guerra civil, a relação básica de forças entre as classes da revolução encontrou mais vívida expressão do que em qualquer lugar: as massas camponesas, cuja por submissão a contrarrevolução feudal-burguesa-intelectual combateu a classe trabalhadora, constantemente fraquejou de um lado para o outro; mas ao fim elas deram seu suporte para a classe trabalhadora. Nas províncias mais atrasadas, tal como Kursk e Voronezh, onde os números de quem evadiu à convocação para o serviço militar totalizaram muitos milhares, a chegada das forças dos generais às fronteiras destas províncias produziu uma mudança decisiva de atitude, e impeliu as massas, dos interiormente desertores, para as fileiras do Exército Vermelho. O camponês deu suporte aos trabalhadores contra o senhor de terra e o capitalista. Nesse fato social e está enraizada a causa final de nossas vitórias.
O Exército Vermelho foi construído sob fogo, e constantemente, longe de estar sempre de acordo com um plano definitivo, e frequentemente por meio de improvisações bastante desordenadas. Seu aparato foi extraordinariamente pesado, e, em muitos casos, desastrado. Nós fizemos uso de todo espaço para respirar para apertar, simplificar, e refinar nossa organização militar. Nesse respeito, nós tivemos indubitavelmente sucesso durante os últimos dois anos. No período de nossa luta com Wrangel e com a Polônia, em 1920, o Exército Vermelho tinha em suas fileiras mais de cinco milhões de homens. Hoje, a partir de maio de 1922, abrange, junto com a marinha, aproximadamente, um milhão e meio, e ainda está contraindo. Essa contração avançou e está avançando mais lentamente do que o desejado, porque ela é simultânea a uma melhoria na qualidade. O reforço no aparato de retaguarda e auxiliar tem sido incomparavelmente maior do que nas unidades combatentes. Contraindo, o Exército não se tornou mais fraco, mas, pelo contrário, mais forte. Sua capacidade de utilização, se a guerra vier, está aumentando constantemente. Sua lealdade à causa da revolução social é incontestável.
Leon Trotsky
Moscou, 21 de maio de 1922.
[1] Uma seita secreta russa que recusou realizar serviço militar. Para escapar à perseguição muitos emigraram para o Canada no fim do século XIX.
[2] As Tropas Checoslovacas foram formadas na Rússia tzarista entre prisioneiros de guerra. Depois da Revolução de Outubro as tropas queriam “ir para casa”, e a rota escolhida para seu movimento foi ao longo da Ferrovia Transiberiana e por Vladivostok.
[3] Gubernia (“Governorate”), a maior unidade administrativa da Rússia nessa época, tem sido traduzida como “província”. Uma uyezd era a subdivisão de uma província, e volost era a menor unidade administrativa – um grupo de vilas.
[4] Originalmente seis distritos militares foram formados: Yaroslavl, Moscou, Orel, Ural, Volga e Comuna do Norte (Mar Branco).
[5] Tradução livre para “NCOs (Noncommissioned Officers)”. [nota do tradutor]
[6] Escolhi “praça” para traduzir “rank-and-file” por considerar que o termo no Brasil diz precisamente respeito a massa dos membros de hierarquia inferior nas forças armadas, separados dos oficiais. [nota do tradutor]
[7] Uma versta equivale a 3500 pés ou 1067 metros