Os 20 anos da queda do Muro de Berlim numa perspectiva marxista.
Dia 9 de novembro de 1989. Uma multidão se concentra em um posto de controle do Muro de Berlim. Às 23h, o chefe do posto dá a ordem esperada: “abram tudo”. Milhares de alemães cruzam o Muro, e com marretas improvisadas, arrebentam o concreto.
A burguesia e seus porta-vozes procuram capitalizar as imagens, anunciando, triunfantes, o “Fim do Socialismo” e, até mesmo, o “Fim da História”. Mesmo intelectuais “de esquerda” colaboram com essa leitura dos acontecimentos. Eric Hobsbawm, em seu livro “A Era dos Extremos” (1994), parece lamentar o fracasso do que chama de “socialismo real” com um tom nostálgico.
Mas o registro pessimista desse livro contrasta com a vivacidade de uma obra prima anterior: “A Revolução Traída” (1936), escrita por Leon Trotsky, um dos líderes da Revolução Russa de 1917. O que separa as duas obras é a maneira com que mobilizam a teoria marxista para analisar o regime social que se estabeleceu após a Revolução Russa. Hobsbawm, mesmo requentando as denúncias dos crimes cometidos por Stalin, não abre mão de sua herança.
Os regimes políticos que surgiram no Leste Europeu foram o “socialismo realmente existente”, e a burocracia, seu desenvolvimento lógico e necessário. Mesmo quando acerta, Hobsbawm não pode ser acusado de originalidade. Suas melhores conclusões foram antecipadas em 48 anos por Trotsky.
A Revolução Traída
Expulso da URSS por Stalin em 1928, Trotsky maneja a dialética marxista com maestria e sutileza. Em “A Revolução Traída”, a URSS não é apresentada como o “socialismo real”. Era uma sociedade intermediária, entre o capitalismo e o socialismo. Isso porque não basta a propriedade estatal dos meios de produção para caracterizar uma sociedade como “socialista”. É preciso que o próprio Estado caminhe para seu desaparecimento, substituído por uma autêntica democracia operária. O contrário do que aconteceu na URSS, com seu aparelho estatal hiperdesenvolvido.
Porque isso aconteceu? A Revolução expropriou a burguesia, mas precisou desenvolver desesperadamente as forças produtivas russas, arrasadas pela guerra civil de 1918-1921. E por isso, se viu obrigada a fazer concessões à economia de mercado, reintroduzindo relações capitalistas e fortalecendo o desenvolvimento de diferenciações sociais. A burocracia, tirando partido da debilidade da classe operária russa após anos de guerra, procura reforçar o aparelho estatal, não para suprimir, mas para garantir seus privilégios. Trotsky percebeu no fortalecimento da burocracia um desenvolvimento dialético. A burocracia não era a continuidade da revolução. Era expressão da contra-revolução – e que encontrou em Stalin o líder inescrupuloso que precisava. A Revolução fora traída.
Trotsky revela a contradição fundamental presente na sociedade soviética:
“Duas tendências opostas crescem no seio do regime: desenvolvendo as forças produtivas (…) são criados os fundamentos econômicos do socialismo; e levando ao extremo, (…) as normas burguesas de repartição, prepara uma restauração capitalista. A contradição entre as formas de propriedade e as normas de repartição não podem crescer indefinidamente. Ou as normas burguesas se estenderão, de uma ou outra maneira, aos meios de produção, ou as normas socialistas terão de ser concedidas à propriedade socialista”.
A solução a favor do socialismo passaria por uma revolução política na Rússia, com a classe operária derrotando a burocracia.
Por outro lado, “a queda da ditadura burocrática atual”, explica Trotsky, “sem a sua substituição por um novo poder socialista, anunciaria o retorno ao sistema capitalista com uma baixa catastrófica da economia e da cultura”. Essa última hipótese foi a que acabou prevalecendo.
A História continua
A grande maioria dos manifestantes da Alemanha Oriental que se aglomerava em frente ao posto de controle em 1989 não estava interessada em “economia de mercado”. Expressava suas reivindicações em termos da manutenção das conquistas sociais da Revolução, como pleno emprego e seguridade social, apenas com maior liberdade política. Mas depois de décadas sob o peso do totalitarismo burocrático a esmagar sua consciência, uma orientação revolucionária na linha traçada por Trotsky era uma impossibilidade.
A Alemanha, 20 anos depois, é exemplo de que as promessas de uma nova ordem mundial se desmancharam no ar. Fábricas da Alemanha Oriental ou foram privatizadas, ou foram fechadas. Especuladores fizeram dinheiro com o endividamento e consumo das famílias. O desemprego chegou a atingir 30% da força de trabalho, de um ano para outro. Não é à toa que hoje “O Capital”, de Marx, volta a despertar interesse na Alemanha, como em todo mundo.
O que caiu com o Muro não foi o socialismo. Foi o stalinismo, que entregou as conquistas da Revolução de Outubro para a rapina dos capitalistas, conforme os marxistas já haviam alertado.
Hoje, 20 anos depois, é o capitalismo que perde sua arrogância e se encontra na berlinda. Por mais que os ideólogos de direita e da “esquerda arrependida” queiram ignorar, a História (assim como a luta de classes) continua.