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Como a ditadura foi derrotada? As lutas operárias e o processo de construção do PT e da CUT

Embora a interpretação predominante sobre o final da ditadura se remete a uma “transição”, o que houve foi uma verdadeira derrubada do regime repressivo. Nesse processo, os trabalhadores tiveram papel central, assumindo o protagonismo das lutas, diante da crise econômica e do desgaste político sofrido pelo governo da ditadura. Na época, os trotskistas eram categóricos em afirmar que “a queda da ditadura significaria a desagregação do Estado ou, pelo menos, a abertura de enormes brechas no aparelho de Estado”1.

Como parte desse processo, se forjaram organizações políticas e sindicais que assumiram o papel dirigente nesse processo, em especial o Partido dos Trabalhadores (PT) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Os revolucionários participaram ativamente desse processo.

Durante o período entre 1968 e 1973, a ditadura viveu a época do chamado “milagre econômico”, o que contrastava com uma ampliação na repressão aos grupos de oposição desencadeada com maior força depois da promulgação do Ato Institucional Número 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968.

O “milagre” foi um período de vários anos consecutivos, entre 1968 e 1973, em que o Produto Interno Bruto (PIB) do país teve um crescimento acelerado, com uma média anual de 11,2%. Um dos mais significativos fatores que possibilitaram o “milagre” uma política salarial marcada pelo arrocho sobre a maior parte dos trabalhadores ao longo de toda a ditadura, somando-se a isso o controle estatal sobre os sindicatos.

De 1974 a 1978, o governo da ditadura conseguiu manter as taxas de crescimento acima de 7%. Contudo, a partir de 1976, as multidões cresceram nas ruas e os operários pararam fábricas, com destaque para o ABC paulista. Nesse período, as pressões econômicas advindas das novas condições externas, o recrudescimento do processo inflacionário e a crise social marcada pelas explosivas manifestações das massas populares, entre outros, foram fatores que contribuíram para mostrar as fissuras existentes no interior das classes dominantes e a inflexão na situação política. Os trotskistas assim analisaram o processo:

“Em 1977, sob a combinação, por parte do ascenso do proletariado e das massas brasileiras, como componente do ascenso proletário mundial no quadro do período da iminência da revolução e, por outra parte, da crise econômica e política do imperialismo, incapaz de dominar a marcha à crise, incapaz de dominar as relações entre as classes, obrigado a descarregar o peso da crise econômica sobre os outros países, forçado a intensificar sua política de opressão e de pilhagem dos países coloniais e semicoloniais, sob essa dupla combinação, a crise incubada da burguesia brasileira, consequência da crise do imperialismo, se transforma em crise política aberta da burguesia que, assustada frente as massas em ascenso, sem política firme para responder às massas brasileiras (da mesma maneira que o imperialismo só tem uma política vacilante diante do ascenso do proletariado mundial) se divide (da mesma maneira que o imperialismo está dividido), abrindo assim brechas à ação das massas que, aliás, são fruto da ação das massas”.

“A partir de abril de 1977, quando da intensificação das mobilizações e da decisão da camarilha militar de impor seu ‘pacote de medidas’ e de fechar temporariamente o Congresso, a situação política desembocou num período pré-revolucionário (e se tem de compreender por isso um período longo, que comporta momentos diferentes e que se dirige até a abertura de uma situação revolucionária; porém essa tendência não significa de modo nenhum um processo linear, mecânico).”2

Um marco fundamental se deu com a revogação do AI-5. Promulgado em 13 de dezembro de 1968, esse foi um dos mecanismos legais mais importantes utilizados pela ditadura na repressão à oposição. Sua revogação, em 31 de dezembro de 1978, propiciou maior liberdade na organização das oposições, garantindo algumas liberdades democráticas, com o fim da censura à imprensa, prisão somente com acusação formal, habeas-corpus, entre outras.

Portanto, o que se observa é uma piora na situação econômica que se expressa também na situação política. Com a ampliação da liberdade de atuação política, ampliaram-se as mobilizações dos trabalhadores de diferentes categorias, em diferentes locais, permitindo uma articulação mais sólida dos movimentos sociais e dos setores de oposição.

No começo de 1979, os motoristas de ônibus do Rio de Janeiro pararam a cidade, tendo de enfrentar inclusive suas próprias lideranças sindicais. Na grande São Paulo e no ABC paulista, os operários, que vinham se mobilizando havia meses, voltaram à ofensiva em março, diante da ausência de acordo com os patrões. No dia 15 de março, cerca de 170 mil dos 206 mil operários metalúrgicos da região tinham aderido à greve.

Outras greves também marcaram o período, em diferentes cidades e atingindo diferentes setores econômicos. O processo de abertura e os precedentes criados pelo movimento operário de São Paulo levaram os trabalhadores de outras categorias a se mobilizar, incluindo os professores do Rio de Janeiro e da construção civil de Belo Horizonte. Outros setores atingidos por greves foram o siderúrgico, o portuário, o de transporte de carga por caminhões, o bancário e o de telecomunicações.

Nesse momento, também se mostraram movimentos que não estavam ligados diretamente aos sindicatos ou a lutas de categorias específicas. Em fevereiro de 1979, cerca de 80 integrantes do “Movimento do Custo de Vida” fizeram um pequeno ato na Praça da Sé, na cidade de São Paulo, carregando faixas onde se lia: “exigimos melhores condições de vida”, “nossa luta continua” e “temos a panela, não temos o que por nela”.

O período também esteve marcado pelo crescimento da campanha pela anistia dos presos políticos. Em abril de 1979, por exemplo, cerca de 300 pessoas participaram de um ato em Florianópolis, pedindo “anistia ampla, geral e irrestrita. Contudo, ainda que fosse exigida a anistia para todos os perseguidos pela repressão, havia muitos limites na Lei de Anistia aprovada pelo Congresso, em agosto de 1979. Essa lei teve um caráter restrito, sendo excluídos aqueles que estavam sendo condenados por delitos comuns – como o assalto a banco e crimes de sangue – e por atos de terrorismo. A proposta do governo previa a anistia somente para os crimes considerados políticos, que, portanto, vinham definidos na Lei de Segurança Nacional.

Paralelamente às discussões sobre a Anistia, à luta travada pelos movimentos políticos e sociais e à aprovação da lei, alguns dos opositores ao regime ditatorial, como Leonel Brizola e Luiz Carlos Prestes, exilados no exterior, retornaram ao país.

Outro fator relevante daquele período foi o processo de rearticulação nacional do movimento estudantil, que, de um ponto de vista mais geral, materializava-se na reconstrução da União Nacional dos Estudantes (UNE). No âmbito da chamada “abertura democrática”, promovida pelos militares com o objetivo de controlar o processo de transição entre a ditadura e uma “democracia forte”, foi revogado o Decreto-Lei nº 477, de 26 de fevereiro de 1969, que punia atividades políticas nas universidades, por meio de processos sumários, e o Decreto-Lei nº 228, de 28 de fevereiro de 1967, que proibia a organização acadêmica e manifestações públicas. Com isso, seriam reconhecidas as entidades estudantis dentro das universidades como representantes dos estudantes nos órgãos colegiados e se transferiria ao âmbito da legislação interna das instituições de ensino a responsabilidade pela aplicação de medidas disciplinares.

Essas mudanças na legislação, que não faziam nenhuma menção à UNE ou às entidades estudantis regionais, ocorriam paralelamente à rearticulação do movimento estudantil. O movimento estudantil ampliou sua ação no cenário político na segunda metade da década de 1970, expressando seu descontentamento em mobilizações que reivindicavam, além da reconstrução da UNE e de melhorias na educação, liberdades democráticas e anistia ampla e geral.

Também foi realizado, no final de maio de 1979, o congresso de reconstrução da UNE, em Salvador. Embora divulgado inclusive pela imprensa, esse congresso ainda foi realizado com a entidade na ilegalidade, tendo seus delegados sido eleitos antes do anúncio da nova legislação, em assembleias abertas nas universidades. Essa campanha pela reconstrução da entidade fazia parte da disputa política daquele momento, mobilizando estudantes, intelectuais, trabalhadores e artistas.

No caso dos estudantes, a crise era ainda mais profunda, criando certa radicalização nessa categoria. Coube aos estudantes organizar as mais calorosas recepções ao ditador, por meio de atos todo o país. Foram realizados atos no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, bem como Viçosa e Juiz de Fora, em Minas Gerais. Na cidade de São Paulo, durante a posse do governador Paulo Maluf, eleito indiretamente, os estudantes vaiaram o novo governador e a polícia.

No final do ano, durante a visita de Figueiredo a Florianópolis, um ato organizado pelos estudantes da UFSC acabou se tornando uma revolta popular. O principal elemento objetivo nessa revolta popular, além da agitação em torno do “abaixo à ditadura” impulsionada pelos setores revolucionários que construíam o PT, foi a piora nas condições de vida dos trabalhadores nos meses anteriores. A Novembrada, ocorrida em 30 de novembro de 1979, com a repressão desencadeada contra a população e a perseguição aos estudantes vinculados ao DCE da UFSC, acabou por se tornar um símbolo da luta dos estudantes e do combate pelo fim da ditadura.

A Novembrada, ocorrida em 30 de novembro de 1979, tronou-se um símbolo da luta dos estudantes e do combate pelo fim da ditadura / Imagem: domínio público

O cenário da esquerda estava marcado pela fragmentação. Por um lado, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) vinha defendendo uma linha de conciliação com as instituições da ditadura e de unidade ampla com os setores que fossem críticos ao governo e ao regime. Por outro lado, as organizações da luta armada tinham sido esmagadas pela repressão e passaram a usar uma linha de defesa da democracia. Nesse cenário, como parte das lutas em curso, se colocava a necessidade de organizar uma direção política para os trabalhadores. Os trotskistas assim analisaram o cenário:

“Do início ao fim mostrou-se ser necessário um instrumento que centralizasse o combate dos metalúrgicos do interior em primeiro lugar, e a unidade de todos os trabalhadores do país, em torno do ABC, contra a ditadura. Sobretudo era necessário um partido que chamasse à solidariedade em um nível superior, preparando as condições para acabar com a ditadura, preparando a greve geral.”3

Essa perspectiva colocava como cenário a superação da experiência stalinista, com sua revolução por etapas e a defesa da institucionalidade burguesa. Os trotskistas diziam:

“Rompendo com décadas de domínio stalinista no interior do movimento de massa que vai surgir o Partido dos Trabalhadores, respondendo a uma necessidade objetiva que o movimento operário colocava de se organizar no seu próprio terreno, sem patrões, independente da burguesia e de seu Estado.”4

O PT terminou por se constituir nesse partido da classe trabalhadores, sendo uma “resposta ao movimento do operariado no sentido de sua organização independente”5. Em um de seus primeiros documentos, o PT afirmava:

“A história nos mostra que o melhor instrumento com o qual o trabalhador pode travar esta luta é o seu partido político. Por isso, os trabalhadores têm que organizar os seus partidos que, englobando todo o proletariado, lutem por efetiva libertação da exploração.”6

O novo partido apontava para a necessidade da independência dos trabalhadores. Em sua carta de princípios, afirmava:

“É por isso que não acreditamos que partidos e governos criados e dirigidos pelos patrões e pelas elites políticas, ainda que ostentem fachadas democráticas, possam propiciar o acesso às conquistas da civilização e à plena participação política para o nosso povo.”7

Contudo, esse processo não se dava sem contradições. Os trotskistas alertavam:

“No interior do PT, no entanto, essa questão [consigna Abaixo a ditadura na eleição] não era pacífica. Toda uma parcela de candidatos se recusava a realizar a campanha contra a ditadura militar. As pressões sobre o partido no sentido de que ele aceitasse a ’democratização’ de Figueiredo como uma democratização real eram fortes e vinham de todas as forças empenhadas em sustentar Figueiredo, em especial do aparelho stalinista, que combatia o PT abertamente, acusando-o de ‘radical e divisionista das oposições.’”8

Esse processo redundou também na construção de outros espaços de organização. Os trotskistas apontavam para essa tarefa da classe trabalhadora ainda em 1980: “Contra a ditadura, os trabalhadores constroem sindicatos livres. Para realizar a unidade contra a ditadura, a classe operária vai erguer uma central sindical independente”9. O sindicalismo combativo convergiu na fundação da CUT, em agosto de 1983. Esse processo mostrou os embates dos revolucionários contra os setores conciliadores, como os stalinistas, que defendiam a permanência no MDB, e os reformistas, que não apontavam para a superação de todas as instituições construídas pela ditadura. Os trotskistas apontavam:

“Tentar conter o movimento operário brasileiro apresentando-lhe o PMDB como perspectiva de organização política e o sindicato corporativo como quadro ‘unitário’ de lutas pelas reivindicações, é tarefa ingrata demais, mesmo para o aparelho stalinista.”10

O PT, a CUT e o MST foram as protagonistas no processo de luta contra a ditadura, garantindo conquistas para os trabalhadores, ao mesmo tempo que colocaram a perspectiva de independência dos trabalhadores.

Referências:

1 Resolução política do III congresso da OSI. A Luta de Classes, nº 2, set. 1979, p. 17.

2 Resolução política do III congresso da OSI. A Luta de Classes, nº 2, set. 1979, p. 13.

3 OSI. A greve do ABC e a situação nacional. A Luta de Classes, nº 4, mai. 1980, p. 11.

4 Gabriel Marti. O PT, as eleições e a luta de classes. A Luta de Classes, nº 7, nov. 1981, p. 61.

5 A evolução da situação nacional: o PT e a Intersindical. A Luta de Classes, nº 3, jan. 1980, p. 10.

6 A tese de Santo André – Lins, 24 de janeiro de 1979, p. 47.

7 Carta de princípios, 1º de maio de 1979, p. 50.

8 Resolução política, A Luta de Classes, nº 10, jun, 1983, p. 10.

9 A evolução da situação nacional: o PT e a Intersindical. A Luta de Classes, nº 3, jan. 1980, p 12.

10 A evolução da situação nacional: o PT e a Intersindical. A Luta de Classes, nº 3, jan. 1980, p. 10.