Este texto busca compreender os movimentos de resistência da mulher, ao longo de suas lutas históricas, que se expressaram e se expressam de diversas maneiras, sendo o termo feminismo uma designação comum para eles.
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Apresentação
Este texto busca compreender os movimentos de resistência da mulher, ao longo de suas lutas históricas, que se expressaram e se expressam de diversas maneiras, sendo o termo feminismo uma designação comum para eles. Este nome aponta, inicialmente, a luta por igualdade de direito entre homens e mulheres. Entretanto, o movimento feminista é multifacetado, consideradas suas origens, influências e objetivos, e nem mesmo todas as correntes buscam a igualdade, sobre o que também será abordado no discorrer do texto.
A elaboração do presente texto foi motivada a partir de inquietações surgidas durante o Acampamento Revolucionário de janeiro de 2015, organizado pela campanha Público, Gratuito e Para Todos: Transporte, Saúde, Educação! Abaixo a Repressão!, que tinha entre os temas debatidos a questão da luta pela emancipação da mulher. Em seguida, discussões surgidas na Comissão de Mulheres da Esquerda Marxista me instigaram a aprofundar o estudo e a pesquisa a respeito da história da luta das mulheres, tendo como temática a comparação entre a teoria marxista e os métodos operários de um lado, e as teorias feministas e seus diversos desdobramentos práticos, de outro. Desde então, a pesquisa contou com a colaboração e o incentivo de diferentes camaradas, assim como da Comissão de Mulheres da Esquerda Marxista. Agradeço a todos que colaboraram pelas orientações, emendas e comentários, cuja disponibilidade possibilitou a conclusão deste trabalho.
A partir da perspectiva marxista, o texto explica o surgimento e a atuação de correntes feministas ao longo da história e na atualidade. Algumas correntes são burguesas e reacionárias, outras pequeno-burguesas e ainda há as que são mais ligadas à luta do proletariado. Ao evidenciar os ideais e os métodos de luta mais difundidos por grupo, será possível perceber até que ponto possuem conexões com a luta de classes e buscam uma saída na direção da luta pelo socialismo, ou acabam, de uma forma ou outra, ligando-se à manutenção da ordem capitalista vigente.
Para desenvolver a discussão sobre a luta da mulher, necessita-se uma análise materialista histórica e dialética da sua condição no decorrer dos séculos, e dos movimentos que surgem para reivindicação de seus direitos, muitos autodenominados feministas. O significado da palavra “feminismo” ultrapassou o verbete de dicionário. A luta de classes, o transcorrer dos anos e o constante modificar das relações sociais depositaram no nome feminismo conotações diversas e muitas vezes adversas. Se pretendemos atuar na luta das mulheres, para conquistar sua vanguarda, integrando-a ao movimento das massas, é importante nos debruçarmos sobre o assunto e entendermos os seus meandros.
Uma análise clara conquista sinceros militantes que alimentam ilusões em saídas utópicas, que podem ser prejudiciais na luta pela emancipação da humanidade, tal qual como age toda espécie de ideologia dominante. Uma análise clara pode e deve ajudar a discussão do tema entre a juventude e os trabalhadores. Lembramos que a burguesia e seus ideólogos procuram sempre semear e difundir ideologias que possam desviar correntes e militantes da luta proletária. Nosso estudo procura justamente desfazer as ilusões e abrir caminho para que setores deste movimento venham se integrar no combate de classe pela emancipação da humanidade.
A opressão sobre a mulher existe desde o surgimento da sociedade de classes. Mas é com o surgimento da indústria e o desenvolvimento do capitalismo moderno que surge a luta específica da mulher, dadas as novas contradições entre seu antigo papel social exclusivamente doméstico e seu novo papel econômico de empregada assalariada. É diante da necessidade de atuar na esfera pública e, contraditoriamente, diante da impossibilidade legal de transitar livremente nesta sociedade, que surgem os primeiros movimentos de luta da mulher. Ao mesmo tempo a indústria, a concentração de proletários homens e mulheres, causou o surgimento do movimento proletário organizado nos países europeus recentemente industrializados.
Em diálogo com Clara Zetkin, em outubro de 1920, Lênin evidencia que, no capitalismo, claramente a mulher está sob uma condição diferente em relação ao homem, e, por isso, os marxistas devem desenvolver argumentação e intervenções específicas nos seus espaços de luta:
O isolamento a que as obriga sua atividade, todo o seu modo de vida; eis fatos que seria absurdo, completamente absurdo, subestimar. Necessitamos de organismos apropriados para realizar o trabalho entre as mulheres. Isso não é feminismo: é o caminho prático, revolucionário. (Diálogos entre Clara Zetkin e Lênin sobre a questão da mulher e da luta pelo socialismo (1920)).
Para melhor compreensão e atuação entre este setor imprescindível, propõe-se clarificar e desmistificar questões pautadas pelo feminismo, ideologia de fácil propagação entre as mulheres jovens e trabalhadoras que despertam para a luta, e abrir a reflexão, sem pretensão de esgotá-la nessas linhas.
A HISTÓRIA DA MULHER, A HISTÓRIA DA HUMANIDADE
Para entendermos o desenvolvimento das lutas das mulheres, é preciso remontar à história da mulher e, assim, à história da própria humanidade. Compreendendo que a mulher nem sempre esteve submetida às amarras do patriarcalismo, podemos chegar à compreensão materialista de que essa opressão, assim como tantas outras, é real, mas foi criada artificialmente, e pode ser destruída, por meio da ação proletária organizada com base no marxismo. Já nesse ponto, a perspectiva marxista encontra divergência com alguns movimentos feministas que negam a possibilidade de existência de uma sociedade diferente da patriarcal e, assim condenam o ser humano a uma eterna luta de gêneros e de opressões, intrínsecas à suposta natureza opressora do homem.
Sobre a desconstrução do patriarcalismo, após o sistema capitalista, Trotsky (1879 – 1940), um marxista que estudou profundamente a realidade capitalista e atuou diretamente em todo o processo revolucionário na Rússia, assim como no Estado Operário subsequente a outubro de 1917, compreende como os fatores concretos são importantes para a constituição tanto da estrutura econômica, quanto constituição de hábitos e cultura. Esta compreensão baseada no estudo histórico materialista, contida na obra Questões do Modo de Vida, exclui qualquer impressão de que o ser humano, e a classe trabalhadora em específico, brutalizado pelo seu modo de vida na sociedade atual, está condenado ao patriarcalismo permanentemente ou enrijecido pela lógica individualista e opressora. Ao contrário, à medida que se avança nas conquistas sociais e trabalhistas e no fortalecimento do Estado operário, obtêm-se avanços no modo de vida e nas relações humanas de forma gradual:
O modo de vida é a soma de experiências desorganizadas dos indivíduos; transforma-se de maneira de todo espontânea sob a influência da técnica ou das lutas revolucionárias e, no total, reflete muito mais o passado da sociedade do que seu presente. (…) Desde essa época [século XIX], o proletariado fez progressos gigantescos, decerto muito mais importantes na política do que em seu modo se vida e costumes. O modo de vida é terrivelmente conservador. (…) Serão precisos anos ou decênios para escorraçar essa mentalidade do seu último subterfúgio – o modo de vida individual e familiar – e para remodelá-lo totalmente em um espírito coletivista.
(…) Quanto mais o tempo de trabalho seja utilizado com consciência, mais a vida do operário se organizará de forma completa e inteligente. É precisamente nisso que consiste, como já se disse, o sentido fundamental da convulsão de outubro: os êxitos econômicos de cada operário conduzem automaticamente a uma elevação material e cultural da classe operária em seu conjunto. (TROTSKY, L., Questões do modo de vida)
Essa mudança não será imediata, mas só poderá se concretizar sobre as bases do socialismo. A observação de Trotsky está inserida em um contexto de tomada do poder político e econômico pela classe trabalhadora na Rússia, após a Revolução de 1917. Na sociedade capitalista, esta mudança não encontra apoio na realidade concreta, e, portanto, meio de realização plena.
F. Engels (1820 – 1895), desenvolvedor do marxismo junto a Marx (1818- 1883), compreendeu a importância da questão antropológica para a luta proletária, sobre o que desenvolve na obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, com auxílio de pesquisas do historiador Lewis Henry Morgan (1818 – 1881). Neste livro, Engels evidencia como a cultura e os hábitos são produtos da realidade concreta. Para isso, remonta à organização material e social humana desde o estado selvagem. Evidencia-se que neste estado, antes do surgimento da chamada civilização, o ser humano se organizava em grupos estabelecendo uma forma de organização social que podemos classifica como comunismo primitivo. Nesse período, havia uma divisão sexual do trabalho baseada nas diferenças fisiológicas e reprodutivas entre homem e mulher. A terra e os utensílios eram usufruídos por todos e o resultado do trabalho coletivamente produzido era igualmente partilhado. A noção de herança não existia, uma vez que não havia produção de excedentes e nem propriedade privada. Assim, os laços de parentesco e as linhagens não estavam condicionadas a ela e, sim, ao modo de vida naquele estágio de desenvolvimento. Devido à liberdade sexual a descendência somente era percebida pela linha materna. Além do direito materno e da importância do seu papel reprodutivo, segundo Evelyn Reed (1905 – 1979), o que também fez com que a mulher assumisse centralidade nessa sociedade era o seu papel produtivo. Enquanto os homens saíam para a caça, ela permanecia nas moradias e desenvolvia coletivamente formas de preparação e armazenamento de alimentos, de medicação dos adoentados, criação de utensílios de cozinha e colheita, arte da cerâmica e outras. Isso acena a importância da mulher para o germe do conhecimento em áreas como medicina, química, física, gastronomia, marcenaria, artes plásticas etc. Esta organização social conferia a ela profundo respeito e consideração. (REED, E. Sexo contra sexo ou classe contra classe)
A partir do momento em que as técnicas de produção e de armazenamento de alimentos se desenvolvem, surgem os excedentes de produção, e os seres humanos deixam de ser predominantemente nômades para estabelecerem-se de maneira sedentária. Assenta-se em uma terra, começa a controlar a produção agrícola, com o desenvolvimento das técnicas de plantação e cultivo, e a domesticar animais, um marco no desenvolvimento do modo de vida humano. O excedente corresponde não só à segurança de sobrevivência, mas significa também acúmulo e geração de poder social. A propriedade ganha importância, uma vez que o trabalho humano passa a ser quantificado, a gerar valores que são acumulados e que são necessários para a reprodução do próprio trabalho. Terra, gado, construções, plantações, ferramentas, passam a ser propriedades geradas pelo trabalho humano.
De forma muito resumida, podemos dizer que esse desenvolvimento culminou na solidificação da propriedade privada como centro da sociedade e na concentração de riquezas, base estrutural para a divisão da sociedade em classes antagônicas. De um lado, os que detinham os meios de produção, descendentes provindos das linhagens consanguíneas das antigas gens, os considerados “cidadãos” dotados do direito a herdar propriedades e bens. De outro lado, os estrangeiros, pessoas vindas de outras regiões e os escravos de guerra entre tribos – fruto de um dado evolutivo do ser humano para garantia de terras e mão de obra a partir da escravização, diante das incertezas da natureza e da necessidade de sobrevivência diante dela –, dois grupos que formavam a maioria da população e, contraditoriamente, não possuíam direito a propriedades e bens. Logo, a perpetuação dos bens torna-se tarefa fundamental para manutenção da status social. Para assegurar a hereditariedade de bens dos “cidadãos”, surge em cada pedaço de terra a unidade econômica de tal sociedade: a família individual, de que o homem torna-se o centro e a mulher propriedade com fins de procriação. (ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado).
Em rápidas linhas, buscamos explicar como a mulher deixa de ocupar um papel social e criativo para ser aprisionada à propriedade privada e à família. O direito materno é abolido para dar lugar ao paterno, tendo como fator determinante, a partir da divisão sexual do trabalho, a propriedade masculina sobre o gado, as terras e os escravos conquistados. A linhagem de bens se torna paterna, portanto. Trazendo a necessidade do controle reprodutivo da mulher diante da produção de excedente e da questão da hereditariedade da propriedade privada e, portanto, da manutenção de poder e da ordem social. Desta forma, a monogamia é imposta somente à mulher, estando o homem livre para se relacionar com outras mulheres. Neste período houve aumento da prostituição, como instituição estruturalmente ligada à família monogâmica e como uma viga que a sustenta. A mulher possui como opção de papel social a prostituta ou a esposa. Para a última, o trabalho doméstico que era coletivo para a manutenção das comunidades primitivas, passa a ser privado, de responsabilidade de cada família individualizada, sendo a mulher a verdadeira encarregada de lidar com todo o trabalho. A mulher fica presa às tarefas mesquinhas do lar, que não desenvolvem sua capacidade criativa e inovadora, e se encontra excluída da vida política e social. Os espaços anteriormente tão plenamente ocupados pela mulher, no comunismo primitivo, em harmonia com os homens, são para elas proibidos. Como explica o revolucionário russo Vladimir Lenin (1870 – 1924):
(…) o fato de as mulheres se consumirem no trabalho humilhante, monótono da casa, gastando e desperdiçando energia e tempo e adquirindo uma mentalidade mesquinha e estreita, perdendo toda sensibilidade, toda vontade? Naturalmente, não me refiro às mulheres da burguesia, que descarregam sobre as empregadas a responsabilidade de todo o trabalho doméstico, inclusive a amamentação dos filhos. Refiro-me à esmagadora maioria das mulheres, às mulheres dos trabalhadores e àquelas que passam o dia numa oficina. (Diálogos entre Clara Zetkin e Lênin sobre a questão da mulher e da luta pelo socialismo (1920)).
Assim exposto, forma-se a propriedade privada e nela a unidade celular econômica da sociedade de classes: a família monogâmica, célula produtiva e reprodutiva do sistema econômico predominantemente agrário (Goldman). A família monogâmica, a divisão sexual do trabalho que foi nela estabelecida consistem em construções sociais que participam da evolução do ser humano em suas organizações sociais ao longo da história. Foram dados evolutivos necessários para o desenvolvimento da espécie. Entretanto, como aponta Engels, dialeticamente, cada avanço representa um retrocesso relativo, como aconteceu com o aprisionamento doméstico da mulher e a derrota histórica do sexo feminino com o fim do direito materno.
A partir do surgimento da propriedade privada, da acumulação de bens e riquezas por uma parte da sociedade, e da consequente divisão de classes, faz-se necessária uma força “externa” que seja mediadora dos conflitos, que, no seu pleno desenvolvimento culminou no Estado. Se, de fato, esta força externa é produto direto da sociedade, ela não é composta pela força autêntica do povo, como o era nas gens, mas representa uma “força pública” que assegura o direito de uma minoria a deter propriedade. Também surgem as primeiras polícias internas para repressão dos que possam vir a violar a propriedade, função que, segundo Engels, era inicialmente vista como vexatória.
A sociedade dividida em classes passou por diferentes regimes de produção: o escravagismo, o feudalismo e finalmente o capitalismo. No feudalismo, a família permanecia como unidade produtiva diretamente ligada à terra. A transição do feudalismo para o capitalismo, no contexto europeu, transformou a sociedade e também o papel social da mulher, representando, em um primeiro momento, um aceno de maior libertação. Afinal, no regime feudal, mulheres da aristocracia e mulheres pobres viam-se estigmatizadas como seres inferiores e sem inteligência, pois sua submissão ao trabalho doméstico e ao homem na família individual permanecia crucial para a organização da sociedade. As imposições da Igreja Católica enrijeciam as relações sociais e minavam as possibilidades de inclusão da mulher, privada de direitos, inclusive do direito ao estudo.
Na época da fundação dos Estados Nacionais, ao mesmo tempo em que a aristocracia centralizava o poder anteriormente fragmentado em feudos, a classe dos burgueses crescia em importância socioeconômica, como intermediário das trocas entre os produtores. Dessa forma, ameaçava a concentração absoluta de terras e riquezas nas mãos aristocráticas e clericais e produzia novas relações sociais advindas da prática do comércio. O capitalismo mercantil e de manufatura ainda permitiram uma economia doméstica, tanto para a produção agrícola, quanto para cooperativas manufatureiras. Ainda era possível, portanto, a manutenção da família como instituição produtiva e reprodutiva.
O acirramento dos antagonismos gerados, as crises, resulta em questionamento da velha ordem. A burguesia, as massas populares que migram para as cidades e os camponeses, ou seja, a maioria da sociedade, começam a reivindicar direitos e o fim do luxo da minoria. As guerras camponesas foram uma expressão desta luta sangrenta
A história nos mostra que a opressão sofrida pelas mulheres não é natural e não existe desde sempre, inclusive o papel social das mulheres sofreu transições extremamente recentes na história. A opressão surgiu com a divisão da sociedade em classes antagônicas, o que também, contraditoriamente, foi um fator para o desenvolvimento da sociedade. Entretanto, para que a ordem capitalista, a qual já desempenhou papel extremamente progressista, não se torne cada vez mais uma força reacionária e de barbárie em sua época de decadência, é necessário um passo adiante na história do ser humano. Uma vez desenvolvidas as forças produtivas, da produção social de bens nunca antes vistos, é necessário a socialização dos grandes meios de produção, fim da propriedade privada. A emancipação da mulher está intrinsecamente ligada à luta contra a sociedade capitalista. A luta pela emancipação da mulher é a luta pela emancipação de toda humanidade.
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