Na década de 1970, dizia-se que todo brasileiro era técnico de futebol. Hoje, todo mundo é filósofo e cientista. Um presidente que faz propaganda de uma droga ineficaz contra a Covid-19, livros que repetem velhos ditados e preconceitos culturais como “autoajuda” ou filosofia, pseudociência que se vende como ciência… uma série de exemplos que mostra que a destruição das forças produtivas atinge em cheio a ciência, a filosofia e a cultura.
Alexandre da Macedônia, em sua campanha na Ásia, foi desafiado a desamarrar um nó complicado. Ele pegou a sua espada e cortou o nó. E, assim como Alexandre cortou o nó górdio, pretendo usar aqui o ápice da filosofia, o materialismo histórico, para cortar de cima a baixo este amontoado de nós e amarras que prendem o nosso pensamento e abrir caminho para que a ciência e a filosofia possam ter de volta o seu lugar.
O que é filosofia?
Há um esforço de considerar tudo o que se produziu de pensamento, de máximas e conselhos éticos como “filosofia”. Assim, qualquer um que escreveu o que pensava do mundo ou mesmo de seu próprio país, da sua cidade ou de sua família fez “filosofia”.
A Grécia, mais precisamente a cidade de Atenas, viu nascer no primeiro milênio antes de Cristo uma série de reflexões e suposições de como se constituía o mundo e a própria sociedade. Enquanto os grandes impérios tinham deuses ou veneravam a seus reis e imperadores como “deuses” (como acontecia no Egito), Atenas não tinha “reis” ou “imperadores”, mas um sistema democrático, onde todos os cidadãos decidiam o destino da cidade. No caso, cidadãos eram somente os homens livres (não se incluía as mulheres).
E se os gregos, comerciantes por vocação, piratas quando possível, dominaram o Mar Mediterrâneo, espalhando-se pela Itália, Oriente Médio, Espanha etc., e a sua riqueza permitia que pudessem “filosofar” (amar o saber), inventando teorias sobre o mundo: teoria atômica, sobre os quatro elementos que constituiriam o mundo – ar, água, terra e fogo (que até hoje alguns pseudocientistas repetem), avançaram na matemática, na geometria, na pintura, na escultura. Mas, como todo o mundo então, tinham deuses e todo um sistema de culto. Sócrates, aos 70 anos, foi condenado à morte e uma das acusações era de “desacreditar os deuses”. Apesar de Sócrates negar, questionar a sabedoria dos deuses foi algo que, desde o começo, estava na base do que se constituiu como “filosofia”.
Filosofia da história, materialismo e idealismo
Hegel explicava que a história da filosofia é a própria filosofia. Mas ele entendia a história como a história do Ser que refletia sobre si mesmo, entrando em oposição a ele mesmo e sintetizando a si próprio em um novo Ser, que era, ao mesmo tempo, sua continuidade e negação. Os exemplos que ele dava, por outro lado, eram retirados da realidade que, segundo ele, mostravam as facetas do Ser. Marx inverteu essa relação, dizendo que a história é a história da humanidade, real e concreta e que os homens fazem a sua própria história.
Olhando a história da humanidade, quando a humanidade deixou de ser coletor caçadora e constituiu os primeiros agrupamentos pastoris e agrícolas, ela começou a sua “história”, constituiu linguagens escritas e também começou a estudar a natureza – astronomia, agricultura, arquitetura, calendários, números. A maioria desses conhecimentos era considerado “mágico” ou “sagrado” e assim foi por milhares de anos enquanto o conhecimento se acumulava, cidades se erguiam e eram destruídas, abandonadas ou invadidas por outros povos.
As primeiras reflexões sobre a humanidade foram, assim, atribuídas a deuses, que seriam sobrenaturais e dirigiam céus e terras. Cabia aos homens entender ou adivinhar o que os deuses faziam e assim viver.
Foi na Grécia que surgiu, por volta do século V antes de Cristo, as primeiras contestações a esse sistema. Primeiro por especulações sobre a natureza da matéria (teoria atomística, teoria dos quatro elementos etc.). Destaco a palavra especulações, porque os gregos não possuíam conhecimento técnico suficiente para testar tais hipóteses. Mas, além desses, os próprios deuses e seus desígnios passaram a ser questionados.
Interlúdio histórico I
A Grécia era um povo dividido em várias cidades-estados. Elas se uniam de vez em quando, mas frequentemente colocavam suas divisões acima do combate aos inimigos externos. A maioria era formada de escravos e tinha Estados com maior produção agrícola (Esparta e Tebas, por exemplo) e outros (principalmente Atenas) com produção mais voltada ao comércio e à pirataria. As guerras internas entre Atenas e Esparta, a partir dos séculos IV e V antes de Cristo, levaram a uma exaustão de forças e a conquista por outro povo (os macedônios) que vinha do norte.
A filosofia grega dedicou boa parte da sua produção a discutir a melhor forma de governo, com vistas a enfrentar e modificar essa situação, principalmente em Atenas. Sócrates, Platão e Pitágoras, por exemplo, partiam da filosofia para discutir como remodelar o estado e a cultura para vencer primeiramente o inimigo interno (Esparta) e depois o externo (macedônios).
Eles não conseguiram resolver o problema, pois em termos históricos a Grécia primeiro foi incorporada à Macedônia, depois o império montado por Alexandre desmoronou com sua morte e no final um povo sem essa cultura – os romanos – ocuparam toda região do Mediterrâneo.
A forma do pensamento
Dois é número que não existe (Isaac Azimov)
Sócrates (469 a.C. – 399 a.C.) divulgava uma lenda sobre si próprio: ao consultar a pitonisa (sacerdotisa que fazia predições), ela lhe disse que ele era o homem mais sábio da Grécia. Ora, Sócrates, dizia ele, não sabia nada. Tratava-se então de provar que a pitonisa estava errada. E, por meio do seu método de questionar o conhecimento que cada um tinha, descobriu, na verdade, que ninguém tinha um conhecimento certo. Em outras palavras, ele sabia mais porque sabia ser ignorante, enquanto os outros se julgavam sábios.
Prestemos atenção ao início. Em vez de aceitar a afirmação da pitonisa ou, o mais comum, interpretá-la em seu proveito, Sócrates decide mostrar que a Pitonisa estava errada. Isso é um passo essencial no pensamento humano. As medidas dos deuses são questionadas abertamente e não são punidas? Isso é novidade no mundo inteiro. Questionar e julgar os deuses em vez de ser julgado por estes? Sim, pela primeira vez a “filosofia”, o saber, encontra-se acima do conhecimento acumulado por eras e sistematizado em dogmas religiosos e morais! Nascia um novo tipo de conhecimento, a “filosofia”, o amor ao saber, abrangendo todo o conhecimento humano e não submetido aos ditames dos deuses. Sócrates foi o primeiro a sintetizar o que ficou conhecido como “dialética”.
Platão (428 a.C. – 347 a.C.) foi discípulo de Sócrates e continuou a usar a dialética como forma de pensamento. Mas ele sistematizou o que ficou conhecido como “idealismo” em oposição ao “materialismo” de Sócrates e depois de Aristóteles.
No livro “A República”, é que Platão sintetiza uma boa parte do seu pensamento. Depois de intensos combates políticos em que se envolveu (ele criou a teoria que o melhor governo seria de reis-filósofos) tanto em Atenas como em outras colônias gregas do Mediterrâneo, ele sistematizou tudo nesse livro; e nele está o “mito da caverna”, em que explica a sua visão do mundo.
Segundo Platão, o mundo em que vivemos é constituído por sombras de um mundo ideal. Assim, existe um triângulo ideal, um quadrado ideal; e os triângulos e quadrados que aqui traçamos são uma sombra, uma representação deste mundo ideal. Os homens que aqui vivem, os planetas que conhecemos, o mar, a areia, são sombras de um mundo ideal. Somente a nossa mente, o nosso raciocínio pode vislumbrar o que seria este mundo ideal, a nós inacessível por nossos sentidos. Esse tipo de filosofia e todas que dela derivam, de uma forma ou outra, são chamadas de idealistas.
A essa concepção do mundo, contrapõe-se outra, chamada de materialismo, que explica que o mundo real é este que vivemos e nossas ideias, concepções, teorias e filosofias são uma representação deste mundo material. A veracidade de uma teoria ou filosofia deve ser medida pela sua capacidade de explicar o mundo material e não pela “beleza” de nossas representações.
Aristóteles (384 AC – 322 AC) foi o filósofo grego que retomou o materialismo como base de sua produção. Ele viveu quando a Grécia foi conquistada pela Macedônia e foi convidado a ensinar Alexandre o Grande. Depois que este partiu para conquistar o mundo, Aristóteles fundou sua academia em Atenas (Liceu). Lá, ele escreveu a maior parte de sua obra conhecida. Ao contrário de seus predecessores, ele escreveu sobre toda a ciência conhecida de então – física, química, biologia, política, lógica, ética. Apesar de tentar construir suas ideias a partir do mundo material, a base material do conhecimento era muito escassa. Por exemplo, ele defendeu que a matéria era constituída pelos quatro elementos (fogo, terra, ar e água), que lhe parecia muito mais perto da realidade que os átomos (totalmente imaginados).
Sem elementos para entender os movimentos dos astros, defendia que o movimento nos céus era essencialmente diferente do movimento na Terra e, que, aqui, o movimento vertical era diferente do movimento horizontal. Mas foi pioneiro na dissecação de animais. Seus estudos de anatomia de peixes e outros vertebrados são notáveis e tentou construir uma classificação dos seres viventes.
Interlúdio histórico II
Após a morte de Alexandre, teve que fugir de Atenas e morreu pouco tempo depois. O mundo Helenico, construído por Alexandre, dividiu-se entre seus generais e depois foi conquistado por Roma. E, durante a Idade Média que se seguiu a queda de Roma, os escritos e descobertas do filósofo viraram dogmas, que só seriam contestados pelos grandes físicos que construíram a base da ciência moderna: Kepler, Copérnico e depois Newton. Assim, durante quase dois mil anos, a ciência se viu estagnada (as descobertas matemáticas dos hindus e dos árabes serviram mais à contabilidade que à ciência propriamente dita). As observações astronômicas de chineses, árabes ou mesmo dos Maias não levaram a mudanças no que tinha sido feito pelo mundo antigo.
A ciência moderna nasce junto com a burguesia. Para um novo modo de produção, era necessária uma nova forma de pensar. Ao invés de existir ao sabor do acaso, era preciso estudar e entender o mundo para se produzir de outra forma. Por isso, ela foi apoiada e teve resultados. No próprio mundo antigo, por exemplo, Heron de Alexandria (10DC – 83DC) construiu uma máquina a vapor. Mas como o trabalho era provido pelos escravos e não se necessitava de um “auxílio mecânico” a máquina dele destinava-se a simples diversão e não a qualquer aplicação prática.
Copérnico (1473-1543) retomou a antiga teoria heliocêntrica feita por alguns astrônomos gregos. Ele, entretanto, não tinha dados observacionais suficientes para corroborar sua teoria e somente Kepler e Galileu vão colocar uma base observacional e matemática à teoria de Copérnico. Essa teoria tem uma consequência revolucionária em termos de filosofia: desloca a Terra do centro do universo e propõe um universo muito mais amplo que qualquer outro antes tinha proposto, ao colocar as estrelas em um local tão distantes que elas pareciam girar, quando na realidade estavam imóveis e a Terra que girava (rotação).
Kepler (1571-1630) era um cônego (cargo religioso), matemático, astrônomo e astrólogo. Astrólogo significava fazer previsões sobre a vida e os rumos do reino. Kepler fazia boas análises de conjuntura política, econômica e social, como falamos hoje. Assim, fazia sucesso como astrólogo, mas sua ambição principal era demonstrar como funcionava o universo. Ele tentou enquadrar os dados astronômicos coletados por seu antecessor Tycho Brahe em sólidos com vários lados. O insucesso nessas tentativas o levou a construir a teoria de que os planetas se moviam em órbitas elípticas, em vez de circulares, em torno do sol.
O último dos predecessores de Newton foi Galileu Galilei (1564 –1642). Galileu “inventou” o telescópio. Na realidade, ele pegou lunetas já existentes (que ele aperfeiçoou) e apontou para o céu. E isso mudou tudo. Ele descobriu satélites girando em torno de Júpiter, mostrando uma evidência empírica que nem todos os corpos giram em torno da Terra. Galileu tinha feito várias experiências em física, mostrando a existência de movimentos uniformes (com velocidade constante) e preparando o que depois foi construído como o relógio de pêndulo. Foi professor de matemática.
Porém, Galileu viveu na Itália, em um momento de conflitos políticos aparecendo na forma de disputas religiosas. E a popularidade de sua obra, em que defendia o heliocentrismo e combatia o pensamento aristotélico, levou a que fosse mirado pela Igreja. Centralmente, a principal contribuição de Galileu foi a de confrontar as teorias existentes com dados empíricos, sendo considerado, por isso, o fundador da ciência moderna, que se baseia na relação entre a teoria e a realidade do mundo e não somente na “beleza” ou na “simplicidade” de uma teoria.
Galileu era católico e tinha relações com a cúpula da Igreja de então – papas, cardeais. Mas, apesar disso, a Igreja primeiro condenou o sistema heliocêntrico, depois condenou toda a obra de Galileu. Ainda assim, ele nunca chegou a ser preso (e ele desobedecia às ordens, continuou a publicar seus livros na Holanda), apenas teve restrita a sua liberdade em castelos de nobres e depois em sua própria casa. Morreu sem ter sido absolvido.
ÍNDICE
Filosofia, ciência e misticismo (parte 1)
Filosofia, ciência e misticismo (parte 2 – A revolução Newtoniana)
Segmento I – Tempo e História
Segmento II – As leis de Newton e as hipóteses necessárias
Filosofia da história e luta de classes (parte 3)
Interlúdio Artístico – um pintor, diretor teatral e arquiteto vai à guerra
A física depois de Newton – Eletromagnetismo e Relatividade (parte 4)
A física depois de Newton – Mecânica Quântica (parte 5)
A teoria da evolução (parte 6)
Imperialismo e pseudo ciência (epílogo)
[i] Filosofo Alemão (1770 – 1831).
[ii] Um livreto pequeno que explica de modo prático a forma de pensar dialética é Lisis. Socrátes não escreveu. Platão recolheu suas lições e as reproduziu em livros. Depois da morte de Sócrates, continuou a usar o nome Sócrates para explicar suas próprias ideias. Mas as obras já têm um caráter bastante idealista.
[iii] Estima-se que dois terços da obra de Aristóteles foram perdidos. Além disso, é difícil distinguir o que eram livros do filósofo de manuais de sua Academia, escrita por algum outro com aval dele.