“O problema de fundo é que a ideia de que os países mais importantes do mundo podem ter interesses comuns duradouros não tem passado pelo teste da vida real e concreta.”
A recente reunião do G-20 acabou nada decidindo como se esperava. Longe de determinar medidas que pudessem de forma harmoniosa estabelecer as bases das relações econômicas internacionais, ela serviu muito mais como um palanque em que os representantes dos governos marcaram suas posições e mostraram para a opinião pública de seus respectivos países que estavam “tentando fazer algo”.
O problema de fundo é que a ideia de que os países mais importantes do mundo podem ter interesses comuns duradouros não tem passado pelo teste da vida real e concreta. Logo quando eclodiu a crise econômica em 2008, pelo menos na aparência o G-20 parecia ser uma alternativa. De um lado os EUA estavam visivelmente fragilizados por terem sido o epicentro da crise e parecia então que a iniciativa do G-20 era a demonstração de que não seria possível ignorar os demais países e impor de forma unilateral os seus interesses. A palavra “multilateralismo” entrava na moda. Ao mesmo tempo, no auge da crise havia um consenso de que eram necessárias políticas de estímulo à economia (queda dos juros, gastos públicos, isenções de impostos, etc.) para tentar sair do atoleiro. Na verdade, tais políticas já estavam sendo aplicadas individualmente pelos países, mas o fato de que a reunião do G-20 na época “endossou-as” fez com que o G-20 aparecesse como o campeão da causa da recuperação econômica internacional. Passados dois anos, nem houve uma efetiva recuperação como também os desequilíbrios internacionais se intensificaram.
O circo
O principal destes desequilíbrios sem dúvida é a relação entre China e os EUA. Antes da crise, muitos economistas afirmavam que haveria um casamento benéfico entre os dois países. Alguns chegavam a dizer que tal matrimônio marcava uma nova era não apenas pela comunhão de interesses entre ambos os países como também pela demonstração de que o mundo inteiro poderia convergir seus interesses rumo à prosperidade global. Tudo parecia como no antigo filme “As sete faces do Dr. Lao” em que um simpático velhinho chinês ajudava com suas mágicas a recuperar uma cidade do Velho Oeste Americano à beira do desastre, ao mesmo tempo em que os moradores ajudavam o velhinho comprando ingressos para assistir o seu fantástico circo.
Em função do papel do dólar na economia mundial, para os EUA não existe as necessidades que os países “normais” têm de exportar em excesso ou manter taxas de juros altas para atrair a moeda que é aceitável nas transações internacionais. Os Estados Unidos têm o singular privilégio de poder emitir a moeda que paga suas importações e salda suas dívidas com o estrangeiro. Nos últimos anos os americanos puderam importar muito mais do que exportavam. Ao mesmo tempo, os países que exportavam para os EUA reemprestavam os dólares para os EUA na medida em que compravam os títulos da dívida pública norte-americana. Para esses países é interessante e prudente manter reservas na moeda que todo mundo precisa e quer ter. Na medida em que a contrapartida do déficit comercial dos EUA eram os maciços empréstimos que recebiam de outros países, eles puderam praticar taxas de juros baixíssimas. As baixas taxas de juros ajudaram a inflar a economia americana. Este foi, aliás, um dos principais motivos das bolhas especulativas e do excesso de dívidas duvidosas que resultaram na crise financeira de 2008.
Enquanto o “circo” parecia funcionar, tudo eram flores. Mesmo o fato de que o governo chinês mantivesse suas taxas de câmbio artificialmente desvalorizadas não parecia incomodar tanto. Quando a moeda de um país está desvalorizada isto quer dizer que os preços de suas exportações estão relativamente mais baratos. Isso acarreta um aumento das exportações do país em questão ao mesmo tempo em que se prejudica a economia dos países concorrentes cujas empresas têm mais dificuldade de concorrer com as importações mais baratas.
Antes da crise, o fato de que a China estava inundando a economia americana com seus produtos e de que as exportações americanas estavam em decadência parecia um mal menor. Enquanto a euforia que precedeu a crise vigorava, acreditava-se que o “Dr. Lao” era um amigo e ignoravam-se seus “truques” mais nocivos.
Mas Obama não conseguiu tirar o país da crise, fator que certamente ajuda a explicar a vitória acachapante dos republicanos na última eleição do Congresso. Mesmo com todo o dinheiro injetado na economia e mesmo com a taxa de juros básica – que é o indicador da taxa de juros de curto prazo do mercado interbancário – próxima de zero, eles não conseguiram reanimar a produção e a geração de empregos. As pressões para que a China valorizasse sua moeda se intensificaram. O “Dr. Lao” deixara de ser simpático.
Agora os EUA anunciam que pela segunda vez irão realizar um “relaxamento quantitativo”. Por trás do nome pomposo a medida consiste simplesmente na emissão de moeda no valor de US$ 600 bilhões com a qual o governo vai comprar títulos públicos de longo prazo. O objetivo “oficial” da medida é assim fazer baixar os juros de longo prazo de forma a estimular investimentos e consumo de bens que exigem financiamentos mais longos.
Mas os próprios analistas norte-americanos acreditam que dificilmente a medida irá diretamente resultar num aquecimento interno da economia. Todos concordam que o principal efeito dessa medida será o de criar um estímulo para que esses dólares migrem dos EUA em busca de alternativas mais rentáveis como, por exemplo, investir nos lucrativos títulos públicos brasileiros. Na medida em que mais dólares irão circular pelo mundo, é certo que o dólar vai se desvalorizar ainda mais ao passo que a moeda dos outros países tende a se valorizar. O objetivo não confessado da medida é, portanto, tentar recuperar a força das exportações americanas de forma que se gerem mais empregos e que a conjuntura política fique menos desfavorável para Obama.
Ou seja, fica escancarado o fato de que os EUA querem empurrar o seu desemprego para os outros países desvalorizando o dólar. Especialmente aqueles que, diferentemente da China, têm taxas flexíveis de câmbio – como o Brasil – hão de sofrer com a valorização de suas moedas. Mas também a China é lesada, pois ela tem US$ 2, 5 trilhões em reservas no tesouro dos EUA que perderão seu valor em relação a outras moedas. A recente reunião do G-20 foi a demonstração de que o “multilateralismo” dos EUA é mais uma palavra bonita do que uma profissão de fé.
Nesse quadro é evidente que as tensões entre os países tendem a aumentar. Medidas protecionistas e tentativas de desvalorização das moedas nacionais podem desencadear uma guerra cambial e tarifária. É verdade que essa guerra tem limites. Como o capitalismo está mais internacionalizado do que nunca não é interessante, por exemplo, para uma multinacional norte-americana que produza na China, que os EUA imponham tarifas de proteção muito altas. Em outras palavras, as forças produtivas do capitalismo não podem ficar presas dentro dos limites dos territórios nacionais. Tampouco os fluxos financeiros e especulativos podem ser limitados dessa forma. Mesmo com o governo brasileiro tendo aumentado o IOF sobre as aplicações estrangeiras no Brasil, os dólares continuaram entrando e valorizando o Real.
Mas, por outro lado, não se pode negar que os governos tentarão medidas “nacionalistas”. A grande ilusão de que a globalização da economia tenderia a transformar o mundo numa harmônica “aldeia global” torna-se então uma grande mentira. Mesmo sabendo que muitas vezes essas medidas serão inúteis ou de efeito reduzido, elas têm a “vantagem” de induzir a opinião pública de que não apenas o governo está fazendo alguma coisa como também de que o problema não é o “nosso capitalismo”, mas sim o “capitalismo dos outros países”.
Existe uma correlação entre a derrota eleitoral de Obama e a tentativa de empurrar a crise para o exterior. No fundo, os novos acontecimentos mostram os limites de seu governo. Ao mesmo tempo a proposta de Obama de integrar a Índia no Conselho de Segurança do ONU é nitidamente uma jogada que visa reduzir e contrabalançar a força política chinesa na Ásia. O fato de que o governo dos EUA pouco se preocupou com a inevitável irritação do seu aliado e inimigo histórico da Índia, o Paquistão, demonstra que os desentendimentos não se limitam à economia, mas já atingiram a arena da política internacional.
E nem poderia ser de outra forma. A relativa fragilização dos EUA não trouxe uma maior coordenação internacional política e econômica como queriam alguns otimistas mais desavisados. Ao contrário, ela tende a resultar numa maior desagregação e tensão nas relações mundiais aonde não podem ser descartados, inclusive, novos conflitos bélicos no futuro. Ao mesmo tempo, a própria União Européia, outrora tida como maior exemplo de integração nacional vive uma profunda crise. A impossibilidade de se coordenar de forma eficaz o Euro como uma moeda comum aumenta a tensão entre os governos, ao mesmo tempo em que se tenta jogar o ônus da crise sobre os trabalhadores como no caso mais recente da reforma previdenciária da França.
A história mostra que os momentos em que supostamente houve uma coordenação internacional, na verdade o que de fato ocorreu foi a hegemonia de uma potência que dava as cartas. Este foi o caso da Inglaterra no século XIX. Nos anos 30 do século XX em que não havia uma potência hegemônica os conflitos interimperialistas só foram “resolvidos” com a Segunda Guerra Mundial. Esta última que deu origem à hegemonia dos EUA que dura até hoje, mesmo que recentemente tenha sido ligeiramente abalada.
Se de um lado não é possível prever para onde vai pender o balanço de forças, é certo que o caráter caótico do capitalismo e a natureza de classe dos Estados Nacionais não permitem sugerir que as relações internacionais do futuro tendam a ser mais benéficas, justas e harmoniosas para os trabalhadores e povos do mundo. Diferentemente do circo do Dr. Lao, no circo real do capitalismo mundial atual não é possível contornar os problemas de coordenação internacional com truques e mágicas.