Existem muitos mitos em torno de Lênin e dos bolcheviques – particularmente sobre as origens do partido revolucionário na Rússia. Rob Sewell examina um capítulo importante da história do bolchevismo e as lições para os marxistas hoje. Para aprofundar o tema, indicamos a obra “1903 – Atas do Segundo Congresso do POSDR”, disponível na Livraria Marxista.
A história do bolchevismo tem muitas lições vitais para os ativistas de hoje – tanto trabalhadores quanto jovens – e merece um estudo sério. Dentro desta história, o Segundo Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), realizado em 1903, tem um significado especial, pois foi quando ocorreu a famosa divisão entre a maioria (bolcheviques) e minoria (mencheviques).
No entanto, muitos mitos foram construídos em torno desse congresso, por isso é importante entender o que realmente aconteceu.
O Congresso de 1903 pode ser considerado o Congresso fundador. O Primeiro Congresso ocorreu em 1898, mas a maioria dos delegados foi presa pouco tempo depois. Além de emitir um manifesto, nasceu morto. Tudo o que restou consistia em grupos dispersos, frouxamente organizados, sem nenhum partido unificado.
Nos vinte anos anteriores, vários grupos clandestinos, ou “círculos”, surgiram na Rússia. Em 1883, um pequeno grupo foi estabelecido no exílio por Plekhanov, chamado de “Grupo de Emancipação do Trabalho”. Tal fato produziu propaganda e lançou as bases teóricas para o marxismo russo.
Em 1895, Lênin estabeleceu um grupo em São Petersburgo chamado de “Liga de Luta pela Emancipação da Classe Trabalhadora”. No entanto, Lênin logo foi preso e exilado na Sibéria. Quando libertado, ele foi ao exterior para se encontrar com Plekhanov. Após discussões, eles concordaram em unir forças e lançar um jornal marxista de toda a Rússia, chamado Iskra.
Lançando as fundações
O Iskra foi lançado em dezembro de 1900 – publicado na Alemanha e contrabandeado ilegalmente para a Rússia, onde um sistema de agentes de distribuição havia sido estabelecido. A partir de julho de 1902, devido à pressão das autoridades, foram obrigados a transferir a impressão do jornal da Alemanha para Londres, e depois para Genebra.
Além do Iskra, havia outras tendências operando nos círculos social-democratas na Rússia. Uma delas era formada pelos “economicistas”: um agrupamento oportunista que havia crescido em influência e que dava grande ênfase às lutas sindicais minimizando a luta política.
De fato, essa orientação significava abandonar o campo político aos liberais burgueses. Em vez de oferecer clareza, esses agrupamentos bloquearam o movimento emergente na Rússia.
O Iskra foi criado para lutar pelo marxismo genuíno e para combater esse oportunismo, com o objetivo de criar uma base teórica sólida para o movimento revolucionário. Lênin e Plekhanov viram seu papel principal no engajamento nessa luta contra o revisionismo, semelhante à luta contra Bernstein na Alemanha.
Esta obra do Iskra desempenhou um papel decisivo na criação das bases do partido revolucionário. Lênin desempenhou o papel principal com suas obras Que fazer? e Por Onde Começar, que ajudaram a educar e a formar os jovens quadros do partido.
Em Que fazer?, Lênin derruba os argumentos dos “economicistas”, que defendiam a “espontaneidade”. No entanto, Lênin mais tarde admitiu que “curvou demasiado a vara” ao dizer – erroneamente – que a classe trabalhadora só era capaz da consciência sindical. Ele tomou emprestado essa falsa ideia de Kautsky, algo que nunca mais repetiu.
O principal objetivo do livro de Lênin, no entanto, visava romper com o amadorismo dos “círculos” e construir um partido revolucionário sério baseado em revolucionários profissionais.
Em 1902, após dois anos de luta constante e de trabalho consistente, o Iskra emergiu como a tendência dominante na Rússia.
Nesse período, Lênin considerou seriamente o movimento, incluindo a futura composição do conselho editorial do Iskra. Da forma como estava composto naquele momento, este conselho ficou defasado em relação à situação. A maior parte do trabalho editorial estava sendo feito por Lênin, Martov e Plekhanov, enquanto os outros faziam muito pouco, para dizer a verdade. Era hora de dar uma sacudida.
O centro dessa “sacudida” foi a realização de um novo congresso, que lançaria as bases reais do partido. Em preparação para este congresso, o conselho editorial do Iskra publicou um projeto de programa do partido para consideração.
Segundo congresso
Finalmente, em 1903, depois de muito trabalho, um novo congresso do POSDR foi finalmente organizado em julho-agosto daquele ano. O período anterior de esclarecimento ideológico deu frutos. Embora houvesse alguns partidários da tendência “economicista” presentes no congresso, a maioria dos delegados dos grupos locais eram partidários do Iskra.
Dadas as condições ilegais na Rússia, o congresso teve que ser realizado em Bruxelas – um feito de enorme envergadura, dadas as dificuldades logísticas envolvidas.
Quando o segundo congresso foi aberto, havia 42 delegados presentes com plenos direitos de voto e outros 14 com votos consultivos.
O Rabotcheie Dielo, o jornal da tendência “economicista”, teve três representantes, refletindo seu declínio acentuado. A organização judaica Bund, que se juntou no primeiro congresso, tinha cinco delegados. Por sua vez, os considerados não-alinhados – “o pântano”, segundo Lênin – tinham seis apoiadores. O mais impressionante é que o bloco unido de delegados do Iskra formava a maioria com 33 delegados.
O congresso foi aberto em meio a grande excitação, com Plekhanov, o renomado pai do marxismo russo, presidindo. Ele abriu os trabalhos com as palavras:“É uma alegria viver em uma época assim… a gente quer viver para continuar lutando. Nisto reside todo o sentido de nossas vidas.”
Ele acrescentou: “Há vinte anos não éramos nada, agora somos uma grande força social” (Atas do Congresso de 1903, pp.27-28).
Federalismo
O primeiro grande ponto de discórdia no congresso foi sobre o status do Bund, que se juntou ao partido no primeiro congresso em 1898. O Bund argumentou que os judeus constituíam uma nação separada. Eles estavam, portanto, apenas preparados para permanecer, como parte do POSDR, como uma organização autônoma, como representantes dos trabalhadores judeus não apenas na Rússia, mas em todos os lugares. Isso levou a uma polêmica feroz sobre a própria natureza do partido.
Expressaram-se temores de que essa ideia federalista do Bund, se adotada, reforçasse os preconceitos nacionalistas retrógrados, que anunciariam a morte do partido tal como estava previsto. Enquanto o Bund pudesse ser responsável por certas decisões e tarefas dentro do partido, não deveria estar separado.
Como explicou Lênin, refletindo os pontos de vista do Iskra:
“A ‘autonomia’ sob as regras adotadas em 1898 fornece ao movimento da classe trabalhadora judaica tudo o que ele precisa: propaganda e agitação em iídiche; sua própria literatura e congressos; o direito de apresentar demandas separadas para complementar um único programa social-democrata geral e para satisfazer as necessidades e exigências locais decorrentes das características especiais da vida judaica”.
Ele continuou, no entanto: “Em tudo o mais deve haver uma fusão completa com o proletariado russo, no interesse da luta travada por todo o proletariado da Rússia”.
Não apenas o grupo do Iskra se opôs à abordagem federalista do Bund, como também todos os demais, com exceção dos cinco delegados do Bund.
Confronto
Seguiu-se a discussão sobre o programa do partido, elaborado pelo Iskra. Isso suscitou muita discussão quando foram solicitados esclarecimentos, mas pouco em termos de controvérsia real, além das objeções do pequeno grupo de “economicistas”.
Os representantes dos “economicistas”, Martynov e Akimov, aproveitaram a ocasião para criticar a obra de Lênin Que fazer?. Lênin interveio e explicou que o livro “era de fato um episódio da luta contra o economicismo”, do qual, para endireitar as coisas, não se desculpou por “virar demasiado o bastão” na outra direção.
No final, as diferenças foram esclarecidas e o programa foi aprovado com apenas uma abstenção. Na prática, isso refletia o peso político do Iskra dentro do congresso, que permaneceu totalmente unido, exceto por alguns pontos menores.
Tudo transcorreu muito bem até a 22ª sessão, quando esta unidade na delegação do Iskra se rompeu repentinamente.
Esse rompimento ocorreu por conta da redação dos estatutos do partido, que teria consequências imprevistas. Especificamente, ocorreu uma discussão sobre o primeiro parágrafo dos estatutos, que tratava dos critérios de “quem é membro?”.
As diferenças abertas e o calor gerado pela discussão foram um choque completo. A partir desse confronto, ficou claro que duas tendências estavam começando a se cristalizar dentro do campo do Iskra. Dois rascunhos diferentes sobre a adesão foram apresentados separadamente por Lênin e Martov.
O rascunho da proposta de Lênin afirmava: “Um membro do POSDR é aquele que aceita seu programa e apoia o partido tanto financeiramente quanto por participação pessoal em uma das organizações do partido”.
Enquanto o rascunho de Martov argumentava que um membro era alguém que aceitava o programa, apoiava o partido financeiramente e “dá ao partido sua cooperação pessoal regular sob a direção de uma das organizações do partido”.
Pressões oportunistas
Na superfície, não parece haver muita diferença entre as duas posições – certamente nada fundamental. Mas, para entender o que estava acontecendo, precisamos olhar por trás das duas proposições.
Erroneamente, foi argumentado que Lênin defendia um pequeno partido centralizado, enquanto Martov defendia um partido democrático de base ampla. Na verdade, todos os partidários do Iskra defendiam um partido forte e centralizado, que foi precisamente o argumento que usaram contra o federalismo do Bund.
No debate, foi Axelrod quem revelou o que estava por trás da disputa ao se referir a alguns professores com dificuldades de aceitar a proposta de Lênin. Não era o recrutamento de trabalhadores que era o problema, mas como os intelectuais pequeno-burgueses o veriam. A proposta de Martov, em essência, refletia a pressão desse meio pequeno-burguês; uma pressão alheia sobre o partido dos trabalhadores.
Enquanto Lênin queria restringir a adesão a revolucionários genuínos, Martov queria abrir o partido a amplas camadas de simpatizantes – principalmente os intelectuais. Se adotada, isso permitiria que essas camadas dominassem e agissem como uma correia de transmissão para pressões oportunistas no partido.
Lênin reconheceu esses riscos, mas também reconheceu que não era uma questão de vida ou morte. Ele alertou, no entanto, que adotar a proposta de Martov abriria a porta para todos os elementos de vacilação e oportunismo. Ele considerou isso como um recuo de volta à confusão do passado.
Lênin perdeu a votação por 28 votos a 23 sobre a cláusula, quando os cinco delegados do Bund, três “economicistas” e os do “centro” votaram com os partidários de Martov. Esse bloco de votos deu a Martov e seus partidários a maioria no congresso, passando a dominar os procedimentos a partir de então.
Lênin, então, se viu em minoria até, inesperadamente, a 27ª sessão do congresso.
O jovem Leon Trotsky, que era um fervoroso defensor de Lênin, agora estava do lado de Martov. Ele deveria romper com Martov no ano seguinte. Plekhanov, que mais tarde foi para o lado de Martov, agora apoiava Lênin. Isso mostra que as linhas de demarcação ainda estavam muito confusas.
“Duros” vs “brandos”
Alega-se que o bolchevismo emergiu plenamente formado da cisão de 1903, mas isso não é verdade. Certamente, havia uma divisão entre “duros” e “brandos”, como eram chamados, o que refletia uma antecipação de desenvolvimentos futuros, mas nada mais além disso.
“No congresso de 1903, os partidários de Lênin perderam por pouco a votação inicial sobre a natureza do partido revolucionário”, explicou Peter Frost no Morning Star (A Revolução foi planejada em Londres?).
“Lênin liderou os bolcheviques que defendiam um partido comunista fortemente centralizado e disciplinado. Os mencheviques favoreceram a posição mais branda de uma aliança mais frouxa com outras forças simpatizantes, embora menos revolucionárias”.
Esta versão é um dos grandes mitos perpetrados por historiadores stalinistas e burgueses. Para Lênin, Martov e os partidários do Iskra, não havia diferenças quanto à natureza do partido. Nas questões políticas, houve unanimidade virtual. Todos concordaram que o POSDR deveria se modelar a partir dos partidos social-democratas de massa da França, Bélgica e, acima de tudo, da Alemanha, liderados por Kautsky e Bebel.
Lênin, na realidade, interveio no congresso e explicou: “De modo algum considero nossa diferença tão vital a ponto de ser uma questão de vida ou morte para o partido. Certamente não pereceremos por causa de uma cláusula infeliz nos estatutos!” (LCW, vol.6, p.499).
Durante meses após o congresso, Lênin tentou chegar a um acordo com a minoria. Quando Krupskaya mencionou a possibilidade de uma divisão permanente, Lênin respondeu: “Isso seria um resultado demasiado louco para simples palavras”.
Até aqui chegou a luta de Lênin contra os mencheviques por um “partido comunista centralizado e disciplinado” em 1903!
Separação
O congresso passou a debater o futuro órgão central do partido e decidiu que o Iskra se tornaria o órgão oficial. Seguiu-se então uma discussão sobre a composição de seu conselho editorial.
Mais uma vez, a discussão ficou muito agitada e acalorada. Lênin havia proposto que o conselho editorial fosse composto por três membros – a saber, Plekhanov, Lênin e Martov. Isso excluía os três editores anteriores que estavam menos envolvidos.
Esta foi uma tentativa de sair da velha mentalidade de círculo e de colocar o partido sobre uma base profissional. Isso não era uma expressão de centralismo excessivo, mas da realidade. Na verdade, Martov originalmente havia concordado com a ideia.
A essa altura, no entanto, o saldo de votos havia mudado. Dada a votação sobre o status do Bund, seus cinco delegados se retiraram. Seguiu-se, então, a saída dos três delegados “economicistas”. Isso subitamente colocou Martov e seus partidários em minoria, que logo seriam chamados de “mencheviques”.
A lista de Lênin para o conselho editorial – composta por Lênin, Plekhanov e Martov – foi aprovada pelo Congresso. Mas Martov recusou-se a assumir o cargo.
Assim, a cisão entre bolcheviques e mencheviques, embora um fato, não foi sobre os fundamentos, mas sobre questões secundárias e sobre a composição pessoal do conselho editorial.
Martov tentou jogar com o sentimentalismo e com os sentimentos pessoais feridos dos “veteranos” que não foram eleitos. Isso levou a relações muito amargas. Lênin foi acusado de “centralismo burocrático”, como se fosse um ditador, um ultracentralista, um intransigente e coisas afins. A minoria reclamou de um “estado de sítio”, que, de fato, tentou criar recusando-se a aceitar as decisões do Congresso.
Lênin, em vez de liderar o ataque por um “partido comunista fortemente centralizado e disciplinado”, ficou chocado e consternado com o que havia acontecido. Ele adoeceu de tanta tensão nervosa. Como Krupskaya explicou:
“Ele ainda não conseguia acreditar que não havia saída. Arruinar as decisões do congresso, colocar em risco o trabalho na Rússia e a capacidade de trabalho do partido recém-formado, parecia a Vladimir Ilyich simplesmente loucura – algo inacreditável”.
Lênin escreveu a Potresov:
“E, então, eu me pergunto: sobre o que, de fato, estaríamos nos separando?… Revejo todos os acontecimentos e impressões do congresso; percebo que muitas vezes me comportei e agi sob um estado de irritação assustadora, ‘frenéticamente’; estou disposto a admitir essa minha falha a qualquer um, se é que se pode chamar de falha o que foi um produto natural da atmosfera, das reações, das interjeições, da luta etc.
“Mas examinando agora, calmamente, os resultados alcançados… não consigo detectar… absolutamente nada que seja uma afronta ou insulto à minoria… Causar uma ruptura por isso? Dissolver o partido por causa disso?… Causar uma cisão porque alguém foi excluído de um órgão central me parece uma loucura inconcebível”.
Após o congresso, Martov e a minoria se recusaram a colaborar com o novo conselho editorial ou a trabalhar no novo comitê central ou no conselho do partido. Por seu comportamento, eles tornaram o acordo impossível. Ao boicotar os órgãos eleitos, eles aprofundaram o conflito e a divisão.
Por quê, perguntou Lênin?
“Só porque estão insatisfeitos com a composição dos órgãos centrais; pois, falando objetivamente, foi só por isso que nossos caminhos se separaram…” (grifos no original)
Partido profissional
O segundo congresso representou a verdadeira fundação do POSDR; uma nova etapa em seu desenvolvimento. O velho espírito de “mentalidade de pequeno círculo” e de amadorismo paroquial estava sendo descartado por um partido mais organizado profissionalmente.
Foi essa a base da cisão, promovida por aqueles que se acostumaram a tal estado de coisas. Foram eles que se opuseram à luta de Lênin por criar um partido real, baseado em princípios partidários.
A divisão foi mais uma antecipação das futuras diferenças políticas – especialmente a atitude em relação à burguesia liberal. Mas estas só emergiriam plenamente com base nos acontecimentos.
Levaria quase uma década a mais, após repetidas tentativas de Lênin de unir o partido, antes que a divisão entre bolcheviques e mencheviques fosse irrevogável e dois partidos separados fossem criados.
“O bolchevismo”, explicou Lênin, “que surgiu sobre essa base granítica da teoria, passou por quinze anos de história prática (1903-17) inigualável em qualquer lugar do mundo em sua riqueza de experiência”.
Foi essa experiência, sob a liderança de Lênin, que preparou o terreno para a vitória da Revolução de Outubro de 1917. Como tal, ela precisa ser estudada e suas lições aprendidas.
TRADUÇÃO DE FABIANO LEITE.
PUBLICADO EM MARXIST.COM