Le Suicidé, por Édouard Manet (1877) / Imagem: Domínio Público

O adoecimento mental como resultado da crise capitalista: escritos “Sobre o Suicídio” de Karl Marx

O livro “Sobre o Suicídio” foi traduzido e publicado no Brasil pela primeira vez em 2006 pela Editora Contexto, sendo o 5º volume da coleção. O presente ensaio de Marx foi originalmente impresso no Gesellschaftsspiegel (Espelho da Sociedade), órgão de representação das classes populares despossuídas e de análise da situação social atual (Ano II, número VII, Elberfeldt, janeiro de 1846). O livro, que na verdade é um dos artigos de Marx onde ele faz suas considerações a partir do escrito de Jacques Peuchet, passou por outras edições após sua morte, inicialmente em uma versão francesa e depois em uma versão inglesa. 

O título original do livro seria “Peuchet: Sobre o Suicídio”, já que Marx analisa os escritos de Jacques Peuchet (1758-1830), o “coautor” deste livro. Essa edição mantém em negrito os escritos originais de Marx e coloca em rodapé os escritos de Peuchet que Marx edita, permitindo uma melhor contextualização dos episódios. 

Marx tinha o costume de fazer anotações sobre os textos de outros autores, mas nunca os publicou sob sua assinatura. Ele admirava os escritos românticos dos escritores burgueses. Embora estivesse longe de ser romântico, considerava o gênero literário “um protesto cultural contra a civilização capitalista moderna, em nome de um passado idealizado”. A maioria dos escritos que lia não eram socialistas, mas, como ele mesmo dizia, não era necessário ser socialista para criticar a ordem estabelecida. Bastava apenas lançar luz sobre os males que nos afligem enquanto sociedade. 

A principal questão social discutida no texto em relação ao suicídio é a opressão das mulheres na sociedade moderna, influenciando posteriormente a luta e as discussões no interior do movimento das mulheres. Hoje, muitos anos depois, ainda há muito para avançar. As mulheres da maioria dos países ainda não têm o direito ao aborto, o direito básico de interromper uma gravidez indesejada. Os números de homicídio são assustadores e aumentam cada vez mais. Mulheres são violentadas diariamente por seus companheiros, familiares e estranhos. A saúde da mulher trabalhadora é prejudicada devido à jornada tripla de trabalho. As mães enfrentam a rotina exaustiva e o peso da maternidade, na maioria das vezes, sozinhas. 

O assédio sexual, os padrões de beleza e a misoginia afetam todas as classes, principalmente no período em que o livro foi escrito. Hoje, mesmo após tantas conquistas para as mulheres, a situação continua entristecedora. Isso ocorre porque o machismo, assim como outras formas de opressão e divisão da nossa classe, é utilizado pelo sistema capitalista e, portanto, necessário para seu funcionamento. Além disso, conquistas em um país acontecem enquanto outros retrocedem ou nunca as tiveram. No capitalismo, nenhum direito está garantido. Em tempos de crise, a burguesia esmaga as conquistas históricas e joga o peso da crise nas costas dos explorados. 

Peuchet foi um arquivista policial com uma trajetória de vida peculiar. Além de se dedicar aos trabalhos nos arquivos da polícia, exerceu outros cargos públicos e foi membro do partido monarquista, sendo diretor de um jornal monarquista. Escrevia, em geral, sobre economia, mas, trabalhando na administração de um departamento da polícia, teve sua atenção voltada para os inúmeros casos de suicídio e suas particularidades, detalhando cada caso com uma sensibilidade muito grande e voltando-se para uma crítica social. Passou a analisar os comportamentos humanos enraizados e a própria sociedade que comporta e desenvolve esses indivíduos. Em cada caso, ficava mais claro que a decisão de tirar a própria vida estava ligada às condições e à posição em que esse indivíduo se encontrava na sociedade. 

Peuchet, ao descrever as situações de miséria, baixos salários e desemprego, ressalta a injustiça promovida pela burguesia. Para ele, a crítica à sociedade não deve ser apenas econômica, mas social e ética. É importante entendermos que a podridão capitalista afeta todos os indivíduos que vivem nela e que o suicídio está presente em todas as classes:

“Que outra coisa devemos esperar de três por cento de pessoas, que nem sequer suspeitam de que elas próprias, diariamente e a cada hora, pouco a pouco, assassinam sua natureza humana!”

Outro ponto importante é que Marx critica os escritores que pensavam que “distribuir um pouco de pão aos pobres” resolveria os problemas sociais. É exatamente o contrário que Peuchet percebe: não basta tratar o sintoma, deve-se erradicar a doença, no caso, o capitalismo.

“Embora a miséria seja a maior causa do suicídio, encontramo-lo em todas as classes, tanto entre os ricos ociosos como entre os artistas e os políticos. A diversidade das suas causas parece escapar à censura uniforme e insensível dos moralistas.” 

Os comunistas não lutam apenas por pão e educação para o proletariado. Entendemos que esta sociedade está apodrecida até os ossos e não pode ser reformada ou suavizada e que deve, portanto, ser abolida completamente. Não são apenas os operários que sofrem com as condições de vida atuais: “A natureza desumana da sociedade capitalista fere os indivíduos das mais diversas origens sociais” (Karl Marx, 1846). 

O suicídio não é algo “antinatural”, pois o testemunhamos com frequência. No capitalismo, os problemas psicológicos e, consequentemente, o número de suicídios aumentam em épocas de “paralisação e crises da indústria, em temporadas de encarecimento dos meios de vida”. Logo, a felicidade torna-se cada vez mais escassa. 

A sociedade capitalista isola os indivíduos. Não há espaço seguro para existir, não há ajuda. Há apenas indústrias farmacêuticas ávidas por lucro e uma psiquiatria inacessível à maioria da população, vendendo medicamentos que amortecem as tristezas da vida capitalista. As pessoas se estranham quase que “naturalmente”. Esse individualismo da sociedade burguesa é expressado em inúmeras músicas do rap nacional, como em “A Vida é Desafio”, do Racionais: 

“No mundo moderno, as pessoas não se falam 
Ao contrário, se calam, se pisam, se traem e se matam 
Embaralho as cartas da inveja e da traição copa, ouro e uma espada na mão
O que é bom pra si e o que sobra é do outro 
Que nem o sol que aquece, mas também apodrece o esgoto.” 

O livro “Sobre o Suicídio” destaca que, naquele momento, as mulheres eram os indivíduos não proletários mais afetados pelos males da sociedade. Três dos quatro casos descritos são de mulheres vítimas da pressão ou da “tirania familiar”, um termo usado pelos autores para designar uma das formas de poder arbitrário não abolido pela Revolução Francesa. Marx denuncia a “vingança” dos indivíduos submetidos à “submissão” social contra aqueles que estão em posições ainda mais vulneráveis, dentro da hierarquia familiar. 

Um dos casos narrados é o de uma jovem que se suicidou por afogamento, um dos modos mais comuns à época. Ela foi julgada com ferocidade por seus parentes ao voltar tarde para casa depois de sua lua de mel, mesmo sendo um casamento consentido e arranjado pelos pais. Na noite anterior, seus pais jantavam tranquilamente com seus sogros, mas, ao amanhecer, a insultaram e a condenaram moralmente. A jovem não suportou a hipocrisia e a opressão familiar, correu e se lançou ao rio. Marx analisa esse fenômeno como a reprodução das opressões pelos próprios oprimidos na sociedade burguesa: “As pessoas mais covardes, as mais incapazes de se contraporem, tornam-se intolerantes assim que podem lançar mão de sua autoridade absoluta de pessoas mais velhas. O mau uso dessa autoridade é igualmente uma compensação grosseira para o servilismo e a subordinação aos quais essas pessoas estão submetidas, de bom ou de mau grado, na sociedade burguesa”. 

Outro caso crítico é o do poder absoluto do homem sobre a mulher, exemplificado por um marido possessivo, ciumento ou tóxico, para usar os termos atuais, que aprisiona sua esposa e a priva de qualquer liberdade. Marx o compara a um senhor de escravos que protege e vigia sua “propriedade”. O ciúme irracional leva a mulher ao desespero, e, sem saída, ela decide tirar a própria vida. Seu cunhado, ao relatar o ocorrido, afirma que “seu irmão finalmente a matou”. O caso ilustra como o casamento burguês reduz a mulher a um mero inventário do marido, condenando-a à escravidão doméstica. Segundo Peuchet (1846): 

“A infeliz mulher fora condenada à mais insuportável escravidão, e o marido podia praticá-la apenas por estar amparado pelo Código Civil e pelo direito de propriedade, protegido por uma situação social que torna o amor independente dos livres sentimentos dos amantes e autoriza o marido ciumento a andar por aí com sua mulher acorrentada como o avarento com seu cofre, pois ela representa apenas uma parte de seu inventário.”1

O terceiro caso refere-se ao direito ao aborto, uma das principais bandeiras do movimento das mulheres depois de 1968 e uma questão central para os comunistas. Uma jovem, ao descobrir-se grávida, pede ajuda a um médico para interromper a gestação, mas ele se recusa. Sem alternativas para evitar o julgamento moral da sociedade, ela tira a própria vida. Em sua súplica ao médico, disse direta e decidida: “O senhor decide se será uma morte ou duas”. O médico e a moral burguesa decidiram. A maternidade, ao contrário do que as propagandas de TV vendem, não é sempre romântica e bonita. Para mulheres pobres e sem apoio, a gravidez pode ser uma condenação à miséria. 

O último caso selecionado por Marx trata da miséria como causa de suicídio. Um guarda real, pai de família, ao perder o emprego e não suportar mais o desespero, tira sua própria vida para não ser um peso para sua esposa costureira e seus filhos. O homem deixa uma carta pedindo à família real algum dinheiro para sua família, que atende o pedido. Por solidariedade, culpa ou por boa imagem? Não sabemos. O que sabemos é que a miséria é uma condição miserável que degrada o ser. Peuchet (1846) diz: 

“Entre as causas do suicídio, contei muito frequentemente a exoneração de funcionários, a recusa de trabalho, a súbita queda de rendimentos, em consequência de que as famílias não obtiveram os meios necessários para viver.” 2

Este livro não apenas expõe os males e injustiças do capitalismo, mas também evidencia a necessidade da emancipação socialista. O suicídio, como fenômeno social, não pode ser superado sem uma transformação radical da sociedade. “A classificação das diferentes causas do suicídio deveria ser a classificação dos próprios danos de nossa sociedade”. Os comunistas se organizam porque o futuro da humanidade depende da construção de uma sociedade onde, acima de tudo, a vida tenha valor — e isso só será possível em uma sociedade inteiramente comunista. “As doenças debilitantes, contra as quais a atual ciência é inócua e insuficiente, as falsas amizades, os amores traídos, os acessos de desânimo, os sofrimentos familiares, as rivalidades sufocantes, o desgosto de uma vida monótona, um entusiasmo frustrado e reprimido são muito seguramente razões de suicídio para pessoas de um meio social mais abastado, e até o próprio amor à vida, essa força enérgica que impulsiona a personalidade, é frequentemente capaz de levar uma pessoa a livrar-se de uma existência detestável.” (Marx, 1846) 

Vivemos em um período de crise do capital e de precarização dos serviços públicos. Estamos na fase superior do capitalismo: o imperialismo e a destruição das forças produtivas. Em todo o mundo, presenciamos a privatização de serviços historicamente conquistados com o sacrifício da classe trabalhadora. 

O transporte suprime nosso direito de ir e vir, submetendo-nos a condições indignas de superlotação e assédio. A educação pública, ao invés de ser uma ferramenta emancipatória, torna-se um obstáculo para jovens que precisam trabalhar. As escolas estão superlotadas, e a juventude enfrenta sintomas depressivos, pressão para “ser alguém e ficar rico”, drogas nas esquinas e uma ansiedade generalizada. 

A saúde mental, supostamente garantida pelo SUS, é uma ilusão. As Unidades Básicas de Saúde frequentemente não possuem psicólogos suficientes, e aqueles que buscam ajuda, acabam medicalizados e até mesmo abandonados. No trabalho, a escala 6×1 corrói nossa saúde física e mental, enquanto o atendimento ao público nos expõe ao desgaste emocional constante, pois os atendentes precisam lidar com outras pessoas igualmente cansadas, apressadas e irritadas com a vida. Há apenas uma folga semanal para ver os amigos, estudar pra prova, pro Enem, pro concurso, pra ter momentos com a família, lazer… momentos só ou para namorar. Na escola, os que não trabalham, restam a completa dependência dos pais, algo visto até como um problema para os demais. E a liberdade está onde? Em um trabalho? Onde está a liberdade que buscamos e não encontramos? Como comunistas, afirmamos, somente em outra sociedade, que será construída sobre os escombros dessa. 

Ao fazer uma simples análise materialista da sociedade em que vivemos, notícias como esta que fala sobre regras que exigem que empresas avaliem riscos à saúde mental no trabalho parecem piada. Agora os empregadores devem “avaliar” se o serviço a ser prestado oferece riscos à saúde mental dos trabalhadores. A nossa resposta é que quem oferece riscos à saúde humana é a própria sociedade burguesa em declínio. Nenhuma dessas ações superficiais podem de fato impedir que o trabalho prejudique nossa saúde física e mental.

A paz, sabemos, não está na reconstrução de Gaza orquestrada por Trump. A guerra, necessária para o capitalismo, afeta toda a humanidade. Como estão os sobreviventes palestinos depois de todo esse terror, massacre e destruição? Estamos falando de traumas que transpassam gerações e causam medo em todo o mundo. Diante da necessidade de lutar contra a barbárie promovida pelo capitalismo, a ICR lança a campanha ABAIXO A GUERRA E O CAPITALISMO. Convidamos todos a assinar o abaixo assinado pela ruptura imediata das relações do Brasil com Israel e se somar à nossa luta.

O capitalismo nos faz acreditar que somos culpados pelo nosso sofrimento. Mas a verdadeira liberdade não será encontrada dentro desta sociedade. Somente nos escombros do capitalismo poderemos erguer uma nova sociedade, onde a vida não seja descartável. 

  1. MARX, Karl. Sobre o suicídio. São Paulo: Editora Contexto, 2006. ↩︎
  2. Idem. ↩︎