O triunfo da morte, de Pieter Bruegel (1562)

Liberdade e escravidão: o nascimento do capital (parte 1)

De todas as palavras de ordem usadas pelos defensores pagos e não pagos do capital, “liberdade” é certamente a mais usada e a menos compreendida. “O capitalismo é liberdade” de acordo com o Turning Point UK. Capitalismo e Liberdade de Milton Freedman permanece sendo um livro sagrado para aqueles que são fiéis a igreja da Livre Iniciativa. De fato, é impossível até mesmo começar uma discussão sobre a natureza do capitalismo sem ouvir “liberdade individual”, “livre escolha”, “livre comércio” ou “livre mercado”.

Quanto mais os indivíduos são deixados para comercializar e enriquecer por si mesmos, mais o capitalismo prospera, e consequentemente, mais livres e prósperos todos na sociedade se tornam – este argumento é simples, familiar e completamente falso. Na realidade, a liberdade capitalista sempre teve uma natureza profundamente contraditória, desde o seu início.

O que o nascimento do capital exigiu foi que os proprietários do dinheiro, da terra e da indústria, fossem confrontados por uma massa de trabalhadores “livres”, libertados de qualquer propriedade de si próprios e completamente dependentes do mercado. Esta é a fundação real do sistema capitalista, e esta história foi “escrita nos anais da humanidade em letras de sangue e fogo”, nas palavras de Karl Marx.

O declínio do Feudalismo

Foi entre os escombros das ruinas da Europa feudal que as fundações para uma nova ordem social foram erguidas. Mas as primeiras pancadas contra a velha ordem não foram desferidas nem pelos mercadores nem pelos credores de dinheiro, mas pelas camadas mais pobres e oprimidas da Europa feudal: os servos.

A Europa medieval foi construída com o trabalho não pago desta classe de semiescravos, para os quais era garantido um pequeno pedaço de terra, que, em troca, eram forçados a trabalhar de graça nas propriedades da igreja e da nobreza feudal por diversos dias da semana. Somado a isso estava o “trabalho benéfico” ou corveia, que exigia que os servos realizassem tarefas específicas para o benefício de seus senhores. Na Inglaterra na época do Doomesday Book (1086), era estimado que mais de 70% da população era classificada como servil. E é na luta desta classe oprimida de camponeses para se libertar da servidão que a pré-história do capitalismo foi traçada.

Existe um velho dito alemão, “Stadluft macht frei”, que significa, “o ar das cidades faz você livre”. Sua fonte é a lei consuetudinária da Idade Média sob a qual qualquer servo fugido que permanecesse em uma vila por um ano e um dia não mais estaria sujeito as reivindicações de seu antigo senhor e, por consequência, se tornaria livre. Mas este costume não desceu do céu simplesmente ou aconteceu por acordo de cavalheiros entre os governantes e seus escravos. Este foi produto de anos de uma amarga luta de classes.

Um servo era considerado uma parte da propriedade de seu senhor, como se ele e sua família tivessem crescido do próprio solo. Ele estava, consequentemente, completamente sob a jurisdição de seu senhor, significando que ele tinha pouca oportunidade de procurar justiça com qualquer outra pessoa. O próprio rei era somente outro senhor de terras e a igreja era o maior senhor de terras de todos.

A mais fácil e mais efetiva defesa contra a exploração dos senhores feudais era a fuga, através do período medieval uma luta constante trovejava entre os servos se esforçando para escapar do aperto arrebatador dos senhores e seus caçadores de homens que vagavam o país à procura de sua propriedade privada.

Os resultados destes choques foram muitos vilarejos livres na Europa. Estes assentamentos decrépitos, a partir de tais origens humildes, em alguns casos se tornaram poderosas cidades independentes. Nascidos do feudalismo e ainda em oposição a ele, os moradores das vilas, conhecidas na França como “burgos”, se organizaram em conselhos municipais e guildas, que serviam como órgãos locais de poder, através dos quais estes grupos de indivíduos, unidos por uma luta comum, foram transformados em classe.

O crescimento destes vilarejos e o rápido aumento da população até a Peste Negra contribuíram para um aumento do mercado, que começou a minar gradualmente as fundações do feudalismo.

Engels afirmou que “muito antes das muralhas dos castelos dos barões serem violadas pela nova artilharia, elas já tinham sido minadas pelo dinheiro”, em seu artigo O Declínio do Feudalismo e a Ascensão da Burguesia. Já durante estas cruzadas, alguns senhores estavam começando a cobrar taxas de aluguel de seus súditos ao invés de serviços prestados. Com isso eles teriam acesso às luxúrias e produtos exóticos que este mercado tinha trazido à tona.

Mas quanto mais os senhores extraíam aluguéis em dinheiro de seus súditos, mais ambas as partes se tornavam dependentes das cidades. Anteriormente, os feudos eram unidades autossuficientes, combinando artesanato e agricultura. O crescimento das cidades trouxe com ele mais produtos especializados como ferramentas e roupas para as massas bem como a seda para a nobreza. A partir desta crescente divisão do trabalho brotou um novo relacionamento entre o campesinato rural e a burguesia na cidade – um relacionamento mediado através de mercadorias.

O século 14 representou um ponto sem volta na luta contra a servidão, que já estava em declínio na maior parte da Europa. Em vez de fortalecer os senhores na luta contra o campesinato, a crise causada pela Peste Negra, que reduziu a população a menos de um terço, na verdade deu aos camponeses um grande poder de barganha. A resposta dos senhores foi impor um valor máximo legal nos salários dos trabalhadores e esmagar o campesinato com taxações, das quais o “imposto comunitário” foi o exemplo mais infame.

O resultado foi a Revolta dos Camponeses de 1381 que, aliados com as camadas mais pobres das massas londrinas, tomou a forma de um levante nacional. Apesar de sua brutal supressão, este movimento teve sucesso em duas frentes: não houve mais a cobrança do “imposto comunitário” (até a malfadada tentativa de Tatcher de ressuscitá-lo), e a servidão na Inglaterra estava morta. Em seu lugar estava uma nobreza exausta cada vez mais dependente dos aluguéis em dinheiro, pequenas propriedades de camponeses independentes e o crescimento da burguesia nas cidades.

Engels observa que na história as ações dos homens e das mulheres que fizeram história, “em última instância, tiveram consequências bastante diferentes daquelas pretendidas”. As lutas dos camponeses e moradores das cidades tinham montado o palco para um novo ato dramático na história mundial. Assim que sua liberdade foi alcançada, começa uma nova onda de escravidão fruto de sua vitória.

O mercado mundial

O declínio do feudalismo deu um poderoso incentivo à produção e troca de mercadorias. O desenvolvimento da divisão do trabalho entre indústria artesanal nas cidades e agricultura rural criou uma expansiva demanda por bens de todos os tipos. E esta demanda foi alimentada por uma cada vez mais complexa teia de rotas comerciais através da Europa e do Mediterrâneo.

Primeiro no Egito e em seguida tomado pelas cidades-estados italianas, sofisticados instrumentos legais tais como contratos de garantia e companhias de comércio foram introduzidos para cobrir os riscos associados ao comércio regular de longa distância. E junto com o crescente poder dos mercados veio a elevação daquela “prostituta comum da humanidade”, o dinheiro. A fundação de bancos mercantis nas grandes cidades mercantis como Veneza, originalmente como uma resposta a necessidade do capital financeiro, agiu de volta no seu desenvolvimento, impulsionando-o para alturas maiores.

No século 15, a florescente economia mercantil na Europa estava se esforçando contra o que parecia ser um limite natural. A produção e troca de uma massa cada vez maior de mercadorias criou uma necessidade extrema por dinheiro como meio de circulação e pagamento. Além disso, os produtores dos mais procurados artigos de luxo na Ásia frequentemente só aceitavam pagamento em prata, não tendo necessidade pelos tecidos da Europa.

A crescente sede de metais preciosos para o mercado em desenvolvimento não pode ser saciada pela produção relativamente escassa das minas europeias. O resultado foi a infame “luxúria do ouro” que levou os aventureiros em uma busca de pilhagem global que nós agora chamamos de “Era dos Descobrimentos”.

Um mito particularmente excêntrico associado a este período é que isto aconteceu como resultado de algum espírito unicamente europeu de pesquisa e aventura. Isto chegaria como uma surpresa aos exploradores chineses e árabes do período. Mas Engels nos ofereceu uma rápida refutação deste absurdo romântico.

“Ouro foi o que os portugueses buscaram na costa africana, na Índia e no extremo oriente; ouro foi a palavra mágica que atraiu os espanhóis sobre o oceano até a América” (ibid).

Este fato não passou despercebido pelos nativos “selvagens” que encontraram nossos intrépidos aventureiros europeus. Um destes comentou sobre os conquistadores de Cortez no México:

“Levantaram o ouro como se eles fossem macacos, com expressões de prazer, como isso lhes desse uma vida nova e acendesse seu coração… Eles ansiavam pelo ouro como suínos famintos” (citado em Galeano, Veias Abertas da América Latina: Cinco Séculos da Pilhagem de um Continente).

Em todos os lugares onde os europeus estiveram, eles descobriram uma nova riqueza para trazer para casa e vender por um enorme lucro. Como o velho Midas, o que eles tocavam virava ouro, com resultados calamitosos para os povos nativos que eles encontraram. Marx observou (no Capital volume 3) que,

o capital mercantil, quando assegurou uma posição de dominância, se estabeleceu por um sistema de roubo. Por isto que este desenvolvimento entre as nações comerciais dos velhos e modernos tempos está sempre conectado diretamente com a pilhagem, a pirataria, sequestro de escravos e conquistas coloniais”.

Em nenhum lugar isto pode ser visto mais claramente que no período que se seguiu a descoberta do Novo Mundo.

Em 3 de agosto, Cristóvão Colombo zarpou do porto espanhol de Palos. Seu objetivo era alcançar a Ásia navegando a Oeste sobre o Atlântico. Ao invés disso, em 12 de outubro, ele tropeçou nas Bahamas e em um povo chamado, em seu próprio idioma, Lukku Cairi. No seu diário, Colombo escreveu:

“andam nus como quando as mães os deram à luz, e as mulheres também, embora eu não tenha visto mais do que uma menina. Eles são muito bem feitos, com corpos bonitos e semblantes muito bons”.

Historiadores estimam que existiram 1 milhão de Tainos (dos quais os Lukku Cairi fazem parte) em 1492. 56 anos depois existiam somente 500.

Este se tornou o modelo para a colonização do resto da América. Eliminados por doenças desconhecidas (algumas vezes deliberadamente), enviados para uma morte prematura em minas venenosas, quase 100 milhões de seres humanos foram sacrificados ao altar do Comércio. O preço de suas vidas foram 100.000 toneladas de prata exportados da América Latina para a Europa entre 1492 e 1800.

Então como agora, os defensores deste genocídio apontavam para os benefícios da liberdade europeia que estavam sendo administrados forçadamente nos nativos. Um destes piedosos servos de Deus, o arcebispo Liñán y Cisneros explanou:

“a verdade é que eles estão se escondendo para evitar pagar tributos, abusando da liberdade que desfrutam a qual eles nunca tiveram sob os Incas” (citado em Galeano, Ibid.).

Mas estes libertadores europeus não somente libertaram a população indígena de suas vidas e tesouros; cada local de sacrifício humano se tornou uma ligação fresca na cadeia do crescente mercado internacional, demandando uma intensificação da produção pelos meios mais bárbaros. Como a população nativa do Caribe minguou, esta foi substituída pelos escravos africanos testados primeiro pelos portugueses nas plantações de açúcar no Cabo Verde.

Ao invés de desenvolver a produção em um nível superior, a façanha original do mercado mundial foi estender e intensificar a escravidão de antigamente em uma escala ainda maior. Ao fim do comércio de escravos em 1853 entre 12 e 15 milhões de africanos tinham sido transportados, dos quais 2,4 milhões morreram na rota.

Este massacre horrível foi uma parte integral do desenvolvimento prévio do capitalismo. Isto não passou despercebido por Marx, que enfatizou (no Capital, vol 1):

“A descoberta de ouro e prata na América, a extirpação, escravidão e o sepultamento nas minas da população indígena deste continente, o início da conquista e a pilhagem da Índia, a conversão da África em uma reserva para caça comercial de negros, são todas essas coisas que caracterizam o alvorecer da era de produção capitalista”.

E, no entanto, este período nos confronta em um aspecto como uma imensa contradição. Se, por um lado, nós vemos no mercado mundial se desenvolvendo com a crescente produção e troca de mercadorias; por outro, os métodos usados para produzir essas mercadorias permanecem sendo nada mais que a intensificação das formas pré-existentes de exploração para um ponto agonizante.

O capitalismo sem mercadoria ou dinheiro é inimaginável, mas estes ainda não equiparam a produção capitalista. O que é necessário é a força de trabalho, habilidade dos seres humanos de trabalhar, para transformar a si mesmos em mercadorias. Este estágio final, decisivo, no nascimento do sistema capitalista tomou a forma de uma imensa revolução social que começou na Inglaterra no século XVI.

LEIA A PARTE 2

TRADUÇÃO DE JOSÉ GUTERRES.

PUBLICADO EM MARXIST.CO.ZA