Menos de sete dias depois de aprovada a urgência no PL 1904/2024, o presidente da câmara dos deputados Artur Lira (PP/AL) concedeu uma entrevista rodeado pelos líderes partidários dizendo que a votação seguiria para o segundo semestre e que seria precedida de uma discussão feita em uma comissão “ampla”.
No dia 12 de junho, a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para o PL 1904/2024, que ficou conhecido pelos movimentos sociais como o “PL do estupro” ao estabelecer para as mulheres e crianças que abortarem em gestações acima de 22 semanas, mesmo que decorrentes de estupro, uma pena maior que para os estupradores! A urgência foi aprovada por “aclamação”, sem discussão, em 24 segundos, apenas com o protesto do PSOL e do PCdoB; posteriormente, o PT se juntou a estes.
Tal manobra parlamentar, aprovar algo sem discussão, só se tornou possível porque o partido do presidente Lula, o maior partido governista, deu seu aval à manobra. Surpreendido com a reação intensa nos movimentos sociais, tanto do proletariado como da burguesia, o PT mudou sua posição ao longo dos outros dias.
Dois dias depois do acontecido, a nova porta voz da “esquerda lulista”, Janja, deu a seguinte declaração:
“É preocupante para nós, como sociedade, a tramitação desse projeto sem a devida discussão nas comissões temáticas da Câmara… É um absurdo e retrocede em nossos direitos… não podemos revitimizar e criminalizar essas mulheres e meninas, amparadas pela lei. Precisamos protegê-las e acolhê-las.”
A declaração é muito interessante. Apesar de criticar um dos aspectos do projeto (a criminalização de mulheres e crianças), não toca no outro lado do projeto – que discute as formas do aborto, desrespeitando e afrontando diretamente as recomendações médicas emitidas pela OMS.
Segundo a imprensa, o problema é que o governo está “focado na pauta econômica” e deixando o congresso de maioria conservadora tocar a “pauta de costumes”. O dever dos comunistas, em primeiro lugar, é jogar luz sobre esta questão.
Antes de tudo, esta divisão é parte de uma política que permite a Lula, em nome da governabilidade, conviver com a política da maioria reacionária que a burguesia produziu no congresso. Aliás, o problema é que Lula e o PT, com seu governo de tentativa de conciliação de classes, terminam aplicando a política da burguesia inevitavelmente.
A maior realização do governo Lula/Alckmin até o momento foi a Reforma Tributária. Esta reforma foi proposta por Fernando Henrique Cardoso nos anos 90 e a sua aprovação levou ao aumento dos impostos que recaem sobre o proletariado e a pequena burguesia, os impostos sobre consumo, enquanto reduziram os impostos sobre a renda das grandes empresas que financiavam a previdência social, conforme explicou o Instituto de Defesa Fiscal (constituído em sua maioria por Auditores Fiscais).
Haddad, defendendo a reforma, explicou candidamente que a Reforma hoje atingia o consumo e que depois seguiria a parte de tributar a renda e as grandes fortunas. Para os mais antigos, isso lembra o antigo discurso da Ditadura Militar sobre o “milagre econômico” que se sustentava sobre o arrocho salarial do proletariado: “vamos crescer o bolo e depois dividir”. O bolo cresceu, mas a pouca divisão que houve foi resultado da luta do proletariado, das grandes greves operárias do final dos anos 70 que deram origem ao PT e a CUT que, quase 50 anos depois, estão do lado da burguesia e defendem a política contrária às mobilizações que deram origem a estas organizações.
A “pauta econômica” de Lula se confunde com a “pauta de costumes” de Bolsonaro quando Lula, criticando a greve dos professores e respondendo às críticas dos reitores que mostram que o “novo dinheiro” para a universidade nada mais foi que um novo embrulho para algo que já estava previsto (cinco milhões e meio para obras nas universidades que já estavam no orçamento) e zero de aumento para professores e servidores, declara: “não tenho medo de reitor”. Os bolsonaristas são mais diretos e dizem que as universidades são um antro de comunistas e drogados.
E a “pauta” ainda se “confunde” mais, quando Lula critica os R$ 500 bilhões concedidos como incentivos fiscais para a burguesia e as grandes empresas. Engraçado, enquanto ele critica estes incentivos fiscais de boca, não acha 1% deste valor para dar um mísero reajuste de 3% para os professores este ano. Mas, no mesmo momento, o “querido da Faria Lima”, Haddad, consegue aprovar incentivos fiscais (mais renúncia fiscal) para o “hidrogênio verde”, “energia renovável” e “carros elétricos”. Só para os carros elétricos, para as grandes montadoras, os valores chegam a quase R$ 50 bilhões. E para os professores… nada!
Sintetizando, existe uma política comum da burguesia de destruição dos direitos civis, dos direitos democráticos, dos direitos trabalhistas e de assistência social. Que isto seja apresentado pela própria burguesia como “pauta econômica”, “pauta de costumes”, “moralização da administração”, não esconde o essencial: é preciso arrochar a classe trabalhadora e garantir mais dinheiro para os bancos, para os super ricos, para a grande burguesia. De forma explícita, Haddad explica que para o segundo semestre o governo pretende “economizar” R$ 20 bilhões, reduzindo a concessão de direitos sociais (bolsa família, aposentadoria por idade, etc). Sim, para os super ricos, tudo; para o proletariado, mais arrocho e miséria.
É nesta situação que os comunistas, o proletariado e a juventude não podem confiar na promessa de Lira e dos líderes partidários de que a votação do PL 1904 vai para o segundo semestre, precedido de discussão em uma comissão “ampla” (como exigiu Janja). A verdade é que o regime aprovado permite que em qualquer sessão, por decisão do presidente Lira, seja colocado em votação com relator designado em plenário e votado ali mesmo. Sem qualquer discussão nas comissões. Esta é a situação legal. Foi a pressão das ruas que fez Lira e a maioria conservadora recuarem. E é a manutenção desta pressão que poderá enterrar de vez o projeto.
Neste sentido, a iniciativa da deputada Sâmia do PSOL de um abaixo assinado exigindo que Lira arquive o projeto se soma à luta. Peca, evidentemente, por não considerar a situação que Lira não é somente o presidente, mas também o representante da maioria conservadora, dos líderes partidários e, principalmente, do próprio PT que corroborou com a manobra de votação da urgência do projeto. Isto decorre da própria situação do PSOL que busca se posicionar à esquerda, mas continua apoiando o governo burguês de Lula.
Por outro lado, a iniciativa da mesma deputada de, aproveitando a ocasião, apresentar três projetos de lei para garantir de forma menos traumática e sem que haja entraves burocráticos para a realização de abortos já previstos em lei só serve para desviar e esconder a verdadeira luta e a bandeira histórica do movimento das mulheres (que já foi conquistada em diversos países da América Latina como Argentina e Chile, na maioria dos países europeus e que existia até recentemente nos EUA, sendo retirada pela reacionária Suprema Corte com maioria nomeada por Trump).
Neste momento, em que o debate e a movimentação arrefeceram, as tarefas dos comunistas são:
- Debater o direito ao aborto, livre e financiado pelo SUS;
- Conduzir este debate onde for possível: escolas, universidades, clubes, associações, sindicatos;
- Participar de todo e qualquer movimento contra o PL 1904/2024 (“PL do estupro”);
- Denunciar a política vergonhosa do PT, que permitiu a urgência no projeto e que, no fundo, aceita a “pauta dos costumes” bolsonarista;
- Organizar núcleos do “Mulheres Pelo Socialismo”, amplos quanto for possível, que organizem o combate com panfletagens e manifestações contra o PL e a favor do direito ao aborto.