Imagem: Ozéas Santos, AID, ALEPA

Lições da vitória indígena em defesa da educação no Pará

O ano da COP30 começou com uma vitória indígena contra Helder Barbalho (MDB). O governador do Pará cedeu e revogou a Lei 10.820, que alterava a carreira do magistério e abria caminho para substituir o ensino presencial por ensino telepresencial (com TVs) em escolas localizadas em áreas afastadas no campo, comunidades quilombolas, ribeirinhas e terras indígenas. Muitas dessas crianças nunca frequentaram a escola ou abandonaram os estudos por não haver uma escola de Ensino Médio próxima.

Essa grandiosa vitória foi conquistada após uma intensa luta, que incluiu a ocupação da Secretaria de Educação, bloqueios de estradas, greve dos professores e um forte apoio popular. O Pará possui cerca de 500 turmas na modalidade de ensino destinada às comunidades mais distantes. A educação no campo e na floresta, presencial, pública e gratuita, é um direito da juventude, previsto na LDB em todo o território nacional.

As entidades denunciam que a educação padronizada via TVs é uma forma de alienação pedagógica, além de ser ineficaz e desumanizadora. O governo insiste que a tecnologia de internet via satélite Starlink, de Elon Musk, seria suficiente para dar suporte. Mas não é porque haveria Starlink disponível que deveria se estabelecer a escola telepresencial. Aqui, o fetiche da tecnologia serve de justificativa para a “modernização” que desmonta o ensino público, comprometendo a práxis pedagógica e reduzindo custos. Se para a família não indígena já seria difícil essa aplicação, imagine numa aldeia com crianças acostumadas a viver livres, jogando bola, correndo, pulando, tomando banho de rio, subindo em árvores… É sensato achar que uma televisão conseguiria colocar esses meninos e meninas para estudar sem a presença de um professor?

A educação no capitalismo não é concebida como um direito, mas como um meio de reprodução das relações sociais de produção. A escola forma mão de obra para o mercado de trabalho, cada vez mais desregulamentado e precarizado. A educação indígena enfrenta uma condição ainda mais cruel porque o Estado nunca teve interesse em educar esses povos, apenas em assimilá-los ou exterminá-los. Há 500 anos eles são vistos como um obstáculo à homogeneização cultural e à exploração da terra e dos recursos naturais. A política de Barbalho representa a ofensiva do capital sobre a Amazônia, uma política de expropriação e genocídio em nome da acumulação de riquezas nas mãos de poucos.

O estado do Pará é o mais populoso da Amazônia, com 8 milhões de habitantes. Seu território abrange 1,2 milhão de km², mais do que o dobro da área da França, e apresenta uma notável diversidade étnica. Ao todo, 55 diferentes nações indígenas habitam a região, falando 30 idiomas distintos. Segundo o Censo de 2022, a população indígena no Pará alcançou 80 mil pessoas, um aumento expressivo de 58% em relação a 2010, quando o número era de 51 mil. No entanto, apenas metade desses indígenas vive em terras oficialmente reconhecidas. O município com maior população indígena é Santarém, com mais de 16 mil habitantes. Atualmente, há 145 terras em estudo para delimitação.

Além disso, o Pará abriga 516 localidades quilombolas, conforme dados do IBGE. Em 2022, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) registrou 125 áreas de remanescentes de quilombos, das quais 62 já foram tituladas. Segundo a revista Cenarium, o estado possui 87 territórios quilombolas delimitados, com cerca de 44 mil quilombolas residentes. Esses povos originários desempenham um papel fundamental na preservação de seus territórios, muitas vezes se opondo à expansão do capital.

A ferrovia Ferrogrão favorecerá o capital financeiro internacional ao viabilizar o escoamento de commodities agropecuárias e minerais para o mercado global. Com quase mil quilômetros de extensão, a obra ligará o Mato Grosso ao Pará, impactando territórios indígenas e quilombolas. Essas comunidades têm se manifestado contra o projeto, reivindicando o direito à consulta prévia. Paralelamente, outros megaprojetos extrativistas estão em curso na região, como a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas e um grande empreendimento de uma mineradora canadense para a extração de ouro no médio Xingu (PA). Nessa mesma área, diversas comunidades já sofreram impactos severos com a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

O saque imperialista sobre a Amazônia entrou em uma nova fase, marcada pela financeirização da natureza e pelo crescimento dos conflitos em torno do recém-criado mercado de carbono. Já foram registrados pelo menos seis casos em que empresas assediaram comunidades ou firmaram projetos de sequestro de carbono sem consulta prévia aos povos afetados. A expansão do capital na região avança com violência e terror contra trabalhadores, como evidenciam as frequentes ameaças e ataques de grileiros e pistoleiros. O pacto entre o capital financeiro e as oligarquias locais resulta na negação sistemática do direito de consulta, em fraudes nos licenciamentos ambientais e na lentidão dos processos de demarcação de terras. Apenas em 2023, foram registradas 40 denúncias no Pará, incluindo extração ilegal de madeira, caça e pesca predatórias e contaminação dos rios por mercúrio. O avanço do desmatamento, da mineração, dos monocultivos e da pecuária sobre terras de comunidades tradicionais tem intensificado os conflitos na região.

O capital não hesita em destruir vidas e culturas para garantir lucro. Esses ataques não são meras tragédias isoladas, mas parte de uma guerra sistemática contra toda forma de resistência camponesa. Durante as estações mais secas da Amazônia, o número de queimadas dispara, muitas delas resultantes de incêndios criminosos. Em 2023, uma escola indígena em Santarém foi completamente destruída por um incêndio durante a madrugada. Construída com esforço coletivo e apoio da Prefeitura, a escola perdeu cerca de 30 carteiras, um gerador e toda sua estrutura. Dias antes, outro incêndio já havia consumido o galpão onde eram produzidas as mobílias dessas escolas.

O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) fez um diagnóstico da educação:

“Verificamos, por meio dos dados, que a educação escolar indígena não existe como política. Esta área se parece com um pano remendado em que cada qual, a partir de suas regiões e escolas, busca costurar seu próprio remendo, em geral com panos velhos. Ou seja, falta quase tudo: não há escolas, os professores não recebem apoio nem formação e não há uma conexão entre o Ministério da Educação (MEC) e as secretarias estaduais. O abandono parece ser a palavra que exprime bem o descaso educacional.”

Os relatos se repetem ao longo dos anos, compondo um cenário contínuo de abandono sistemático. Falta infraestrutura escolar básica e professores, muitos dos quais trabalham voluntariamente. Pais e alunos demonstram criatividade para improvisar recursos e viabilizar minimamente o ensino. Há escolas sem manutenção, com telhados de palha, sem paredes, sem cadeiras; crianças sentam-se em troncos cortados, e o material escolar chega com meses de atraso, além de a merenda ser levada por professores e acabar estragando. Aulas são ministradas ao ar livre, embaixo de árvores, quando o sol e a chuva permitem. Faltam banheiros, água encanada, energia elétrica e internet. E, quando a escola é instalada em um prédio de alvenaria, a estrutura é precária, sem portas, com teto rachado, colocando a segurança dos alunos e professores em risco.

A grande maioria das crianças só começa a falar português quando sai da aldeia. Até hoje, a imposição do português como única língua de ensino continua sendo um instrumento de apagamento cultural e dominação. O ensino culturalmente diferenciado só foi conquistado com a Constituição de 1988, que garantiu um sistema escolar autodeterminado. Mas a ausência dessas aulas diferenciadas permanece um grande problema, pois pouquíssimas escolas trabalham com a língua materna e as tradições de cada nação. Além disso, faltam professores qualificados e material didático específico. Em muitas regiões, os povos indígenas lutam pela terra ou pelo reconhecimento de sua identidade étnica. E a negação do direito à educação escolar específica e diferenciada os submete a violências racistas e preconceituosas nas escolas urbanas. Esses casos se agravam ainda mais devido à ausência de professores com formação indígena.

O golpe contra os professores e as comunidades tradicionais veio de um governador que se apresenta como defensor da Amazônia e do clima em eventos internacionais. Um hipócrita que vende a imagem de sustentabilidade enquanto perpetua a opressão. Estamos às vésperas de Belém sediar o maior evento climático do mundo – a COP30 – em novembro de 2025. E qual foi a motivação de Barbalho para sancionar a Lei 10.820? Reduzir gastos com serviços públicos e transferir para os trabalhadores e as populações mais vulneráveis a fatura da crise do capitalismo. Alguém ainda se surpreende com o clã dos Barbalho, família que está no poder há muito tempo, cometendo todo tipo de política em favor do capital?

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A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) assegura que o Estado deve consultar os povos interessados sempre que uma medida possa afetá-los diretamente. O Ministério Público Federal (MPF), em dezembro, chegou a pedir que o governo suspendesse a aplicação da metodologia remota na educação indígena no Pará. Mas sabemos que a legalidade burguesa se molda aos interesses dos governos. Barbalho ignorou o MPF e continuou desmontando a educação indígena sem ao menos abrir diálogo. O MDB, partido de Barbalho, havia conseguido uma grande vitória nas eleições municipais de 2024, elegendo 58% dos 144 prefeitos do Pará, além de garantir maioria aliada nas Câmaras Municipais e na Assembleia Legislativa. Isso fez o “Rei do Norte” achar que era rei de fato. É detestável como essas oligarquias se tornam mais autoritárias quanto mais poder acumulam. A violação do direito à consulta livre e prévia foi flagrante.

A corrente Movimento Esquerda Socialista (MES-PSOL) publicou editorial e artigos sobre o tema. Contextualizaram o combate e defenderam as bandeiras do movimento, mas passaram pano para Lula e Sônia Guajajara (PSOL), estes nem sequer foram citados nos textos do MES. Lembramos que Barbalho se sentiu forte para desferir este golpe porque goza do apoio do PT em seu governo. Uma das manobras do governador foi prometer manter a Lei 10.820, revogando apenas os artigos da educação indígena, enquanto preparava uma lei específica com promessa de diálogo com o movimento. Mas o movimento que ocupava a Secretaria de Educação recusou essa manobra. Foi quando o governador lançou mão da tática velha e nefasta de colocar indígenas contra indígenas. Participaram da manobra a Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará (Fepipa), a OAB, o Poder Judiciário e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) de Sônia Guajajara. O MES-PSOL se esqueceu de criticar como o governo Lula e Sônia Guajajara se prestaram a esse papel de divisão e traição do movimento, aceitando migalhas e fechando um acordo rebaixado.

Após o “acordo”, Barbalho publicou um vídeo oficial nas redes sociais, mentindo que a ocupação da Secretaria pelos povos indígenas havia começado por conta de uma desinformação, uma fake news, e que já havia firmado acordo com sete de oito povos indígenas, atendendo 100% das suas reivindicações. O vídeo foi tão nojento que a Justiça determinou sua retirada do ar e concedeu o direito de resposta com um vídeo de igual duração dos povos que ocupavam a Secretaria. A pergunta é: de que lado estava Sônia Guajajara? Se colocou ao lado de Barbalho para atacar, isolar e enfraquecer o movimento, mas não conseguiu, a organização popular com uma determinação incrível falou mais alto.

Após a vitória da revogação da Lei, o PCBR afirmou que faltava demitir o secretário de Educação. Jones Manoel fez vídeos dizendo: “Não acabou a luta ainda, falta demitir Rossieli”. Criticamos essa posição como rebaixada diante da dimensão que a luta tomou. A demissão de Rossieli era levantada pelos movimentos sociais desde o início. Ele é ex-secretário de Doria, ex-ministro do MEC de Michel Temer, é um organizador da destruição da educação pública e da repressão aos sindicatos. Mas hoje a situação é diferente. A vitória pela revogação colocou o governador nas cordas. É inegável que o desdobramento da luta passa agora pelo Fora Barbalho.

Ninguém duvida de que a motivação de Barbalho com a Lei 10.820 foi econômica, portanto, o ajuste nas contas do Estado às custas dos trabalhadores vai continuar. E, assim como a luta indígena, quilombola e ribeirinha convergiu com a luta dos professores, as lutas que virão poderão convergir com os demais sindicatos, com o movimento estudantil e a classe trabalhadora. Os companheiros do PCBR e demais organizações de esquerda precisam compreender que o Fora Barbalho é a palavra de ordem das próximas vitórias. É capaz de unificar ainda mais explorados e oprimidos e colocar em xeque a continuidade dessa oligarquia no poder. Os trabalhadores são capazes de ir mais longe.

A ocupação da Secretaria de Educação começou no dia 14 de janeiro e durou 30 dias. Ela foi composta inicialmente por 150 e alcançou 500 lideranças indígenas de 20 etnias, entre elas Munduruku, Wai Wai, Tembé, Arapiun e Tupinambá. Alguns caciques viajaram de barco por 5 dias até Belém. O governo fez de tudo para intimidar a ação direta: cortou água, energia, cercou o edifício com as forças de repressão, colocou gás lacrimogêneo nos banheiros, impediu a entrada de comida, iluminava as mulheres com lanternas à noite, além de tentar a reintegração de posse na Justiça. Mas nada disso desgastou o bravo movimento. Quanto mais ataques do Estado recebiam, mais apoio da população agregavam. Receberam doações de roupas, barracas, redes, remédios e foram cercados por solidariedade de centenas de organizações regionais e nacionais, de parlamentares, de artistas e grupos acadêmicos do Brasil e do mundo.

Os indígenas que ficaram nas comunidades também continuaram o combate. Lá, onde enfrentam o perigo diariamente contra garimpeiros, grileiros e o Estado, bloquearam por vários dias diversas rodovias. A BR-163 ficou 13 dias bloqueada em Santarém, assim como a BR-153 na divisa entre Pará e Tocantins. A Prefeitura de Tomé-Açu foi igualmente ocupada. Enquanto Barbalho não recuou, o movimento prejudicava o fluxo de mercadorias nos portos e aeroportos. Eles foram sagazes para intimidar as forças de repressão com a comunicação popular nas redes sociais. A polícia preferiu não agir diante dos olhos do mundo, que se voltam para Belém devido à COP30.

E, se, num canto de Belém e no interior do Pará, combatiam os guerreiros indígenas e quilombolas, no outro canto combatiam os guerreiros professores. O Sindicato das Trabalhadoras e dos Trabalhadores em Educação Pública do Estado do Pará (Sintepp) já vinha enfrentando a brutalidade da repressão policial desde dezembro ao denunciar o desmonte da educação em manifestações de rua. E, em janeiro, realizou um movimento incomum e bastante avançado. Após a ocupação da Secretaria de Educação, fez uma assembleia lotada e, mesmo durante as férias, os professores deflagraram greve. Ou seja, iniciariam o ano letivo, em fevereiro, em greve em todo o Pará.

Na pauta estava centralmente a revogação da Lei 10.820, que rebaixava a remuneração dos professores, e mais de 30 reivindicações, como concurso público, pagamento do piso salarial, pagamento de insalubridade às merendeiras e periculosidade aos vigias. A entrada em cena da classe trabalhadora com seu sindicato e seus métodos de combate foi fundamental para a vitória. O movimento que ocupava a Secretaria renovou seu fôlego e se sentiu mais fortalecido. Indígenas, quilombolas, ribeirinhos e professores marcharam juntos em atos nas ruas de Belém. Juntos, fizeram um profundo diálogo com a população da capital, explicando por que a educação estava em greve e por que a Lei 10.820, que instituía um novo Estatuto do Magistério, deveria ser revogada. Isso jogou um grande peso na situação política, porque a máquina estatal e midiática do Galã da COP30 estava acusando os indígenas de vândalos e de depredar os prédios públicos, entre outras barbaridades.

Esse episódio revela o esgotamento da Frente Ampla de Lula em alianças com políticos de direita, como Helder Barbalho. A Frente Ampla não se sustentou diante do movimento de massas. Um grande movimento social, com diversas entidades, teve participação ativa das bases, construiu sólidas alianças com sindicatos e encurralou Barbalho num canto, como se encurrala um inseto asqueroso. Passaram por cima das direções burocráticas das suas próprias entidades quando estas se venderam por migalhas. E não criaram ilusões de que a COP30 vai ajudar, ou que a palavra de ordem de defesa da democracia responde à situação.

Essa luta também é uma lição aos dirigentes e correntes políticas que dizem que hoje não é possível obter vitórias. Os trabalhadores podem, sim, conquistar mais direitos e avançam sempre quando conseguem construir um movimento anticapitalista claro e afastam das direções do movimento aqueles que disseminam desânimo e não confiam nas próprias forças.

O próximo passo é o Fora Barbalho!