Publicamos a primeira parte desta contribuição ao debate marxista sobre a relação entre literatura e luta de classes, apontando para a necessidade de compreender a influência das condições materiais da sociedade sobre a produção cultural e o método para realizar sua crítica.
Da Redação
Nos tempos atuais, em que o conceito de crítica cultural é pautado pela ideia de “cancelamento”, as seguintes palavras de Friedrich Engels evitariam a confusão teórica de muitas pessoas sobre o modo de julgar e apreciar uma obra de arte e o modo como ela se relaciona com seus produtores:
O fato de Balzac ter sido forçado a ir contra as próprias simpatias de classe e contra seus preconceitos políticos, o fato de ter visto o fim inelutável de seus tão estimados aristocratas e de os ter descrito como não merecendo melhor sorte, o fato de ter visto os verdadeiros homens do futuro no único local onde, na época, podiam ser encontrados – tudo isso eu considero como um dos maiores triunfos do realismo e uma das características mais notáveis do velho Balzac (MARX & ENGELS, 2012. p. 68-69).
Para os que não acompanham os artistas nas redes sociais como Twitter, Instagram e Facebook, é preciso explicar que existe uma nova significação dada à palavra “cancelamento” nos últimos anos, que viralizou com o BBB21 e com a polêmica em torno da cantora Karol Conka. A participante do reality show foi eliminada com recorde de rejeição do público e teve uma série de contratos cancelados, além de ter tido uma grande perda no número de seguidores nas redes sociais.
“Cancelar” alguém significa rejeitá-lo a partir de seus posicionamentos morais e políticos geralmente expressos ou vistos fora da cena artística propriamente dita. No caso da Conka, o cancelamento se deu porque ficou claro para grande parte de seus seguidores que não basta ser uma mulher negra para não ter preconceitos classistas, racistas, homofóbicos e mesmo machistas. É claro que os produtores do programa, cientes da falácia das políticas identitárias, resolveram se aproveitar disso colocando celebridades negras e proletários negros para rivalizarem, o que culminou no pedido de saída do programa por parte de um participante alegando forte pressão psicológica. Isso depois de ter sido humilhado em rede nacional pela Conka e hostilizado por uma outra participante, por ter beijado outro homem. Ironicamente esse participante desistente, o Lucas, ganhou o contrato da Avon perdido pela Karol.
A partir desse momento, nas redes sociais, começou-se a boicotar a obra da cantora. Não é nosso objetivo julgar a qualidade de sua produção cultural, mas destacar como a ideia de “cancelamento” funciona, em que o trabalho do artista é julgado puramente pelo que está fora do seu produto. Em acordo com esse método, se observarmos o trecho acima de Engels, podemos afirmar que, se Balzac participasse do BBB, com certeza ele seria cancelado na primeira semana pela maioria dos estudantes e professores das universidades que se consideram de esquerda ou progressistas (termo completamente anacrônico na época do imperialismo, diga-se de passagem).
O mesmo cancelamento recairia em autores como Monteiro Lobato, por ser racista, com Lima Barreto, por defender o retorno da monarquia, ou Machado de Assis, por ser cético quanto à abolição da escravatura, ou ainda Caetano Veloso, por ser antileninista e por ter supostamente tido uma relação pedófila com a mãe de alguns de seus filhos. É comum entre os anticapitalistas românticos ter uma posição política mais atrasada do que a sua própria obra artística. É essa superação que Marx e Engels chamaram de triunfo do realismo, que impregna autores não apenas do campo literário. No entanto, no tribunal rebaixado do idealismo pós-moderno quase nada sobraria da cultura e conhecimento científico produzido pela humanidade durante sua história. Além de não levarem em consideração, em seu julgamento, a luta de classes, como é o caso da dialética materialista, não aplicam também o seu método, que é muito mais refinado e sensível à materialidade do próprio produto final do trabalho do artista.
Os fundamentos da posição de Engels e Marx, portanto, da dialética materialista, estão fincados na clareza de que a literatura e demais elementos da superestrutura não refletem diretamente a realidade, nem são meros efeitos retardatários da infraestrutura econômica ou das crenças de um escritor. É nesse sentido que, escrevendo em cartas contra a vulgarização do materialismo, Engels afirmou que Hobbes foi o primeiro materialista, apesar de seu posicionamento político retrógrado de defesa da monarquia, e que as contribuições de Locke não poderiam ser “canceladas” (para usar um termo atual) pelo fato de ele ser religioso e politicamente comprometido com as classes dominantes. Nada disso os impediu de ver o triunfo do realismo de seus adversários políticos e absorvê-los numa atitude dialética.
Estrutura e superestrutura no julgamento literário
Julgar de acordo com a dialética materialista, sob nenhum ponto de vista, quer dizer afirmar que o elemento econômico não seja determinante, em última instância, para a produção de conhecimento e cultura, o que se diz é que essa relação não é direta e especular, pois, assim como no direito e na filosofia, o curso do desenvolvimento ideológico “pressupõe determinado material intelectual herdado do passado e no qual encontra seu ponto de partida” (MARX & ENGELS, 2012. p. 106). Engels continua, em sua carta a Conrad Schmidt:
a supremacia [da economia] se impõe e opera no interior de condições impostas pela esfera particular: em filosofia, por exemplo, por efeito de influências econômicas (que também aqui só se dão, em geral, sob disfarces políticos) sobre o material filosófico existente transmitido pelos predecessores. A economia não cria aqui nada de novo, mas determina a forma em que o material intelectual existente é alterado e desenvolvido – e também isto, na maioria das vezes, indiretamente, porque são os reflexos políticos, jurídicos e morais os que exercem maior influência direta sobre a filosofia (MARX & ENGELS, 2012. p. 106).
É justamente essa relação indireta com a tradição de um determinado campo do saber e de modo enviesado com o desenvolvimento econômico que permite que “países economicamente atrasados podem desempenhar o papel de primeiro violino em filosofia: a França do século XVIII em relação à Inglaterra, sobre cuja filosofia se apoiaram os franceses, e, mais tarde, a Alemanha em relação a ambas” (MARX & ENGELS, 2012. p. 106). Engels ainda explica o seguinte:
“O desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico etc. se funda no desenvolvimento econômico. Mas estes elementos interagem entre si e reatuam também sobre a base econômica. Não é que a situação econômica seja a causa e a única atuante, enquanto todo o resto seja efeito passivo. Ao contrário, há todo um jogo de ações e reações à base da necessidade econômica, que, em última instância, se impõe” (MARX & ENGELS, 2012. p. 104).
Trata-se de um desenvolvimento desigual e combinado, que faz com que países atrasados saltem de uma fase a outra ou combinem e condensem elementos de tempos diversos para produzir uma expressão autêntica e inovadora. No caso do Brasil e demais países da América Latina, o choque entre o arcaico e o moderno produziu efeitos sobre toda a produção cultural, desde o barroco de Gregório de Matos à Tropicália de Caetano, Gil, entre outros.
Foi assim, aliás, que países atrasados produziram excelentes escritores que viriam a ocupar o centro da cena literária mundial, tal como o português Fernando Pessoa, os argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, ou os brasileiros Oswald de Andrade, Carlos Drummond, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, sem contar outros hermanos latino-americanos como Juan Carlos Onetti, José Donoso, Garcia Marques e por aí vai… A lista é longa, mas é evidente o contraste entre os avançados produtos culturais e os atrasos sociais e econômicos de cada um desses países.
A literatura reflete a realidade?
A ideia de que a literatura é uma reflexão da psiquê de um autor ou da economia tem suas raízes na crítica impressionista do século XIX, teoricamente alinhada ao conceito de “mímesis” de Platão, em cuja topografia essencialista, colocava a poesia como duplamente afastada da verdade. De maneira simplificada pode-se dizer que o primeiro afastamento (a primeira imitação/mímesis) é o seguinte: a verdade estaria nas formas imutáveis, as ideias, das quais derivam as formas sensíveis; o segundo afastamento (a segunda imitação/mímesis) seria o seguinte: a poesia imita as formas sensíveis e por isso está duplamente afastada a verdade.
O conceito de “mímesis” foi traduzido para o mundo romano como “imitatio”, retomado pelos renascentistas, e recalcado pelos românticos, pois havia sido compreendido como imitação dos antigos moldes e padrões clássicos com um conteúdo contemporâneo, não raro mesclando elementos pagãos e cristãos como o fizeram Dante Alighieri, John Milton, entre outros. De qualquer forma, os românticos e junto com eles o próprio Idealismo Alemão rejeitaram esse conceito em prol da liberdade individual, atenta à centralidade que o indivíduo e a nação moderna tomavam no desenvolvimento do capitalismo.
Embora rejeitassem o conceito de “mímesis”, a produção romântica não se distanciava dele na prática, pois a mecânica imitativa apenas mudava de configuração, já que o mundo das ideias era substituído por outros mundos não menos ideais, como o espírito nacional e o próprio indivíduo. Essas tendências gerais do romantismo eram, não raro, superadas pelas próprias obras produzidas, gerando o efeito de triunfo do realismo que permite ainda hoje que nós tenhamos notícia sobre a realidade do século 19 por meio dessas obras literárias.
Pensando menos na produção romântica e mais na reflexão teórica e crítica sobre literatura podemos observar a raiz teórica de muitos dos vulgarizadores do materialismo dialético no campo da cultura e da literatura que não compreendem a relação entre infraestrutura e superestrutura. De igual modo, é romântica a crítica cultural baseada na ideia de “cancelamento”. Em ambos os casos, a crítica literária não conseguiu sequer absorver o passo seguinte na reflexão grega sobre a literatura, isto é, não chegou nem ao pensamento de Aristóteles e na posição diversa que ele concede à mímesis poética.
Gostaria de destacar duas questões da Poética de Aristóteles que são avanços para a reflexão crítica e teórica em relação a Platão:
1) Aristóteles reconhece na mimesthai, na mímese, no ato de imitar, um modo central do ato de conhecer humano. Nas palavras do filósofo:
“[…] É possível perceber que toda a poética tem na sua origem duas causas, ambas naturais. De fato, no ser humano a propensão à imitação é instintiva desde a infância, e nisso ele se distingue de todos os outros animais; ele é o mais imitativo de todos, e é através da imitação que desenvolve seus primeiros conhecimentos” […] (ARISTÓTELES, 2011, p. 44 – Cap. 4).
2) ele diferencia a Poética da história e da filosofia, afirmando que
“A diferença está no fato de o primeiro [o discurso da história] relatar o que aconteceu, enquanto o segundo [a poesia], o que poderia ter acontecido. Consequentemente, a poesia é mais filosófica e mais séria do que a história, pois a poesia se ocupa mais do universal, ao passo que a história se restringe ao particular” (ARISTÓTELES, 2011, p. 55).
Como afirma o crítico Northrop Frye, em seu livro Anatomia da Crítica, nada de muito novo havia sido feito na teoria literária desde Aristóteles até o começo do século 20, quando surgem de fato uma série de teorias que vão buscar sistematizar uma ciência moderna da literatura, a começar pelo Formalismo Russo, que floresceu entre os bolcheviques, pela Nova Crítica inglesa e norte-americana e pelo Estruturalismo francês. Mas antes de partirmos para alguns avanços e recuos da produção literária e da teoria literária no século 20, observemos o quanto Engels se afasta dessa visão platônica da literatura como reflexão rebaixada da infraestrutura:
“De acordo com a concepção materialista da história, o fator que em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu jamais afirmamos mais do que isto. Se alguém tergiversa, fazendo do fator econômico o único determinante, converte esta tese numa frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos fatores da superestrutura que se erguem sobre ela […] exercem também sua influência sobre o curso das lutas históricas e determinam, em muitos casos predominantes, a sua forma” (MARX & ENGELS, 2012, p. 103).
A literatura foi determinante para o curso das lutas históricas?
Essa afirmação de Engels, como ele mesmo aponta, deve ser observada e comprovada por meio de uma avaliação materialista da história da cultura e não é difícil observar sua vasta comprovação. Voltando mais uma vez para a reflexão grega antiga, ponto de partida para muitas disciplinas científicas, é importante dizer que a crítica feita por Platão à poesia, que desemboca na expulsão do poeta de sua República, precisa ser mais bem contextualizada para se observar a relação que seu pensamento tem com as transformações sociais pelas quais passavam os gregos.
A poesia da qual Platão fala tem muito pouco a ver com a poesia que temos hoje se compararmos os contextos de produção e circulação desses materiais, além do próprio status da poesia. A poesia tinha um valor de verdade que hoje se atribui aos meios de comunicação em massa, como os jornais e demais influenciadores da opinião pública. A audiência de um poeta arcaico, portanto, era proporcionalmente muito maior do que a de um poeta contemporâneo, além do que não se esperava dele a construção de imagens ficcionais, mas o desvelo da própria verdade (alétheia = des-velar; des-esquecer; lembrar, trazer à luz); isso incluía a disseminação programática da ideologia da classe dominante, a aristocracia guerreira. O poeta moderno não tem essa audiência, além do que a obra literária possui uma autonomia relativa em relação à realidade, que foi um dos progressos contraditórios proporcionados pela divisão social do trabalho dentro do modo de produção capitalista.
Ou seja, entre Homero e Drummond há talvez mais diferenças do que semelhanças, de tal modo que vale se perguntar se podemos usar a mesma palavra para designar seus produtos (sua poiese). A poesia de Homero é o primeiro registro escrito de uma série de mitos e cantos advindos da poesia grega arcaica, que teve seu ponto alto no século 12 antes de Cristo, em um período em que os gregos não conheciam o utensílio alfabeto, a não ser uma escrita altamente complexa, chamada Linear B, usada estritamente para fins burocráticos.
A escrita linear B servia apenas para auxiliar os altos funcionários e servidores do palácio. A emergência do “utensílio alfabeto” acompanhou o processo de esclarecimento contrário ao obscurantismo que restringia os saberes a uma classe muitíssimo pequena. Isso ocorre sobretudo pelo seu reduzido número de caracteres bem definidos e por seu ajuste à pronúncia, dados que facilitaram seu aprendizado e sua disseminação. Marcel Detienne, em A invenção da mitologia, sugere que a ascensão da escrita estaria ligada à democratização, já que o primeiro ato dos legisladores foi escrever as decisões tomadas na assembleia para que todos os cidadãos pudessem ter acesso: “[…] As leis, diz Sólon, eu as escrevo (gráphein) tanto para o bom como para o vil […]” (DETIENNE, 1998, p. 62-63).
Justamente por não terem uma cultura escrita, o poeta ocupava um papel central, pois com sua poesia resguardava a memória e as tradições do povo, além de ser o receptáculo de alguns conhecimentos sobre a guerra, por exemplo. A poesia nesse contexto tinha um papel ideológico muito claro, com vistas a apaziguar as diferenças entre escravos, homens, mulheres e guerreiros, que mais tarde iria se agravar e provocar o surgimento de um outro gênero: a tragédia.
A aristocracia guerreira era o grupo mais avançado em termos de organização e inclusive foram os primeiros a experimentar algo de democrático em suas assembleias deliberativas e jogos fúnebres. O ato que ficou famoso na ágora grega de ir ao centro para disputar a opinião dos pares teve ali o seu gérmen. Também foram as guerras expansionistas que possibilitaram aos gregos a descoberta do alfabeto sírio-fenício que foi usado por Homero para a escrita da Ilíada e da Odisseia.
A poesia era vista como a própria verdade e a palavra do poeta era como uma parte da natureza (physys). No entanto, na medida em que a aristocracia guerreira perdia força, e ascendiam os hoplitas e mercadores não nobres, que enriqueciam com as colônias das cidades gregas, surgiam as formas jurídicas que posteriormente viriam a caracterizar a democracia grega.
A palavra do poeta foi questionada, assim como toda sua justificação das injustiças e desmandos cometidos pelas classes dirigentes. É nesse contexto de transformação social, passando pela reforma hoplita e demais revoltas que pressionavam a partir da base da sociedade, que surgiu a tragédia (Eurípedes, Sófocles…), a filosofia (Platão e Aristóteles) e a história (Heródoto e Tucídides), entre os séculos 6 e 4 a.C. Portanto, existe um inconsciente político na crítica platônica da poesia, que age sobre a ilusão do real produzida pela poesia arcaica e pela epopeia, desvelando o papel de persuasão e engano do canto do poeta.
Existe no século 6 antes de Cristo um contexto de pressão social que incide mais intensamente em Atenas justamente por ser uma cidade que não desenvolveu grande aptidão guerreira e que, como consequência, tinha apenas uma colônia. Por essas limitações, o medo da escravidão por dívida e da perda da propriedade entrava em contradição com a concentração das riquezas numa aristocracia cada vez mais ávida por elogios pomposos.
É nesse contexto, por outra via e um pouco antes de Platão, que surgiram os concursos trágicos propondo um diálogo entre a velha lei (Diké), dos deuses, e a nova lei, dos homens. Eis um dos debates centrais da Trilogia tebana (Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona) de Sófocles, um texto totalmente impregnado dos novos termos jurídicos que emergiam na cidade-estado grega. A tragédia é vista por alguns teóricos da literatura como a primeira manifestação mimética cujo efeito é laico, embora fosse encenada em ritos religiosos (COSTA LIMA, 2003; VERNANT & VIDAL-NAQUET, 2008).
Longe de resolver essas questões, a lembrança do contexto da crítica de Platão à poesia, além de esclarecer alguns equívocos sobre a visão da literatura como mero reflexo da realidade exterior ao texto, serve justamente para comprovar a tese de Engels sobre a influência da literatura no curso das lutas. Junto a isso, é importante compreender as transformações internas na produção e circulação de poesia para não apenas reproduzir o senso comum de que existe uma essência comum entre produções literárias da Grécia Arcaica e as produções contemporâneas.
Durante a idade média na Europa a literatura voltou a ter um papel mais estritamente ideológico de submissão à religiosidade, mas os poetas estavam longe de ter o poder de outrora. De qualquer forma, o pouco de autonomia que a literatura havia ganhado com a tragédia parece ter regredido durante a Idade Média.
Conclusão parcial
Começamos o texto por nos perguntar sobre o julgamento crítico baseado nas posições políticas e morais externas ao texto literário e, como contraposição, apresento a visão materialista da literatura, ou ao menos alguns passos nessa direção, tendo a clareza de que, de modo algum, a literatura pode ser reduzida a uma mera imitação da base econômica da sociedade, muito embora em última instância seja determinada por ela. Por esse caminho, podemos, é claro, confirmar que as ideias dominantes de um período são as ideias da classe dominante. Nas palavras de Marx e Engels:
“As ideias da classe dominante são as ideias dominantes em cada época; ou, dito em outros termos, a classe que é o poder material dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, o poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe também dos meios para a produção e, por isso, as ideias dos que carecem dos meios necessários para a produção espiritual estão geralmente subordinados à classe dominante” (MARX & ENGELS, 2012, p. 113).
Na contramão dessas ideias dominantes está o triunfo do realismo, que significa a capacidade da obra literária superar as posições políticas da classe dominante e triunfar sobre as condições econômicas atrasadas do país em que florescem. Esse triunfo, portanto, permite ao artifício literário superar as tendências que dominam uma época e fazem com que escritores comprometidos com a classe dominante anunciem ou contribuam, contraditoriamente, para o seu fim. Se considerarmos a influência da literatura produzida por autores burgueses ou pequeno-burgueses em revolucionários como Marx, Engels, Trotsky e Lenin fica clara essa dialética, na qual, cedo ou tarde um elemento pode se transformar no seu contrário. Aliás essa é uma das formas de encarar o surgimento do marxismo, sobretudo no que ele tem de inversão da dialética idealista, e de superação da filosofia em sua tarefa de descrever a realidade, em direção à sua transformação, além da superação do socialismo utópico.
Portanto, uma visão dialética materialista sobre os produtos culturais nos permite julgar a obra de Karol Conka não por seus preconceitos, mas por sua qualidade ou não dentro da tradição em que se inserem, assim como não podemos julgar a obra de Caetano Veloso por ele ter cometido pedofilia ou por ser a vida toda antileninista (e agora stalinista graças ao Domenico Losurdo!!!). Portanto, se ao crítico literário marxista não cabe essa visão da literatura como reflexão de algo exterior à literatura, afinal, qual é sua visão e papel?
Podemos apontar alguns caminhos que estão longe de se fechar, mas, diante da ideia do “cancelamento”, é fundamental resguardar as obras literárias da própria visão política limitada de autores e leitores que costumam enclausurá-las numa redoma estéril. Nesse sentido, também é papel do crítico liberar a potência intrínseca à literatura de conhecimento da realidade no que ela difere dos demais campos do saber, mas sobre isso vou trabalhar mais no próximo texto dessa série.
Foi essa abertura da literatura, que Engels denomina de triunfo do realismo, o que permitiu a Balzac desenhar um homem ainda por vir, homens do futuro, tal como afirma no seguinte trecho com o qual concluímos brevemente a reflexão:
“Claro que, por suas concepções políticas, Balzac era um legitimista. Sua grandiosa obra é uma permanente elegia acerca da irremediável decomposição da alta sociedade; suas simpatias estão com a classe condenada a desaparecer. […] Considero uma das maiores vitórias do realismo, um dos traços mais valiosos do velho Balzac, é que ele se viu forçado a escrever contra as suas próprias simpatias de classe e preconceitos políticos, que tenha visto o caráter inevitável da ruína dos seus aristocratas prediletos e os tenha descrito como homens que não mereciam sorte melhor e que visse os verdadeiros homens do futuro precisamente onde eles se encontravam” (ENGELS, 2012. p. 68-69).
No próximo texto vou me concentrar no modo como capitalismo e literatura se aliaram e no quanto a transformação do próprio termo “literatura” se relaciona com as transformações materiais daquela sociedade.
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2011.
DETIENNE, Marcel. A invenção da mitologia. Trad. André Telles e Gilza Saldanha da Gama. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília, D. F.: UnB, 1998.
______. Mestres da verdade na Grécia arcaica. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.
LIMA, Luiz Costa. Mímesis e modernidade. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. Trad. José Paulo Netto e Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Trad. Anna Lia A. de Almeida Prado, Filomena Y. H. Garcia, Maria da Conceição M. Cavalcante, Bertha H. Gurovitz e Hélio Gurovtz. São Paulo: Perspectiva, 2008.