Mariátegui e a Revolução Permanente

Diante da vitória de Pedro Castillo nas eleições presidenciais do Peru, coloca-se a necessidade refletir sobre o papel político e as elaborações teóricas de José Carlos Mariátegui. O partido de Castillo, chamado Peru Libre se reivindica “marxista-leninista-mariateguista”. No texto que segue, originalmente publicado na revista América Socialista em 2012, faz-se uma detalhada análise das contribuições de Mariátegui ao marxismo e sua compreensão sobre a revolução em âmbito internacional. Mostra-se, em especial, as muitas convergências entre suas elaborações e aquelas defendidas por Trotsky, ainda que, quando Mariátegui desenvolveu sua militância marxista mais ativa, o acesso aos textos de Trotsky era ao máximo dificultado pela direção stalinista da Internacional Comunista. Além disso, considerando o limitado programa defendido por Castillo e por Peru Libre, é fundamental apontar o quanto o reformismo nacionalista do partido vencedor nas recentes eleições peruanas não tem qualquer relação com a perspectiva revolucionária de Mariátegui, sendo no máximo um exemplo das deturpações que as ideias desse fundamental militante e dirigente marxista sofreram desde sua morte em 1930.

Da Redação

“A revolução latino-americana será nada mais e nada menos que uma etapa, uma fase da revolução mundial. Será simples e puramente a revolução socialista” (Mariátegui, “Aniversário e balanço”).

Um grande paradoxo envolve o pensamento de José Carlos Mariátegui. O homem que buscou o caminho da revolução latino-americana sem copiar outras experiências de emancipação, compartilhou, reproduziu o destino de outros grandes revolucionários: perseguidos, caluniados e acolhidos com ódio em vida, para serem convertidos em ícones inofensivos “castrando o conteúdo de sua doutrina revolucionária” depois de sua morte. Esse seu famoso chamado para construir a revolução latino-americana como “criação heroica” e não a repetição ao pé da letra de exemplos revolucionários que irradiavam da Europa tem sido utilizado para impulsionar o estudo da realidade concreta de nossa América, como Mariátegui queria e fez aplicando de maneira brilhante o método do marxismo, porém para cometer cegamente os mesmos erros que se havia cometido em outros lugares, perseguindo utopias reformistas.

As contribuições de Mariátegui conserva toda sua força e segue sendo imprescindível para aqueles que enfrentam os grandes problemas da revolução latino-americana, suas características e destino, além de suas peculiaridades como a questão nacional indígena. Mariátegui cometeu erros muito comuns em sua época como a despreocupação com a cisão que amadurecia no Partido Comunista da União Soviética, a concepção do período Inca como “comunismo primitivo” ou ao abordar a questão nacional como uma questão de “raça”, uma concessão verbal a teorias positivistas e idealistas que, no entanto, não derruba sua visão concreta e política do problema.

Entretanto, a leitura atenta de suas obras não justifica a imagem de “marxismo romântico” com que se pretendeu liquidar com o marxismo peruano. Como disse uma vez Gramsci, Mariátegui demonstrava ser daqueles que aprendem um livro de cada vez e são melhores do que aqueles que esquecem um livro de cada vez.

Serve para ele o epitáfio que Lenin escreveu para Rosa Luxemburgo:

“Pode acontecer que as águias voem mais baixo que as galinhas, mas uma galinha jamais pode voar como uma águia”.

O caminho ao marxismo

Mariátegui nasceu em 14 de junho de 1894 em Moquena, no extremo sul do Peru, uma região agrícola e indígena, terra de pisco e minérios, a capital do cobre peruano. Sua família era muito humilde, sua infância pobre lhe obrigou a interromper os estudos muito cedo, apesar disso José Carlos se tornou um teórico fundamental do movimento operário peruano. Um acidente ocorrido aos 8 anos vai forçá-lo a passar sua breve vida sofrendo com problemas na perna esquerda, que foi posteriormente amputada. Ainda assim conseguiu começar uma carreira no jornalismo, inicialmente como ajudante linotipista e depois, em 1914, como colunista do La Prensa.

Em 1919, fundou com Cesar Falcón o jornal La Razón, cujas colunas continha propagandas de uma oposição radical ao governo de Leguía que tinha dissolvido o Congresso e se autonomeado Presidente provisório. O jornal La Razón foi fechado e alguns de seus redatores, entre eles Mariátegui, obtiveram bolsa de estudos para viajar para o exterior, que na verdade era condenação de exílio.

Assim, Mariátegui pôde viajar para a Itália onde chegou para viver o processo revolucionário lembrado como “biênio vermelho”, marcado por uma onda de greves operárias nas cidades do norte e ocupações de terras no centro e no sul.

Em 1920, após uma série de inúteis negociações por aumento salarial, a Conferência Geral da Indústria, a associação dos empresários italianos, decidiu recorrer ao bloqueio, o fechamento patronal das empresas. A organização sindical dos metalúrgicos (FIOM) respondeu com a ocupação das fábricas. Em torno de 400 fábricas no norte do país foram tomadas por operários armados e organizados em milícias de autodefesa (os guardas vermelhos) e em Conselhos de Fábricas, os organismos de poder operário que Gramsci tinha antecipado nas páginas da revista L’Ordine Nuovo (“Nova Ordem”) de Turim.

No entanto, nem a central sindical nem o Partido Socialista souberam aproveitar essa situação orientando, organizando e dirigindo o proletariado e os camponeses para tomar o poder, como fez na Rússia o Partido Bolchevique. Enquanto por um lado o Partido Socialista e a direção do sindicato negociavam com o governo, por outro lado os industriais e latifundiários intensificavam seu apoio às bandas fascistas de Mussolini, dispostos a ceder-lhe o poder político para resguardar o regime capitalista de exploração.

Os vacilos da direção política do proletariado semearam frustração na classe média, que, se bem no início simpatizava com a revolução socialista, foi logo se aproximando da demagogia fascista que combinava repressão violenta das organizações do movimento operário com uma fraseologia antiburguesa. Era a demagogia da ordem oposta ao caos provocado não pela revolução, mas, sim, por suas vacilações na hora de lançar-se à conquista do poder.

Em 1921, após um acordo que nunca foi implementado sobre o tema salarial e o controle operário que serviu para a direção reformista do PS desmobilizar a revolução, o próprio PS sofreu uma cisão onde as correntes com orientação soviética encabeçadas por Gramsci e Bordiga abandonaram o Congresso de Livorno para fundar o Partido Comunista da Itália.

Mariátegui viveu em primeira pessoa todos estes acontecimentos, relatando-os para os leitores peruanos do jornal El Tiempo de Lima. Em seus artigos, recopilados e publicados com o título de Cartas da Itália, Mariátegui se mostra neutro em relação aos fatos que vive e narra sem expressar suas convicções, ainda que manifestando uma profunda admiração por Gramsci e um grande interesse pelos assuntos que acompanharam a cisão de Livorno e a ascensão do fascismo. A experiência italiana será fundamental no aprendizado de Mariátegui, o familiarizará com questões centrais para o marxismo como a impossível colaboração de classes, a tática de frente única, a conquista do poder, a ameaça do fascismo.

Na Itália conhece também a mulher que será sua esposa, a genovesa Anna Chiappa. O período italiano completa um processo a amadurecimento e aproximação do marxismo que o próprio Mariátegui descreveu com estas palavras:

“Desde 1918, nauseado de política criola me orientei decididamente para o socialismo, rompendo com minhas primeiras tentativas literárias de cartas contaminadas por decadência e bizantinismo finiseculares em pleno apogeu”.1

Ainda na Itália, fundou a primeira Célula Comunista Peruana, junto a outros exilados como Falcón. Ao voltar ao Peru, começa seu trabalho febril de colunista e organizador político, primeiramente como diretor do Claridad, o jornal cofundado por Mariátegui e Victor Raúl Haya de la Torre – exilado no México – para depois ser o principal impulsionador e teórico da constituição do Partido Socialista Peruano em 1928 e da Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru no ano seguinte.

É justamente no ápice de sua atividade política que começam as fricções com a Internacional Comunista, em pleno processo de degeneração. Uma recaída da enfermidade que o tinha privado de uma perna e as manobras burocráticas do Bureau Político da Internacional na América do Sul impedem Mariátegui de enfrentar pessoalmente essa batalha política e por sua sobrevivência.

Mariátegui planejava participar da I Conferência Comunista Latino-americana celebrada em junho de 1929, em Buenos Aires, cidade em que pensava poder receber as curas necessárias para sua saúde. Inclusive em seus planos projetava passar um tempo em Buenos Aires e fazer dessa cidade a sede de sua revista Amauta. No entanto essa possibilidade lhe foi negada. Sua “Tese sobre o problema da raça” foi defendida por seu amigo Hugo Pesce e rejeitada pela Internacional. Nela, Mariátegui tratava de maneira absolutamente original o problema da questão indígena na América. A questão nacional tinha sido justamente uma das causas que desencadearam a cisão da Internacional Comunista. Aproveitando a enfermidade de Mariátegui, o então responsável da Internacional Comunista na América do Sul, Eudócio Ravinez assumiu a direção do Partido Socialista Peruano. Deixado sozinho para enfrentar seus problemas de saúde, Mariátegui seguia com seus planos de viajar a Buenos Aires, quando, ao final de março de 1930, foi internado na emergência no hospital de Lima onde morreu em 16 de abril com apenas 36 anos de idade. Um mês depois de sua morte, a direção do partido que Mariátegui tinha fundado decidiu mudar o nome para Partido Comunista Peruano. Por diferentes motivos, Mariátegui sempre tinha se oposto a mudar o nome do partido como exigia a Internacional Comunista. A mudança de nome do partido, decidido apenas por seus vértices, foi o repentino princípio de um processo de “desmariateguização”, de castração da força da doutrina revolucionária de Mariátegui para convertê-lo no ícone inofensivo da ideologia oficial da Internacional Comunista.

A degeneração da Internacional Comunista

Mariátegui não pode ser reivindicado organicamente por nenhuma das correntes que levaram à cisão da Internacional Comunista. Menos ainda pela corrente stalinista, que converteu primeiramente o partido mundial da revolução em uma agência de política externa em defesa dos interesses da burocracia no poder na URSS, para logo o liquidar em um extremo ato de submissão aos aliados durante a Segunda Guerra Mundial. O que interessa aqui é evidenciar como, pelo caminho da derrota de um pensamento original, independente através da aplicação do método marxista, Mariátegui tinha chegado às mesmas conclusões gerais que Lenin e Trotsky em relação à revolução nos países coloniais, enriquecendo-as do ponto de vista das peculiaridades da revolução latino-americana. A leitura da discussão entre Mariátegui e a Internacional Comunista, que o considerava um “herege” fora de controle, não deixa lugar para dúvidas a respeito dessa afirmação.

Foto: Domínio Público
Mariátegui subestimou e não compreendeu plenamente o processo de degeneração na Internacional. Ainda em 1925 escrevia “mas os resultados da polêmica [entre a Oposição de Esquerda de Trotsky e o bloco majoritário Stalin-Bukharin-Zinoviev, NdR] não vai gerar um racha. Os líderes da velha guarda bolchevique… já deram explicitamente sua adesão à tese da necessidade de democratizar o partido”.2 Essas afirmações e prognósticos estavam totalmente fora da realidade, uma realidade que Mariátegui, há que lembrar, nunca conheceu pessoalmente.

A Internacional Comunista foi fundada em 1919. Seus primeiros anos de vida foram anos de guerra civil, de luta pela defesa da Revolução Russa que passava inevitavelmente pela vitória da Revolução Mundial. Inclusive nessa situação objetivamente difícil a Internacional celebrou um Congresso a cada ano até 1922, congressos em que se discutiram e enfrentaram com a máxima democracia divergências nada secundárias, como, por exemplo, a questão da Frente Única e a revolução nos países coloniais. Depois da morte de Lenin a Internacional realizou seu V Congresso em junho de 1924 e seu VI Congresso somente em 1928, quatro anos depois, um período utilizado pela maioria no poder para liquidar a Oposição de Esquerda de Trotsky de maneira burocrática e impedindo qualquer contato com o resto da Internacional. As medidas excepcionais, ditadas em 1921 e no X Congresso do Partido Comunista da URSS, foram utilizadas para expulsar a Oposição de Esquerda e banir seus dirigentes. Naquele Congresso se decidiu vetar temporariamente a formação de correntes no interior do partido. No entanto, isso era, para Lenin, uma medida de caráter temporário e de interpretação flexível. Frente a uma moção apresentada por Riazanov que pretendia estender o veto a futuros congressos, Lenin se opôs com este argumento: “Este Congresso não pode tomar decisões vinculantes que afetariam as eleições no próximo congresso. Se as circunstâncias provocam desacordos fundamentais, como se pode proibir sua apresentação para a consideração do partido em seu conjunto? Não podemos!”.3

A discussão democrática tinha sido substituída pela manobra burocrática de uma direção mais atenta a cuidar de sua suposta infabilidade, seu prestígio e poder do que à formação e educação de quadros. A mesma seleção dos quadros que se ressentia. O servilismo e o oportunismo eram premiados acima de qualquer outra capacidade. Gramsci, em certo sentido mestre de Mariátegui, enviou em 1926 uma carta em nome da Oficina Política do Partido Comunista da Itália, na qual, justificando a linha da maioria do PCUS formada pelo bloco de Stalin – Bukharin com argumentos que estamos de acordo e cuja análise não podemos nos aprofundar aqui, apelava para a unidade do “partido dirigente da Internacional” em nome da qual expressava sua ingênua convicção de que Stalin não tinha recorrido a “medidas excessivas” com as expulsões. Este simples chamado junto a uma linha que Gramsci reconhecia que Trotsky, Zinoviev e Kamenev são os que “contribuíram poderosamente para nos educar para a revolução, nos corrigiram algumas vezes muito enérgica e severamente e têm sido nossos mestres”, foi suficiente para que sua carta nunca fosse lida pelo delegado do PCI na Internacional, Palmiro Togliatti que Gramsci considerava um medíocre e que Stalin promoveu a máximo dirigente da Internacional. Essa carta foi ocultada do próprio Partido Comunista da Itália até 1964.

Mariátegui e as “figuras” da Internacional Comunista

Mariátegui, ao contrário de Gramsci, não conheceu pessoalmente nenhum dos dirigentes da Internacional. É interessante destacar como o seu reconhecimento da cisão na URSS amadureceu na medida em que se pode documentar. O mesmo Mariátegui disse que só pôde ler El Nuevo Curso, o grande artigo com que Trotsky começou sua batalha no partido, focando na defesa de sua democracia interna. Ainda em 1925, no artigo antes citado, Mariátegui ecoa as calúnias feitas contra Trotsky. Considera-o líder de “uma facção ou corrente derrotada dentro do bolchevismo”, mais ainda que “não foi nunca um bolchevique ortodoxo. Pertenceu ao menchevismo até a guerra mundial… e somente em julho de 1917 entrou para o bolchevismo”; e concluía “a opinião de Lenin divergia da opinião de Trotsky a respeito dos problemas mais graves da revolução”. No entanto, apenas três anos mais tarde e no meio de sua própria disputa com a Internacional Comunista, Mariátegui corrige radicalmente sua abordagem escrevendo:

Trotsky, exilado da Rússia dos Sovietes: há aqui um evento que a opinião revolucionária do mundo não pode acostumar-se facilmente. Nunca admitiu o otimismo revolucionário a possibilidade de que essa revolução só concluiria, como a francesa, condenando a seus heróis… A opinião trotskista tem uma função útil na política soviética. Representa, se for para defini-la em duas palavras, a ortodoxia marxista, diante da descontrolada e rebelde influência da realidade russa. Traduz o sentido operário, urbano, industrial, da revolução socialista. A revolução russa deve seu valor internacional, ecumênico, seu caráter de fenômeno precursor do surgimento de uma nova civilização, ao pensamento de Trotsky… Lenin apreciava generosamente a inteligência e o valor da colaboração de Trotsky que, por sua vez, como testemunha o volume em que estão reunidos seus escritos sobre o chefe da revolução, acatou sem zelos nem reservas uma autoridade consagrada pela obra mais sugestiva e avassaladora para a consciência de um revolucionário. Mas se, entre Lenin e Trotsky pode apagar-se quase toda a distância, entre Trotsky e o próprio partido a identificação não poderia ser igualmente completa. Trotsky não contava com a confiança total do partido… sua posição singular – equidistante do bolchevismo e do menchevismo – durante os anos corridos entre 1905 e 1917, além de desconectá-lo das ferramentas revolucionárias com que Lenin preparou e realizou a revolução, teve que liberá-lo para a prática concreta de líder do partido”.4

No entanto, esse escrito de Mariátegui segue considerando que “na maior parte do que diz respeito à política agrária e industrial, à luta contra a burocracia e ao espírito NEP, o trotskismo é de um radicalismo teórico que não consegue concentrar-se em fórmulas concretas e precisas. Nesse terreno, Stalin e a maioria junto com a responsabilidade da administração, possuem um sentido mais real das possibilidades”.

A Oposição de Esquerda

Em 1928, apenas um ano depois do exílio de Trotsky e da expulsão da Oposição de Esquerda, os fatos se tinham encarregado de demonstrar a validez e a necessidade de sua batalha. “Já que em 1926, 60% de todo o trigo à venda estava nas mãos dos camponeses ricos, kulaks, que representava apenas 6% da população e acumulava um poder cada vez maior. Nesse ano, as provisões de trigo adquiridas pelo Estado tinham sido reduzidas de 428 milhões de pud (equivalente a 16 quilos) a 300 milhões”.5 O perigo de escassez nas cidades era iminente. A guerra civil, a Nova Política Econômica (NEP) e os erros da direção, alimentados pelas pressões de um aparato burocrático cada vez mais faminto e poderoso, tinham mudado a fisionomia do próprio partido. Como tinha denunciado a Oposição de Esquerda em sua plataforma de agosto de 1927, naquele ano “em 1º de janeiro apenas um terço do nosso partido eram trabalhadores de fábricas (na realidade, apenas 31%)… depois do XIV Congresso ingressaram no partido 100 mil camponeses, a maioria dos quais são camponeses médios… ao celebrar-se o XIV Congresso, 38% dos que ocupavam postos responsáveis e de direção em nossa imprensa eram pessoas que tinha vindo a nós de outros partidos”.6

Trotsky com membros da Oposição de Esquerda
Mariátegui não conhecia a plataforma da Oposição de Esquerda. Esse documento começou a circular fora da URSS apenas quando um delegado do Partido Comunista dos EUA encontrou uma cópia traduzida da mesma em sua carteira, colocada ali por engano por uma secretária da Internacional. Contrariamente à opinião expressa por Mariátegui, a plataforma continha uma análise realista e proposições concretas para reverter o processo degenerativo da URSS e resgatar sua direção proletária. Propostas no âmbito econômico, que exigiam menos conservadorismo nos planos quinquenais de Stalin-Bukharin e uma política de industrialização que favorecesse aos camponeses pobres e a coletivização voluntária da terra; propostas sobre temas concretos como a habitação, a proibição de desocupações, a redução da jornada de trabalho, escolas e serviços sociais nos bairros operários para pôr realmente o proletariado em condição de dirigir seu Estado; propostas sobre a composição social do partido, a questão nacional e as questões internacionais. Propostas que estavam na mesma linha de batalha de Lenin nos últimos anos, quando sugeriu ampliar a base operária no partido e sua presença no Comitê Central para combater o que ele mesmo definiu como “degenerações burocráticas”.

A Oposição de Esquerda não combateu contra a teoria do “socialismo em um só país” em nome de um radicalismo abstrato, mas sim mediante a crítica de suas bases analíticas e consequências práticas. “Toda a teoria do socialismo em um país deriva fundamentalmente da suposição de que a estabilização do capitalismo há de durar uma série de décadas… [esta teoria] está desempenhando agora um papel desagregador e obstrui notoriamente a consolidação das forças internacionais do proletariado em torno da União Soviética”.7 Vale lembrar que apenas alguns anos mais tarde o mundo corria para a crise mais grave e profunda que o capitalismo tinha conhecido até a atual. A “teoria” do socialismo em um só país não educava os quadros da Internacional nem do partido para afrontar as tormentas que se aproximavam.

Mariátegui e os zigue-zagues da Internacional

Frente à crise do grão de 1928 a burocracia se assustou e deu um giro à esquerda, passando do oportunismo ao sectarismo. A liquidação dos kulaks foi realizada com métodos criminais, a preço de milhões de mortos e de um colapso da produção agrícola da qual a URSS nunca se recuperou. Os planos de industrialização agora eram ousados: um plano quinquenal devia concluir-se em quatro anos. Apenas Trotsky, exilado, entendeu que a ascensão de uma caricatura do que foi o programa da Oposição de Esquerda era uma maneira de estabilizar o poder da burocracia, poder que residia na economia planificada ameaçada pela NEP.

Nos anos 30, a maquinaria repressiva se dirigiu definitivamente contra qualquer rastro de bolchevismo. Se nos anos 20 a disputa era entre quem tinha realmente sido um bolchevique, nos anos 30 ter sido um bolchevique era a melhor garantia para conseguir a condenação à morte. Os liquidadores da velha guarda bolchevique eram homens como Vishynski, juiz dos falsos julgamentos de Moscou, que tinha sido menchevique até 1920 e tinha assinado no verão de 1917 a ordem de deter nada menos do que Lenin. 80% do Comitê Central do PCUS que dirigia os processos eram mencheviques. O processo de expropriação do poder político da classe operária soviética foi concluído vitoriosamente em favor da burocracia, que se tornaria agente mundial da contrarrevolução.

Se naqueles anos inclusive os dirigentes mais espertos e informados como Preobrazhenski e Zinoviev se renderam frente ao giro à esquerda da burocracia, não se pode acusar a Mariátegui por ter expressado os julgamentos que fez sobre o “realismo” das políticas de Stalin. Mais que o próprio Gramsci, Mariátegui entendeu que “as medidas” utilizadas contra a Oposição na URSS não eram um simples “excesso”, um adorno supérfluo, mas sim o conteúdo e a expressão da luta de classes dentro da URSS, luta que colocou Trotsky ao lado do “marxismo ortodoxo” e do “proletariado urbano”. Essas intuições são sinais claros de uma inteligência viva alimentada pelo marxismo. Fora as circunstâncias do giro à esquerda na URSS e o fato de que permaneceu à margem da cisão da Internacional, apenas a morte repentina interrompeu seu ávido processo de formação e informação sobre os fatos.

A Internacional que Mariátegui conheceu não foi a de Lenin e Trotsky, mas a que expressava e premiava figuras sujas como Ravinez, que depois se tornou um anticomunista ferrenho, e Codovilla, dirigente do Partido Comunista da Argentina que será lembrado apenas pelos seus erros frente ao peronismo e sua meticulosa perseguição dos “trotskistas”. Estes eram aqueles que rejeitavam as teses de Mariátegui, cujo núcleo fundamental é basicamente uma reformulação latino-americana da Revolução Permanente.

A Teoria da Revolução Permanente

Esta teoria tão mistificada e falsificada pode resumir-se assim: nos países coloniais e semicoloniais a plena e definitiva solução dos problemas pendentes da revolução democrática burguesa é possível apenas pela ação revolucionária do proletariado, que, em aliança e dirigindo-se às massas camponesas, iniciaria no terreno da propriedade privada dando assim à revolução um caráter permanente em direção ao socialismo, cuja vitória definitiva – ainda mais nos países de capitalismo atrasado – depende em última instância da vitória da revolução mundial. Ou seja, que a revolução nos países coloniais e semicoloniais é socialista e internacional ou é simplesmente um aborto.

A marca característica dos países coloniais e semicoloniais é o atraso e a dependência econômica. A burguesia desses países apareceu tarde em cena na história, quando o mundo já tinha sido repartido entre as grandes potências capitalistas. É uma burguesia parasitária na medida em que participa como sócia menor do imperialismo para saquear, vive da renda e da demanda gerada dos enclaves de inversão imperialista. É uma burguesia conservadora por milhões de laços que a prendem ao latifúndio e à grande propriedade privada. É definitivamente incapaz de levar a cabo as tarefas da revolução democrática burguesa, ou seja, a liquidação do feudalismo, a reforma agrária, o desenvolvimento das forças produtivas, a solução dos problemas nacionais. O conjunto de interesses dessa burguesia com o imperialismo e o latifundismo faz dela um adversário que, mesmo quando usa uma fraseologia anti-imperialista, se rende diante do imperialismo quando se trata de defender a ascensão revolucionária das massas.

A teoria da Revolução Permanente foi confirmada em inúmeros exemplos históricos, tanto negativos como positivos. A própria revolução russa foi o primeiro exemplo. Uma vez derrubado o czar, a burguesia russa não soube nem pode cumprir com nenhuma das expectativas das massas e, inclusive, defendeu e continuou na guerra imperialista. Até abril de 1917 o jornal oficial dos bolcheviques Pravda, dirigido naquele momento por Stalin, apoiava criticamente o governo provisório presidido pelo aristocrata liberal Georgi Lvov, defendendo também a continuação da guerra e incitando os soldados russos a responder com balas as balas alemãs.

Somente em abril, quando o próprio Lenin retificou sua velha fórmula da “ditadura democrática do proletariado e camponeses” para reorientar o partido para a tomada do poder, foi que os bolcheviques começaram o processo de ganhar a maioria dos sovietes e a revolução. A velha fórmula de Lenin jogou um papel propagandístico importante, no entanto demonstrava ser inútil na hora de definir o curso da revolução. Apenas a tomada do poder por parte da classe operária poderia começar a resolver as tarefas democráticas burguesas pendentes. As mesmas sucessivas revoluções vitoriosas, China e Cuba, puderam defender-se e solucionar a angustiante questão agrária, apenas rompendo com os limites de uma revolução democrático-burguesa e com a nacionalização plena da economia e o consequente apoio das massas, rompendo com o capitalismo.

Por outro lado, a negativa concepção stalinista de que a revolução nos países semicoloniais necessita de uma etapa democrático-burguesa e que a emancipação do imperialismo e o desenvolvimento das forças produtivas devem continuar com o apoio à “burguesia progressista”, provocou uma série de inúmeras derrotas. A Revolução Chinesa de 1927 foi afogada em sangue pelo próprio Chang Kai Shek, líder do Kuomintang (Partido Nacionalista Chinês), que Stalin convidou como delegado chinês à Internacional Comunista, em nome de uma política de bloqueio, aliança e colaboração entre todas as classes baseada na ideia de que todas elas se opunham ao imperialismo por igual. Chang respondeu a esta aliança participando com os canhões imperialistas no bombardeio de Shangai onde os operários tinham se levantado e com o massacre de um milhão de comunistas.

Mariátegui e a Revolução Permanente

Mariátegui escreveu muitos artigos sobre a situação chinesa. Neles, havia algumas brilhantes intuições sobre a transformação da revolução chinesa e da influência da penetração imperialista. Nesses escritos, como em outros, particularmente sobre a Índia, nota-se o vivo interesse de Mariátegui pelas questões internacionais e seu processo de amadurecimento como marxista. Nos primeiros artigos – particularmente sobre a China – Mariátegui faz algumas concessões ao nacionalismo e alguns de seus expoentes, como Sun Yat Sen ou o próprio Chang Kai Shek considerando-o o homem que tinha em seu poder ser o libertador, mas que traiu seu povo, com uma visão ainda romântica da revolução. Mas já nos escritos de 1929 e 1930, particularmente sobre a Índia, não poupa críticas a Gandhi, que considera um colaborador dos ingleses, apoiando as esperanças da luta pela independência da Índia no nascente movimento operário organizado desse país.

No entanto, é nos escritos sobre questões peruanas e latino-americanas, que Mariátegui conhecia e tinha estudado pessoalmente, que destaca seu autêntico pensamento sobre a revolução nos países coloniais. Em sua tese apresentada à primeira Conferência Comunista Latino-Americana de junho de 1929, em Buenos Aires, Mariátegui, por exemplo, escreve:

“O anti-imperialismo, para nós, não constitui nem pode constituir por si só um programa político, um movimento de massas apto para a conquista do poder. O anti-imperialismo, admitido que pode mobilizar ao lado das massas operárias e camponeses, a burguesia e pequena burguesia nacionalista (já negamos terminantemente essa possibilidade), não anula o antagonismo entre as classes, não suprime sua diferença de interesses”.8

Comparando-se essas linhas com estas outras, com as quais Trotsky se opôs à política de colaboração de classes na China:

“É um erro grosseiro crer que o imperialismo como agente externo, envolve em um só bloco todas as classes sociais da sociedade chinesa… A luta revolucionária contra o imperialismo não debilita, mas fortalece a diferença política entre as classes sociais”.9

Trotsky não negava a possibilidade de uma aliança anti-imperialista com o Kuomintang, o que combatia frontalmente era a política de considerar Chang Kai Shek um aliado estável, ter dissolvido o partido comunista e tê-lo submetido à disciplina do Kuomintang, medida que contrariava todas as resoluções de Lenin sobre a Internacional Comunista.

A realidade peruana

Não surpreende que a tese de Mariátegui, correta em forma e conteúdo, fosse rejeitada pela Internacional. Sua experiência com que o próprio Mariátegui definiu como “Kuomintang latino-americano”, ou seja, a Alianza Popular Revolucionária Americana (APRA) e seu fundador, Haya de la Torre, além de seus estudos sobre a realidade peruana, lhe permitiram agora focar de maneira científica o problema da colaboração de classe defendida pela Internacional. E o levava a chocar-se com ela.

Em seus “7 ensaios da interpretação da realidade peruana”, de 1928, Mariátegui caracteriza a burguesia peruana, e poderia facilmente aplicar à burguesia de toda a América Latina, como a seguir:

“A classe latifundiária não conseguiu transformar-se em uma burguesia capitalista, dona da economia nacional. A mineração, o comércio, os transportes, encontram-se nas mãos do capital estrangeiro. Os latifundiários contentaram-se com servir de intermediários a estes, na produção agrícola de algodão e açúcar. Este sistema econômico, tem mantido na agricultura, uma organização semifeudal que constitui o lastro mais pesado do desenvolvimento do país”.

A quem correspondia, então, a tarefa de resolver os problemas da revolução democrático-burguesa frente a esta burguesia intermediária, parasita e apenas acidentalmente anti-imperialista? Mariátegui explica nitidamente:

“O destino colonial do país resume seu processo. A emancipação da economia do país é possível unicamente pela ação das massas proletárias, solidárias com a luta anti-imperialista mundial. Apenas a ação proletária pode estimular primeiro e realizar depois as tarefas da revolução democrático-burguesa, porque o regime burguês é incompetente para desenvolver e cumprir”.10

Essas conclusões a que Mariátegui chegou são as mesmas a que Trotsky tinha chegado no Balanço e Perspectivas de 1905 e na Revolução Permanente de 1929/30 – livros que Mariátegui não conhecia – e o próprio Lenin nas Teses de Abril e vários discursos e resoluções dos primeiros quatro congressos da Internacional Comunista. E mais, Mariátegui estava plenamente consciente do indispensável caráter internacional da revolução. Em Aniversário e Balanço, editorial do número 17 de sua revista Amauta, publicado em setembro de 1928, Mariátegui escrevia:

“A mesma palavra Revolução, nessa América das pequenas revoluções, está bastante sujeita a mal-entendidos. Temos que reivindicar rigorosa e intransigentemente. Temos que restituir seu sentido estrito e correto. A revolução latino-americana será nada mais e nada menos que uma etapa, uma fase da revolução mundial. Será simples e puramente, a revolução socialista. A esta palavra se pode adicionar, segundo os casos, todos os adjetivos que se queira: “anti-imperialista”, “agrária”, “nacionalista-revolucionária”. O socialismo supõe, antecede e agrega a todos”.

A questão nacional indígena

Uma das críticas mais desajeitadas e que mais se fizeram e continuam se fazendo à teoria da Revolução Permanente de Trotsky é que supostamente descuida ou minimiza o problema das massas camponesas, confinando-a a um papel auxiliar baseado na desconfiança do potencial revolucionário dos camponeses. Como o próprio Trotsky explica em resposta, a teoria da Revolução Permanente afirma simplesmente que a solução plena e definitiva da questão agrária e da questão da opressão nacional, em suas “diferentes combinações”, apenas poderia chegar com a adoção das “mais audazes medidas revolucionárias”.11 É por isso mesmo que Trotsky no Programa de Transição insistia para que os operários levassem a luta de classes ao campo, propondo ao proletariado agrícola e aos camponeses pobres um pacto de luta comum contra os exploradores e por um governo operário-camponês.12

Mariátegui, nisso consiste sua absoluta originalidade, foi mais além, rompeu preconceitos liberais e, inclusive, de certa esquerda, ao afrontar o grande problema revolucionário constituído pela opressão nacional das maiorias indígenas de países como Peru, Bolívia, Equador, Guatemala, México, etc. Ainda que sua ênfase na questão nacional indígena o levou a cometer alguns erros teóricos justificáveis, o valor prático e concreto de sua visão mantém-se inalterado e com toda sua vigência.

Para Mariátegui, a questão nacional indígena, longe de ser um problema histórico, representava um enorme potencial revolucionário. Mas

“a reivindicação indígena carece de concretização histórica enquanto se mantém em um plano filosófico ou cultural. Para adquiri-la – isto é para adquirir realidade, corpo – necessita converter-se em reivindicação econômica e política. O socialismo nos tem ensinado a colocar o problema indígena em novos termos. Temos deixado de considerá-lo abstratamente como um problema étnico ou moral para reconhecê-lo concretamente como problema social, econômico e político. E então, sentiremos pela primeira vez, o terreno ser esclarecido e demarcado”.13

O problema do índio é o problema da terra, o problema de um latifúndio que é poder econômico e político semifeudal e que não foi liquidado, mas, sim, fortalecido na Independência e suas sucessivas evoluções marcadas pela penetração imperialista. Para Mariátegui, os índios são nação oprimida e classe explorada, incluindo aquele “índio analfabeto, que a cidade corrompe, [e que] se converte frequentemente em um auxiliar dos exploradores de sua raça”.14

A opressão nacional e exploração social dos índios é, para Mariátegui, um problema político concreto antes de ser uma questão teórica. Como problema político concreto, sua solução passa pelos próprios índios que Mariátegui justamente considerava o aliado natural do proletariado urbano na luta pelo socialismo, única via para a emancipação tanto do operário como do indígena.

Em sua tese sobre o Problema da Raça, pontuava que:

“não menos de 90% da população indígena assim considerada, trabalha na agricultura. O desenvolvimento da indústria de mineração trouxe como consequência, nos últimos tempos, o emprego crescente de mão de obra indígena na mineração. Mas, uma parte dos operários mineiros continua sendo agricultores. São índios de “comunidades” que passam a maior parte do ano nas minas; mas que na época dos trabalhos agrícolas retomam suas pequenas parcelas, insuficientes para sua subsistência”.

Essa situação continua se repetindo em países como a Bolívia e Peru. Para Mariátegui a via concreta para a solução da questão indígena era a formação de vanguardas entre os indígenas proletarizados e semiproletarizados, para que pudessem organizar suas comunidades, vencendo a resistência diante de “pregadores” mestiços, que falam espanhol e são brancos.

Era necessário, em primeiro lugar, educar os quadros políticos para vencer seus preconceitos com os índios. “Não é raro – escreveu Mariátegui – encontrar entre os próprios elementos da cidade que se proclamam revolucionários, o preconceito da inferioridade do índio e a resistência em reconhecer este preconceito como uma simples herança ou contágio mental do ambiente”.15 E, mais uma vez, combater as políticas equivocadas da Internacional Comunista que se orientava para a reivindicação da autodeterminação indígena, ou seja, a formação de Estados indígenas independentes que para Mariátegui “não conduziria no momento atual à ditadura do proletariado índio nem muito menos à formação de um estado índio sem classe, como pretenderam afirmar, mas sim à constituição de um Estado índio burguês com todas as contradições internas e externas dos Estados burgueses”.16

A natureza do período Inca

Mariátegui considerava que o hábito à cooperação das comunidades indígenas poderia converter-se em base sólida para a edificação do socialismo nas zonas rurais, representando assim um impulso poderoso à batalha pelo comunismo e contra as tendências capitalistas. É a mesma posição que Marx expressou em uma carta de 1881 à revolucionária russa Vera Zasulich, referente às suas perguntas sobre a possibilidade de uma revolução na atrasada Rússia e sobre o futuro da comunidade agrária russa, Marx respondeu o seguinte:

“E, embora sangrem e torturem a comunidade, esterilizem e esgotem sua terra, os lacaios literários dos «novos pilares da sociedade» assinam ironicamente as feridas que causaram à comunidade, apresentando-as como sintomas de sua decadência espontânea. Afirmam que morreria de morte natural e que seria um bem abreviar sua agonia. Não se trata, portanto, de um problema que tenha que ser resolvido; trata-se simplesmente de um inimigo que deve ser oprimido. Para salvar a comunidade russa, falta uma revolução russa. Além disso, o Governo Russo e os «novos pilares da sociedade» fazem o que podem preparando as massas para semelhante catástrofe. Se a revolução acontece em seu tempo oportuno, se concentra todas suas forças para assegurar o livre desenvolvimento da comunidade rural, esta se transformará logo no elemento regenerador da sociedade russa e no elemento de superioridade sobre os países subjugados pelo regime capitalista”.

Para fortalecer sua posição, outra demonstração de aplicação lúcida do método marxista a uma realidade concreta, Mariátegui defendeu a ideia de que o período Inca pudesse caracterizar-se como “comunismo primitivo” e que daí descende o hábito da cooperação das comunidades agrárias. Para ele, tratava-se do comunismo possível no estado de desenvolvimento das forças produtivas da época do período Inca.

Uma sociedade onde uma casta liberada do trabalho manual se dedicava a olhar para as estrelas e proibir o povo de comer determinados alimentos, onde existia a escravidão, um problema de subaproveitamento da terra e necessidade de novas terras que impulsionava as guerras expansivas, onde o exército era profissionalizado e as divisões internas impediram a defesa do império frente aos conquistadores, não pode ser considerada como “comunismo primitivo”.

Trata-se melhor de uma expressão do “modo de produção asiático”, categoria de Marx que descreve uma formação social pouco desenvolvida, onde uma casta – símbolo da unidade das comunidades agrícolas – consume o excedente e garante uma distribuição da produção agrícola e as grandes obras, estradas e irrigação, necessárias para mantê-las. Lembremos que os Grundrisse de Marx, onde expõe de maneira exaustiva o conceito do modo de produção asiático, foram publicados pela primeira vez ao final dos anos 30 e, portanto, o conceito era desconhecido para Mariátegui.

Outros autores consideraram que este erro teórico de Mariátegui afeta toda sua elaboração. Não estamos de acordo. O hábito de cooperação nas comunidades indígenas, a reciprocidade do trabalho, existem realmente. Além da questão da natureza do período Inca, resta vigente a leitura revolucionária da questão indígena que faz de Mariátegui e sua concreta vinculação à luta revolucionária pelo socialismo.

Mariátegui e o APRA

A questão indígena foi uma das razões do acordo amadurecido entre 1926 e 1928 entre Mariátegui e Víctor Raúl Haya de la Torre. Muito foi especulado sobre essa breve colaboração entre Mariátegui e o APRA que naquele período não era ainda um partido. Reivindica-se Mariátegui como um dos fundadores do APRA, fato que não parece incomodar demais as organizações do campo comunista que se proclamam mariateguistas. Enfim, isso demonstraria, contrariamente à leitura que temos feito até o momento, que Mariátegui não era contrário às políticas de colaboração de classes.

Já explicamos que o período entre seu retorno ao Peru e 1927-28 foi um período em que Mariátegui estava consolidando sua adesão ao socialismo e o marxismo desenvolvido em seu exílio italiano. A ruptura com o APRA quando este passava de ser movimento anti-imperialista para constituir-se como partido e a contemporânea participação na fundação do PSP e da CGTP, demonstram pelo menos que as intenções de Mariátegui a respeito desta organização não eram de delegar à direção pequeno-burguesa os destinos da revolução peruana.

Para Mariátegui estava claro, desde o primeiro momento, a necessidade da organização revolucionária e independente do proletariado. Necessidade que a experiência da traição do Kuomintang e de Chang Kai Shek fortaleceu, porque é exatamente na comparação entre o APRA e o Kuomintang que se desenvolve a polêmica sucessiva com Haya de la Torre, como se vê claramente na tese de Mariátegui à Conferência Comunista Latino-americana.

Em uma carta a Nicanor De la Fuente, de 20 de junho de 1929 (publicada no terceiro tomo de suas Correspondências), Mariátegui explica suas relações com o APRA: “Nós trabalhamos com o proletariado e pelo socialismo. Se há grupos dispostos a trabalhar com a pequena burguesia por um nacionalismo revolucionário, que ocupem seu posto. Não nos negaremos a colaborar com eles se representam efetivamente uma corrente, um movimento de massas”. Era a mesma posição que Trotsky tinha defendido contra o servil oportunismo da Internacional com o Kuomintang.

Em seu escrito mais polêmico contra o APRA, e mais polêmico com a mesma política da Internacional Comunista sob Stalin, Ponto de vista anti-imperialista, Mariátegui afirmava:

“O que mais pode se opor à penetração capitalista, a demagógica pequena burguesia? Nada, além de palavras. Nada, mas uma embriaguez temporária nacionalista. O assalto ao poder pelo anti-imperialismo, como movimento demagógico populista, se fosse possível, não representaria nunca a conquista do poder pelas massas proletárias, pelo socialismo. A revolução socialista encontraria seu inimigo mais encarniçado e perigoso – perigoso pela sua confusão, pela demagogia -, na pequena burguesia agarrada no poder e ganha para seu comando”.

Estas linhas escritas em 1929, têm um caráter profético não apenas a respeito do APRA, mas aos vários experimentos populistas, de Terceiras Vias nacionalistas que desde o peronismo ao MNR boliviano marcaram a luta revolucionária do século passado.

Não está longe para chegar o tempo em que o verdadeiro pensamento de Mariátegui, sua vida e exemplo encorajem a revolução latino-americana e sua memória seja levantada e reivindicada como mestre do marxismo pelos trabalhadores, jovens, camponeses e indígenas na luta por uma Federação Socialista da América Latina. Uma luta, nas palavras de Mariátegui, que tanto assustou os filisteus seguidores dos zigue-zagues e das degenerações da Terceira Internacional, serão o fôlego e o slogan para os revolucionários do nosso continente. Como Mariátegui

“somos anti-imperialistas porque somos marxistas, porque somos revolucionários, porque nos opomos ao capitalismo com o socialismo como sistema antagônico, chamado para sucedê-lo, porque na luta contra os imperialismos cumprimos nossos deveres de solidariedade com as massas revolucionárias da Europa”.

Notas e Referências:

1 Notas autobiográficas, 1927.

2 O partido bolchevique e Trotsky, Publicado em Variedades, Lima, 31 de janeiro de 1925.

3 Lenin, Obras Completas, Volume 33, pág. 63 da edição inglesa.

4 O exílio de Trotsky, publicado em Variedades, Lima, 23 de fevereiro de 1929.

5 Alec Nove, An economic history of the URSS, pág. 149, citado em Ted Grant, Rusia de la Revolución a la Contrarrevolución.

6 Plataforma da Oposição de Esquerda, em La Oposición de Izquierda en la URSS, págs. 90 e 91, Editorial Fontamara, Madrid, 1977.

7 Idem, págs. 121 e 129.

8 Ponto de vista anti-imperialista, escrito em 21 de maio de 1929.

9 Trotsky, A revolução chinesa e as teses do camarada Stalin, abril de 1927.

10 Princípios programáticos do Partido Socialista Peruano, outubro de 1928.

11 Citações de Trotsky, A revolução permanente, sétimo capítulo.

12 “A participação prática dos camponeses explorados no controle dos diversos campos da economia permitirá aos próprios camponeses decidir sobre a questão de se saber se convém ou não passar ao trabalho coletivo da terra, em que prazos e em que escala. Os operários da indústria comprometem-se a darem nesse sentido, toda sua colaboração aos camponeses: por intermédio dos sindicatos, dos comitês de fábrica e, sobretudo, do governo operário e camponês”. Trotsky, Programa de Transição.

13 Mariátegui, Prologo a Tempestad en los Andes de L. Valcárcel, 1927.

14 Mariátegui e Hugo Pesce, El problema de la raza en América Latina, 1930.

15 Idem.

16 Idem.

TRADUÇÃO DE MARCELA ANITA.
PUBLICADO EM MARXIST.COM