Na noite de 17 de janeiro de 1961, o líder congolês da independência, Patricio Lumumba, foi assassinado em Katanga. Quarenta anos mais tarde, um novo livro escrito pelo sociólogo belga Ludo De Witte descobre a evidência do que todos já sabiam: a cumplicidade do governo belga e das Nações Unidas neste crime. Pierre Dorremans analisa os bastidores políticos deste caso e explica a política de Lumumba.
Artigo originalmente publicado em 28 de janeiro de 2012
Era uma noite fria aquele 17 de janeiro de 1961 em Katanga, a província rica em cobre do antigo Congo Belga. A ruptura recente do Estado independente do Congo foi financiada por capital belga. Um plano aberto na escura savana é iluminado pelos faróis dos carros da polícia. Um oficial da polícia belga toma pelo braço Patricio Lumumba, anteriormente eleito primeiro-ministro da República do Congo, conduzindo-o para uma grande árvore. O Primeiro-Ministro caminha exausto, foi torturado por horas, talvez dias. Um esquadrão de execução de quatro homens armados com fuzis FAL belgas e armas Vigneron se posicionam, enquanto cerca de 20 soldados, policiais oficiais belgas e ministros de Katanga observam em silêncio. Um capitão belga dá a ordem de fogo e uma chuva de balas acertam Lumumba e dois de seus ex-ministros.
Quarenta anos mais tarde, uma comissão parlamentar belga iniciou uma investigação sobre esse obscuro capítulo da história colonial belga. A comissão tem um ano para elucidar o assunto. Essa investigação serve a um duplo propósito: por uma lado, restaurar a reputação da Bélgica no exterior, uma reputação que sofreu gravemente devido à enorme quantidade de escândalos que sacudiu o país nos últimos cinco anos (desde os escândalos de corrupção em contratos de vendas de armas em que os líderes do Partido Socialista desempenharam um papel proeminente, passando pelo abuso sexual e assassinato de crianças, até a contaminação de alimentos por dioxinas, para citar só os mais importantes). Esta é uma má situação para um país diminuto que exporta mais de três quartos de sua produção de bens e serviços ao exterior.
Com o objetivo de limpar sua imagem, o novo governo verde-liberal-socialista belga tomou a iniciativa nos procedimentos jurídicos contra Pinochet e o ex-presidente iraniano Rafsanjani, no boicote de Haider e também está procurando sua própria responsabilidade na investigação de sua problemática história colonial.
Uma segunda razão é que o Departamento de Relações Exteriores da Bélgica já compreendeu que Kabila, o novo governante do Congo, veio para ficar por um tempo. E como Kabila se apoia fortemente na herança do nacionalismo de esquerda de Lumumba, a Bélgica tem que limpar sua repugnante reputação como a assassina do mais proeminente líder nacionalista do Congo para voltar aos negócios em Kinshasa.
O fato de os democratas cristãos belgas – que estavam no poder desde a Idade Média – encontrarem-se agora na oposição torna as coisas mais fáceis. Os principais protagonistas na intenção de restaurar o poder colonial belga há 40 anos eram de fato todos os democratas cristãos, com Gaston Eyskens como primeiro-ministro, que se provocou uma greve de dimensões pré-revolucionárias (inverno de 1960-1961) com sua agressiva política de austeridade, e o conde d’Aspremont Linden, representante da antiga burguesia belga e de uma burguesia pré-belga à frente do “Departamento de Assuntos Africanos”.
A tese de doutorado de Jacques Brassine, “Pesquisa sobre o assassinato de Patrice Lumumba” (Universidade Livre de Bruxelas, 1990) foi considerada durante os últimos 10 anos como a pedra angular da versão oficial acerca dos acontecimentos ocorridos no Congo entre 1960 e 1961. Nesse estudo, Brassine tratou de provar que o assassinato de Lumumba foi um assunto puramente interno, em que a Bélgica não desempenhou absolutamente papel algum. Seu trabalho é de grande conhecimento nos círculos políticos da direita belga.
Contudo, com seu livro “Crise no Congo”, de 1996, o sociólogo belga Ludo De Witte lança uma luz totalmente diferente sobre a luta pela independência no Congo. Este chegou à conclusão de que o governo Eyscens, no mínimo, esquentou o clima em que eventualmente Lumumba foi assassinado e que as tropas das Nações Unidas no Congo foram “cúmplices por negligência”. Em seu livro mais recente, “O assassinato de Lumumba” (1999), De Witte elabora essa tese em detalhe. Nos primeiros capítulos não deixa um só dos elementos da metodologia de Brassine sem questionamento (entre outras coisas, Brassine esteve envolvido ativamente nos acontecimentos de 1960-1961, portanto dificilmente possa ser considerado um investigador independente).
Em seguida, De Witte entra numa análise detalhada dos mais de 8 mil telegramas trocados entre os diplomatas da ONU no Congo e o quartel general da ONU em Nova York. De Witte se aproxima muito ao demonstrar claramente a cumplicidade intensa da Bélgica no assassinato. No lugar dos lacaios do presidente de Katanga, Tsjombe, foram os belgas que inventaram, criaram, dirigiram e financiaram o Estado fantoche de Katanga como um baluarte do colonialismo belga na África. Foi em Bruxelas e não em Leopoldville (hoje Kinshasa) ou Elisabethville (agora Lubumbashi, capital de Katanga ou Shaba, como a província é conhecida atualmente) que a transferência de Lumumba de uma prisão do Exército Congolês para o Estado sem lei de Katanga foi desenhada e ordenada. Enquanto estava atrás das grades, Lumumba inclusive conseguiu liderar o exército congolês para muito perto de uma revolta anticolonial contra o regime instalado pelo famoso coronel Mobutu.
A maneira meticulosa com que De Witte descreve e analisa os meses, dias e horas antes do assassinato, os detalhes lúgubres sobre a tortura, o assassinato e sobre a eliminação do corpo, não fazem de “O assassinato de Lumumba” um livro muito divertido. Contudo, é uma clara descrição da maneira com que a burguesia de um país denominado “democrático” como a Bélgica atua quando seus interesses fundamentais estão em jogo. Uma leitura cuidadosa deste livro colocará as investigações da comissão parlamentar – supondo que realmente queiram descobrir a verdade – no caminho correto. De Witte assinala vários pontos obscuros (reuniões, pessoas, entre outros) que devem esclarecer se o panorama completa será enxergado. A comissão deveria se concentrar nestes. Por exemplo, o papel que desempenhou o gabinete belga fantasma localizado no edifício Immokat, em Elisabethville.
O assassinato de Lumumba e de dois de seus ministros, Mpolo e Okito, abriu o caminho para o esmagamento dos levantes anti-imperialistas no Congo e, consequentemente, assentou as bases para o regime “simpático e amável” de Mobutu. O Congo, rico em minerais (um geólogo descreveu uma vez a antiga colônia belga como um “escândalo geológico”), foi saqueado durante 30 anos da maneira mais brutal pelo imperialismo belga, francês e estadunidense e pela cleptocracia em torno de Mobutu. Enquanto isso, o país serviu de bastião militar contra a emergente Revolução Africana dos anos 1960 e 1970.
Igualmente às Nações Unidas, a liderança do movimento operário belga também é “cúmplice por negligência” por sua indiferença para com a revolução colonial. Inclusive o Partido Comunista da Bélgica foi um partidário da presença belga no Congo, devido ao fato de que o “socialismo em um só país” não seria possível na Bélgica por causa da falta de matérias-primas. E os stalinistas em Moscou somente apoiaram o regime nacionalista de Lumumba na medida em que poderia ser utilizado e sacrificado no jogo de xadrez internacional da “coexistência pacífica” com o ocidente imperialista.
Essencialmente, Lumumba era um democrata burguês que, entretanto, se radicalizou rapidamente por meio de sua oposição às descaradas ambições coloniais belgas. Se houvesse vivido mais tempo, provavelmente se moveria na mesma direção que Fidel Castro fez em Cuba. Lumumba se converteu no símbolo de um movimento independentista muito jovem e rapidamente radicalizado que por desgraça estava muito desorganizado para sobreviver à morte e/ou aprisionamento de seus líderes mais destacados. No entanto, hoje Lumumba vive como um revolucionário genuíno e honesto para muitos milhares de trabalhadores e jovens africanos que tratam de encontrar uma saída ao mortal beco sem saída do imperialismo no continente negro.
Portanto, enquanto se assinalam as deficiências de um programa nacionalista e a necessidade do internacionalismo socialista em toda a África e o resto do mundo, a herança de Lumumba tem que ser tomada com cautela e com respeito.
Na atualidade, o regime de Kabila em Kinshasa flerta com a retórica anti-imperialista do lumumbismo e, portanto, pode contar com certo nível de apoio entre as forças progressistas no Congo e na diáspora. O Ocidente está tomando seriamente essa nova ameaça e está cuidando de manter Kabila sob pressão financiando algumas revoltas artificiais no leste do Congo.
Mas os tempos mudaram desde 1960, quando o imperialismo ocidental se encontrava mais ou menos unido em sua luta contra o “comunismo” na África. Hoje em dia a situação no continente é mais similar àquela nos tempos da Conferência de Berlim de 1885, quando a África se converteu em uma arena de luta entre as potências imperialistas europeias. Até agora, Kabila conseguiu como um hábil bonapartista o equilíbrio entre esses diferentes interesses. Isto o mantém no poder, mas não conduz para a posterior libertação e emancipação dos povos africanos. Pelo contrário, a África Central está mergulhada em guerras civis intermináveis e devastadoras.
Com o objetivo de alcançar uma verdadeira libertação e desenvolvimento das nações africanas, as lições do lumumbismo terá que ser assimilada e enriquecida com a análise e a compreensão marxistas. Além disso, a classe trabalhadora belga e europeia terá que pôr fim a toda forma de neocolonialismo.
Artigo originalmente publicado em 28 de janeiro de 2012 no site Lucha de Clases, da seção espanhola da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título “El asesinato de Lumumba”.
Tradução de Nathan Belcavello de Oliveira