Recessão ou depressão? Crise parcial ou crise geral? É disto que se trata na atual quadratura do ciclo. Esta é a questão de fundo. O resto é conseqüência.
Como exemplo, vimos no boletim anterior que o prolongamento e a profundidade da nova guerra imperialista dependem desta questão de fundo. Resumindo: uma mera recessão econômica, uma crise parcial, como tantas outras depressões abortadas nos últimos cinqüenta anos, resultaria, quando muito, em uma rápida incursão da máquina de guerra dos EUA no Irã e pronto, estaria encerrado mais um ciclo de guerra.
É claro que só isso já estaria provocando grandes abalos na ordem geopolítica internacional. Bem mais que com a guerra do Iraque, que centralizou a guerra imperialista de superação do ciclo econômico anterior (2001-2007). Não seria pouca coisa, mas circunscreveria localmente a guerra imperialista. Haveria uma expansão apenas quantitativa do teatro da guerra. Não seria uma guerra ocupando a totalidade do espaço mundial.
Ao contrário de uma recessão, a explosão de uma depressão econômica global resultaria em um cenário de guerra qualitativamente diferente. Seria muito grande a possibilidade de transbordamento da guerra para as áreas européias (ocidental, central e do leste) e asiáticas (China, Índia e Japão)*. Na realização de uma crise geral só uma nova guerra mundial abriria a possibilidade (apenas a possibilidade) de superação de uma depressão econômica e, consequentemente, a permanência do regime capitalista por mais algum tempo, pelo menos até a explosão de uma crise bem mais potente mais à frente.
Bolhas e Marolinhas
Crise parcial ou crise geral? Muitas outras coisas importantes dependem da definição deste enigma. O futuro do sistema financeiro internacional, outro exemplo. Começando pelo seu centro, o sistema bancário dos EUA e o mercado de capitais de Wall Street. Até poucas semanas atrás, os capitalistas imaginavam ingenuamente que a crise financeira ameaçando os grandes bancos americanos, europeus e japoneses já era coisa do passado. Restaria agora “apenas” a recessão, a crise no “setor real” da economia. E de certa forma respiravam um pouco mais aliviados supondo (não se sabe com qual justificativa) que a partir do segundo semestre de 2009 a economia voltaria a crescer. Bastava, então, suportar a “marolinha” e, pronto, tudo voltaria a ser como dantes no quartel do Abrantes.
Mas esse alívio durou pouco. No dia 15 de janeiro o mercado foi severamente abalado pela notícia de que o Bank of America, o maior banco americano (e conseqüentemente do mundo) poderia quebrar. O Bank of America viraria pó se não fosse urgentemente socorrido pelo governo americano. Só o Estado salva o capital. Foi o que ocorreu. No mesmo dia, para não perder a viagem, a ambulância dos socialistas Bush, Paulson e Bernanke teve que socorrer também (de novo!) o Citigroup, segundo banco comercial americano, cujas transfusões do Tesouro do ano passado não impediram perigosa recaída nos primeiros dias deste ano: “Apesar de boa parte dos analistas ter dito recentemente que o risco de quebra de grandes bancos globais já tinha ficado para trás, o governo norte-americano divulgou hoje que vai garantir perdas de mais de US$ 400 bilhões em ativos de dois dos principais conglomerados financeiros dos Estados Unidos: Citigroup e Bank of America” (Valor Online, 16/01/2008).
Mas por que os bancos não se acalmam? Agora são os maiores do mundo que estão pela bola sete! E os governos não vão parar nunca de jogar absurdos recursos fiscais nas empresas falidas? Afinal, vai ser preciso estatizar o maravilhoso sistema bancário mundial para enfrentar a crise? Por que não funcionam os poderosos e moderníssimos instrumentos de intervenção no sistema que eles tanto falavam? Tudo isso fica sem a mínima resposta. É tudo um verdadeiro mistério.
Acontece que para os capitalistas (e tantos “marxistas”) o que existe é antes de tudo uma “crise financeira internacional” gerada pela bolha do cassino dos subprime. A especulação comanda o espetáculo da economia política vulgar. E nesse espetáculo ideológico a crise da produção industrial (“setor real”) não passa de uma “marolinha” provocada por essa bolha assassina da financeirização do sistema, da falta de regulação e fiscalização dos “excessos” de um bando de especuladores inescrupulosos e outras bobagens.
A realidade é apresentada de ponta-cabeça. Falta-lhes teoria. São assim incapazes de entender não apenas a crise bancária, mas principalmente a “marolinha” da produção. E, o que realmente interessa, são mais incapazes ainda de delinear o cenário de uma possível depressão econômica e as suas catastróficas conseqüências. Para eles a crise econômica capitalista é um problema apenas econômico, um problema técnico e passageiro que sempre pode ser consertado com controle das variáveis macroeconômicas e novas modalidades de regulação estatal ou privada.
Ajustando o foco
As crises modernas originam-se na esfera da produção de valor e de mais-valia (lucro), e não na esfera da realização, como uma crise de crédito, como ainda acontecia nas formas pré-capitalistas. A atual crise do sistema financeiro internacional não pára de se aprofundar porque a queda da taxa geral de lucro provocada pela explosão de mais um ciclo de expansão e superprodução do capital industrial ainda apresenta uma tendência indefinida. Enquanto permanecer essa indefinição a crise do crédito e do consumo continuará aumentando.
Por enquanto, essa queda da taxa de lucro do capital industrial global e, conseqüentemente, a corrosiva desvalorização de todas as inúmeras formas de existência e de acumulação do capital – com destaque para a acumulação de capital monetário ou fictício**, a preferida por nove entre dez economistas “marxistas” – não encontrou nenhum freio significativo pela frente.
A taxa geral de lucro ainda se encontra em queda livre. Em direção à depressão. Estamos no ponto crucial do ciclo. É por isso que nada se mantém no estado sólido. Tudo se derrete. Tudo cai. De maneira mais tímida aqui, mais rápida acolá. Começando pelas maiores empresas globais, as mais sólidas e tradicionais, que se desmancham na instabilidade da lei da gravidade, quer dizer, da lei do valor-trabalho que se encontra na base da produção capitalista. Tudo é superprodução***.
Necrologia do capital
Embora ainda não possa ser detectado como o mais provável, não deve ser descartado o cenário de uma crise catastrófica clássica, na formatação das que ocorriam nos séculos 19 e primeira metade do século 20. Essa possibilidade se manifesta com uma claridade assustadora em diversos fatos econômicos reais, principalmente aqueles relacionados com a produção, preços e desemprego.
A JPMorgan Global Manufacturing PMI apresenta seu mais recente relatório, em 2 de janeiro de 2009, dizendo que “a segunda metade de 2008 foi apavorante para as manufaturas globais e o setor inteiro entra no ano novo atolado na sua mais profunda recessão em décadas. Em dezembro, uma queda da produção entre 12 e 15% foi acompanhada por quedas recordes em novas encomendas e emprego”. Outras informações do relatório:
– o pior desempenho na produção em Dezembro foi registrado no Japão, cujo produto industrial e novas encomendas caíram para níveis nunca vistos no histórico de qualquer das manufaturas nacionais que fazem parte do levantamento Manufacturing PMI.
– o nível de emprego global nas manufaturas caiu pelo quinto mês consecutivo em Dezembro, na maior extensão da historia do relatório. Todos os setores manufatureiros nacionais pesquisados registraram queda no volume de pessoal empregado, principalmente nas séries correspondentes às nações da Eurozona, China e Inglaterra. As quedas mais rápidas de emprego ocorreram na Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Rússia e Inglaterra.
– a média dos preços de insumos declinou em Dezembro, com os custos com petróleo metais e transportes caindo continuamente. O Global Manufacturing Input Index (Índice Global dos Insumos Industriais) cravou 31.3, o mais baixo já registrado. A taxa de deflação foi mais significativa nos Estados Unidos, onde os preços pagos caíram em sua maior extensão desde 1949. Taxas de decréscimo nos custos atingiram marcas recordes na Eurozona, Rússia, Suíça, República Checa e Dinamarca.
Esses levantamentos com sinais de catástrofe industrial são confirmados em outros importantes relatórios. No “Composite Leading Indicators” da Organização Econômica para o Desenvolvimento e Comércio (OCDE), publicado em 12 de janeiro, é anotado que “os indicadores antecedentes apontam para uma profunda desaceleração nas sete maiores economias e na maioria das economias não- membros da OCDE, principalmente Índia e China”.
Esses últimos indicadores da OCDE, que procuram antecipar o desempenho das principais economias nacionais para os próximos seis a doze meses, são verdadeiramente assustadores. Curiosamente, o Brasil é o único país que ainda aparece no relatório apenas com a perspectiva de “reversão”, quando todos os demais apresentam a marca fatídica de “forte desaceleração”. Não será necessário aguardar o relatório do próximo mês para comprovar o que já se verifica no Brasil em meados de janeiro/2009: a “marolinha” cedendo o lugar para uma avassaladora inundação nas linhas da produção industrial e no emprego em geral.
Os cinco primeiros em desabamento (medido pelo índice de variação sobre o ano anterior) listados no relatório, pela ordem: Rússia (-13,8); China (-12,9); Alemanha (-10,7); Estados Unidos (-8,7); Índia (-7,6).
Produção, capacidade instalada e desemprego
O importante relatório “Industrial Production and Capacity Utilization”, publicado em sua versão mais recente no dia 16/01/2009 pelo Federal Reserve (Fed, banco central dos Estados Unidos), confirma com muito mais exatidão esses sinais de catástrofe apontados nos outros dois relatórios acima. Aqui nos encontramos com as manufaturas dos EUA, núcleo regulador da produção industrial mundial, principalmente seu setor produtor de bens duráveis – aeroespaciais, armamentos, metalurgia, automóveis, máquinas e equipamentos, computadores e produtos eletrônicos, etc.
É exatamente a produção (valor agregado) desses ramos produtores de bens duráveis que registram quedas incrivelmente aceleradas nos últimos cinco meses, desde agosto de 2008. Em dezembro 2008 a queda da produção desses ramos foi de 12,8%, na comparação com dezembro de 2007. É apenas o começo de um longo desabamento. No último período de crise (2000-2002) a produção desses ramos caiu durante dezesseis meses seguidos – de agosto de 2000 até novembro de 2001. Outro elemento importante nesta comparação é que no ciclo atual a queda do primeiro trimestre do seu período de crise foi cinco vezes mais profunda que o trimestre correspondente do último período de crise. Enquanto o quarto trimestre de 2000 registrou queda de 2,9%, o quarto trimestre de 2008 registrou queda de 16,2%.
A tendência histórica é que essa queda atinja seu ponto mais elevado dentro de doze meses, no quarto trimestre de 2009. Nesta perspectiva, devemos fazer outras cruciais relações. No mês de dezembro último o grau de utilização da capacidade instalada já tinha caído para 65,9%. Foi outra queda absurda, mas totalmente consistente com a queda de 12,8% da produção que salientamos acima.
Em dezembro de 2007 essa taxa de utilização se localizava em 79,2%. Foi o auge do ciclo. Mantida esta absurda velocidade atual de queda, não seria exagerado se prever que em dezembro de 2009 a taxa de utilização se localizaria abaixo de 50%, e a correspondente taxa de desemprego estaria situada entre 25 e 30% da força de trabalho. A situação da economia de ponta do sistema estaria exatamente igual à da economia da Argentina em 2000-2002. Isso, evidentemente, seria socialmente inadmissível.
É com base nestas ponderações teóricas e comprovações empíricas que você pode refletir por conta própria sobre os movimentos reais da economia, da luta de classes e da geopolítica imperialista que, nos próximos meses, devem resolver materialmente o enigma que definimos na primeira linha deste boletim: recessão ou depressão? Crise parcial ou crise geral?
* A América Latina das burguesias cucarachas, território de caça dos EUA, continuaria fora, como sempre, dos grandes embates mundiais. Da mesma forma que a África subsaariana, outra área sem importância significativa no tabuleiro geopolítico das grandes potências.
** “Os milionários americanos perderam, em média, 30% de sua fortuna devido à crise do crédito subprime. Estudo da consultoria Specterm Group, divulgado nesta semana, também indica que 17% dos americanos que possuem US$ 1 milhão ou mais perderam 40% do seu patrimônio devido à crise” (Invertia/Terra, 12/01/2009)
*** “As duas principais montadoras do Japão, Toyota e Honda, cortarão ainda mais produção para se adequarem a estoques inchados, em um momento em que a venda de automóveis despenca. A terceira colocada Nissan deve transferir parte da produção ao exterior para cortar custos. Enquanto isso, a Fuji Heavy, fabricante da marca Subaru, é a mais recente empresa automotiva a prever perdas neste ano fiscal, diante de um cenário em que a expansão da recessão global prejudica a demanda em mercados maduros e coloca um freio nas vendas em mercados emergentes. O anunciou de cortes de produção pela Toyota nas fábricas da América do Norte veio após o alerta da General Motors de que as vendas de automóveis nos Estados Unidos este ano atingirão nível mais baixo em 27 anos. A Toyota, que espera o primeiro prejuízo operacional anual de sua história para este ano fiscal, informou que os estoques de carros fabricados na América do Norte equivaliam a 80 a 90 dias de vendas, tendo dobrado no último ano. A companhia espera cortar este valor pela metade no segundo trimestre. “O atual nível de estoque é recorde para a Toyota e o declínio do mercado não tem precedentes, com isso o aumento de inventários é inevitável”, disse Yasuaki Iwamoto, da Okasan Securities. “As vendas estão caindo entre 30% e 40% todo mês, e este ritmo de queda é desconhecido tanto pela Toyota quanto por toda a indústria”, disse ele. “As montadoras devem se adequar a essa situação por meio de cortes de produção o mais rápido possível.” A Honda informou que reduzirá produção doméstica em adicionais 56 mil unidades, esperando que a produção no Japão totalize 1,168 milhão de unidades neste ano fiscal até março, ante meta original de 1,31 milhões. A Nissan também anunciou mais cortes de produção no Japão nesta quinta-feira, e uma fonte disse que a empresa irá registrar prejuízo operacional anual.” (Reuters/Estadao.com 16/01/2009)
* Este texto foi publicado no boletim Crítica Semanal da Economia.