Uma das primeiras imagens que guardei de experiências científicas foram as de Newton – o prisma com a divisão da luz branca em cores, a observação do arco-íris, rodar o balde cheio de água para mostrar a força centrífuga etc.
Mas, séculos depois das experiências de Newton, a ciência de hoje exige investimentos pesados, maquinarias complexas, computadores caríssimos. O que antes era quase a realização de um homem solitário trabalhando em seu laboratório tornou-se um trabalho coletivo de milhões de pessoas com máquinas que, às vezes, demoram anos para ser construídas e, uma vez colocadas para funcionar, muitas vezes começam a ser suplantadas por outras.
Empresas gigantescas, como químicas, eletrônicas e de processamento de dados, mantêm departamentos de ciência e investigação enormes, com milhares de trabalhadores e investimentos pesados. Vários experimentos, como o laboratório de aceleração de partículas CERN, na Suíça, envolvem o financiamento de dezenas de países. O mesmo para a maioria dos grandes telescópios ou dos telescópios espaciais.
Grandes empresas de sementes dominam diversas áreas de desenvolvimento de pesquisa biológica ou se apropriam das pesquisas públicas, como a Mosanto-Byer. Outras dominam a área de medicamentos (novamente vemos o nome da Byer, da Glaxo e outras). Grandes empresas de informática, como IBM, Google e Apple, dominam o desenvolvimento dos processadores quânticos. A ciência se tornou uma área em que é o capital concentrado que produz o desenvolvimento, encerrado há muito tempo o período dos grandes sábios individuais.
Quando Robert Khun escreveu “A estrutura das revoluções científicas”, ele trabalhou exatamente nessa realidade. Khun descreve que, normalmente, uma ciência específica trabalha com um paradigma que é considerado a base sobre a qual se estruturam as pesquisas e o conhecimento então dominantes. A ciência “normal”, o trabalho diário de um cientista, é verificar, por meio da aplicação da teoria (ou teorias) que constitui esse paradigma, a verdade destas teorias ou a extrapolação dos limites sobre os quais a teoria foi constituída.
Como se aplica isso ao combate contra o vírus
Normalmente, frente a um novo vírus, há várias linhas de ataque. O que é considerado o “remédio definitivo” é a criação de uma vacina que estimule o corpo a produzir anticorpos contra o vírus para que, assim que entrar em contato com este, ele seja já eliminado do organismo. Mas, em trabalho sobre intensa pressão, o tempo “normal” de produção de uma vacina demora um ano e meio no mínimo (pesquisa, teste em animais, testes em voluntários humanos, pesquisa de produção em massa de uma vacina eficiente, produção da vacina). E o problema é que este vírus se espalha muito rápido. Existem mais duas linhas de pesquisa centrais (além de diversas outras e da combinação destas três principais):
a) Remédios que poderiam eliminar os efeitos do vírus no organismo, permitindo que este se recupere rapidamente e, assim, possa produzir os anticorpos a tempo de combater o vírus. Isso passa por antibióticos (que evitam infecções oportunistas, bactérias que se aproveitam da fraqueza momentânea do organismo para se proliferar, como a tuberculose) e por aplicação de anti-inflamatórios e imunodepressivos, como corticóides. Todos estes remédios têm diversos efeitos colaterais, sendo que muitas vezes podem causar mais danos do que curar a doença principal. Até o momento, nenhuma pesquisa comprovou que o uso de dois ou três desses medicamentos, em conjunto, pode ter efeito terapêutico maior que os danos;
b) Uso de remédios que atacam o vírus – os principais candidatos são os antivirais como o coquetel que ataca o vírus da AIDS ou o antiviral que destrói o Ebola. Além disso, remédios como a cloriquina têm efeito semelhante para a maioria dos vírus. Podem ser aplicados conjuntamente (ou não) com os medicamentos citados no item acima. O principal problema é que são altamente danosos ao organismo. A cloroquina, por exemplo, foi tentada em várias epidemias causadas por vírus, como a AIDS e o EBOLA. O principal problema é que a dose necessária para atacar com eficiência esses vírus destruía mais o organismo (efeitos colaterais no fígado, rins e no sistema cardíaco). Para o vírus da Covid-19, até agora não se tem um experimento que determine com certeza que os benefícios sejam maiores que os malefícios. Doses pequenas, por exemplo, podem não ter efeito no vírus. Doses altas matam o paciente. Chegar a uma “dose ideal” é muito difícil.
E o investimento? O que tem isso a ver?
Durante anos, desde o início dos anos 2000 e particularmente depois da crise de 2007/2008, o investimento público em ciência no Brasil, nos EUA e em outros países tem caído. Isso significa dispensa de milhares de pessoas, de cientistas treinados, sem substituição. Significa a desativação de aparelhos e laboratórios públicos. Significa que equipes, laços, tradições foram quebradas e isso não tem volta. Pode-se reconstruir um laboratório? Pode-se, com muito mais investimento do que necessitaria a sua conservação. Mas a equipe de trabalho, o ritmo já conseguido no trabalho coletivo, isso não será recuperado em meses, mas vai demorar anos. E é isso que impede a pura e simples reativação de tudo, além, é claro, da “falta” de dinheiro que sobra para banqueiros, empresários e especuladores.
É possível desprezar a ciência e ir para a frente? “Tocar de ouvido”? Sim, é possível, mas a chance de erro é muito grande, como se demonstra no episódio (ainda não resolvido) da cloroquina.
Para se ter ciência, é preciso destruir a burguesia e seu sistema capitalista.
Luiz Bicalho é formado em Física pela UnB