Os limites do trabalhismo do PTB (1945-1964) e suas reverberações no presente

Confira o segundo artigo da série de análises sobre a ditadura militar instaurada no Brasil em 1964. Nele, Chico Aviz retoma a história do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), sua influência no movimento operário e características que “possuem fios condutores na atualidade”.

O período de 1945 a 1964 expressou um dos momentos de maior acirramento da luta de classes na história brasileira. A guerra fria e as contradições sociais tencionavam o continente e abriam o caminho para uma situação revolucionária. No Brasil, dos campos aos centros urbanos, disputas eram travadas entre frações das classes dominantes e nas direções operárias e camponesas, dos pampas à Amazônia.

De acordo com o Anuário Estatístico Brasileiro (IBGE), a população nacional em 1964 era de 79,8 milhões de pessoas. Deste total, 33 milhões viviam na zona rural do país, mas, devido à concentração de terras e áreas improdutivas, a produção agrícola não atendia de maneira satisfatória o mercado interno. Assim, foram décadas marcadas pelo enorme êxodo rural no Brasil e, politicamente, por prevalecer como orientação para a organização das massas de explorados os limites ideológicos pelo trabalhismo e a “revolução brasileira”, de caráter democrático-popular, encabeçado pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – que abrigou dois presidentes da República, Getúlio Vargas (1951-54) e João Goulart (1961-64) – e, a reboque, pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Tal concepção neste ínterim de 20 anos, avessa ao marxismo e ao internacionalismo proletário, demonstrou os limites e o papel de sócio menor da burguesia exercido pelo trabalhismo, mesmo quando envernizado de progressismo. Na prática, essa política reformista transferiu à pretensa burguesia nacional a missão de libertar a sociedade do jugo imperialista e de permanências coloniais.

Isso porque, grosso modo, a classe dominante poderia ser regulada pelos trabalhistas nacionalistas, que conquistariam as reformas políticas necessárias para a melhoria das condições gerais de trabalho e vida do proletariado via canais institucionais do Estado, negociando com a “classe” política e o empresariado. Essa idealista e limitada concepção pode ser assim compreendida pelas palavras de Evaristo Moraes, advogado trabalhista e integrante do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio do governo Vargas:

“[…] a função do Estado ou dos governos, ou dos poderes públicos […] tem de se transformar; […] é necessário intervir por meios legislativos, no sentido de ser efetivamente melhorada a posição econômica do homem assalariado; é preciso regular as condições de trabalho, dando satisfação às necessidades humanas do trabalhador.”1

A realidade nacional de contundente concentração de terras, o processo de urbanização e a parca industrialização contribuíram materialmente para o fomento destas ideias. Sendo parte deste contexto, o PTB tornou-se, à época, a principal direção dos movimentos operário e camponês do país com tal estratégia. Este partido surgiu em maio de 1945, na reta final da Segunda Guerra Mundial, quando a ditadura do Estado Novo passava a ser inviável, sendo capaz de se organizar e capitalizar a partir das pressões conservadoras contra Getúlio Vargas.

Neste sentido, o “queremismo”, movimento massivo em defesa do ex-ditador e impulsionado pelo PCB e PTB, ao criar seus comitês de luta em apoio à “Constituinte com Vargas”, foi preponderante para a formação da base social trabalhista entre operários sindicalizados. Além disso, “integravam também a composição social petebista burocratas do Ministério do Trabalho – que já ventilavam, ainda no Estado Novo, o intuito da criação de um partido de massas apoiado em bases sindicais –, advogados de sindicatos, intelectuais e profissionais liberais”2.

Isso fez do PTB um forte partido internamente autoritário, integrador do Estado, das entidades trabalhistas e, acima de tudo, umbilicalmente ligado ao culto varguista, controlado nacionalmente a partir do diretório estadual do Rio Grande do Sul. O suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, só demonstrou como a política era conduzida pelo clã do bonaparte brasileiro quando João Goulart, protegido e amigo familiar de Vargas, assumiu, inconteste, a direção do partido.

Contudo, não se tratava de um partido homogêneo, mas possuidor de três correntes internas, conhecidas como:

1. Getulistas pragmáticos: composta por burocratas do Ministério do Trabalho, sindicalistas do corporativismo oficial e políticos profissionais ligados à Vargas, os quais eram contra qualquer conflito social entre as classes sob a clássica orientação de Vargas de ordem, disciplina e respeito às autoridades. Em suas palavras:

“Não precisam nem precisarão os trabalhadores do Brasil recorrer a greves, porque a bancada trabalhista, na Câmara e no Senado, defenderá intransigentemente as fórmulas mais práticas para a solução dos seus problemas.”3

2. Doutrinários trabalhistas: tinham como líder Alberto Pasqualini, intelectual atualmente reavivado em trabalhos acadêmicos ditos progressistas. Este criticava o clientelismo e o fisiologismo dos getulistas pragmáticos, combatendo suas práticas de transformar o partido em “agências de empregos públicos”. Essa ala era formada por profissionais liberais, intelectuais social-democratas e socialistas reformistas. Eram expressões claras das ilusões e limites do PTB com suas defesas de um “socialismo evolutivo”, ou seja, o alcance do socialismo via mudanças graduais, o industrialismo e o distributivismo a partir da tributação progressiva da burguesia.

3. Pragmáticos reformistas: eram da geração sucessora de Vargas e Pasqualini, realizadores de um casamento entre as facções internas do PTB, tendo como principais representantes João Goulart e Leonel Brizola. Sua concepção era tanto de consolidar o partido nas instituições do Estado como de transformá-lo em agente e tencionador de mobilização popular, junto aos trabalhadores, com uma política reformista e nacionalista.

Uma expressão concreta disso foi o impulsionamento destes trabalhistas ao Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master), realizador da reforma agrária para mais de 200 mil famílias entre 1959 e 1963 sob o governo de Leonel Brizola no Rio Grande do Sul. Ou também suas ações assistencialistas, como, por exemplo, a entrega de postos de saúde “instalados pelo PTB”, no Rio de Janeiro, em 1952, com João Goulart fazendo as honras na inauguração.

É interessante recuperar o pensamento de um dos principais ideólogos destes pragmáticos reformistas para compreendermos melhor essas ideias trabalhistas. Trata-se do jornalista e braço “esquerdo” de Brizola, Paulo Schilling, autor de obras e orientações ao PTB gaúcho.

Schilling apresentava as 6 “etapas” para o caminho brasileiro, como cunhou. Isto é, as reformas trabalhistas e nacionalistas necessárias para o desenvolvimento do país e a libertação da classe trabalhadora. Um exemplo disso pode ser encontrado no livro “O que é reforma agrária” (1963), da coleção Cadernos do Povo Brasileiro da editora Brasiliense, fundada por Caio Prado Jr. e Monteiro Lobato.

Em síntese, seriam elas:

1. Eliminação do latifúndio como instituição e como classe;

2. Extinção das relações de produção “semifeudais” ainda existentes no campo (trabalho gratuito, parceria e arrendamento);

3. Democratização da propriedade rural;

4. Extensão aos assalariados do campo dos direitos trabalhistas;

5. Aumento da produtividade e da produção agrícolas;

6. Incorporação do campesinato à economia nacional.

Portanto, fazia a defesa de um processo de reformas econômicas, sociais e jurídicas para solucionar a questão agrária, mostrando os limites do campo de “ação social” que Schilling atuava pelo PTB e, consequentemente, pelo governo Brizola, na gestão do estado do Rio Grande do Sul.

Essa era uma concepção atrasada sobre avanços sociais dentro das relações capitalistas. Apesar de terem fórmulas atualizadas, no presente ouvimos estes jargões diariamente desde a ala de “esquerda” do PDT com seu “Trabalhismo, via do Socialismo Brasileiro” até o PCB, com seu “poder popular”, além da Unidade Popular (UP), das organizações anarquistas e mesmo de outros grupos.

Diante destas posições do antigo PTB e das atuais organizações e partidos de esquerda, podemos traçar inúmeros paralelos, que podem ser sintetizados num balanço feito sobre a ala mais “radical” do PTB:

“A estrutura do partido ofertar um serviço de assistência médica ao seu eleitorado com o propósito […] de ‘conquistar as massas trabalhadoras’, tende a consistir em uma ação de sabor assistencialista e clientelista, pois associa a provisão do serviço à criação de possíveis laços de fidelidade direta ao PTB. De um direito social, ainda que em potencial, a ser assegurado pelo Poder Público, e virtualmente a ser reclamado por seu eleitorado, o benefício converte-se em um provável recurso de troca política. Um tipo de iniciativa que, se garante a assistência à saúde da população, propicia à organização partidária […] eventuais ganhos eleitorais.”4

Diante disso, troquemos o “eleitorado” por “comunidade”, ou qualquer nomenclatura do tipo, e vemos como se reproduz, mais de 60 anos depois, na política de organizações que até dizem reivindicar o comunismo, esta prática assistencialista e a orientação aos seus militantes de ter uma construção partidária interna e outra externa enquanto “ação social” de “inserção” na comunidade, no bairro, na associação de moradores, nos grupos culturais etc.

O velho PTB, no intenso período de 1945 a 1964, incorporou tradições políticas enraizadas no país, mas também consolidou ideias que permanecem até nossos dias, tendo responsabilidades pelo bloqueio da luta revolucionária e pela crise das direções do movimento operário e estudantil.

A luta pela organização proletária em defesa da revolução social, a destruição do Estado burguês, suas instituições e braços controladores locais, esteve longe das perspectivas do PTB.

Por isso, é fundamental que os comunistas compreendam e expliquem a história do país e a atuação das organizações e partidos ao longo das décadas, cabendo a nós organizar um partido centralizado, democrático, de base, independente e, de fato, comunista, que apresente à sociedade um programa revolucionário, e não reformista ou etapista.

Foram justamente tal programa reformista, as práticas assistencialistas de toda sorte (ações de educação “popular”, postos de saúde e campanhas de doação de alimentos/roupas), o pragmatismo eleitoral ou busca pela capilarização social fora das entidades de classe, além do idealismo nas “conquistas” imediatas (“ações afirmativas” e etc.), que expressam os limites do PTB e possuem fios condutores na atualidade.

Concretamente, foi esse conjunto de políticas que, sob o governo Jango, por meio das limitadas “reformas de base”, e trazendo atrás de si as demais direções proletárias do período, as responsáveis por não destinar a classe trabalhadora brasileira à revolução em um período histórico frutífero para isso, mas sim aos 21 anos de ditadura iniciada com o golpe de 1964.

Referências:

1 MORAES, Evaristo, “Leis do trabalho”. In Apontamentos de direito operário. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905: In: MORAES FILHO, Evaristo (org.), O socialismo brasileiro. Brasília: Instituto Teotônio Vilela, 1998, p. 182.

2 SILVA, Roberto Bitencourt da. O PTB (1945-1964): suas tendências políticas internas e a hegemonia do diretório sul-riograndense. Revista Perseu: História, Memória e Política, nº 7, Ano 5, 2011, p. 182.

3 VARGAS, Getúlio, “Discurso pronunciado na Convenção do PTB”. Porto Alegre, 11/11/1946. In _____, A política trabalhista no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1950, p. 45.

4 SILVA, Roberto Bitencourt da. O PTB (1945-1964): suas tendências políticas internas e a hegemonia do diretório sul-riograndense. Revista Perseu: História, Memória e Política, nº 7, Ano 5, 2011, p. 189.