Os trotskistas, desde a criação da Oposição de Esquerda, na década de 1930, sempre fizeram parte da vida política no Brasil. Na ditadura, isso não foi diferente, defendendo a revolução e o socialismo. Na ditadura, combateram tanto a integração estratégica do Partido Comunista Brasileiro (PCB) às instituições do Estado como o espontaneísmo inconsequente da luta armada, defendo a necessidade da organização independente dos trabalhadores. Esse processo, de luta teórica e política de princípios, levou à criação da Organização Socialista Internacionalista (OSI), em 1976.
Os trotskistas no contexto do golpe
Em 1964, o golpe encontrou o trotskismo em um momento contraditório. Por um lado, o Partido Operário Revolucionário – Trotskista (POR-T), fundado em 1953, mostrava um relativo crescimento. Produto de um processo de reorganização do trotskismo iniciado na década de 1940, o POR(T) havia crescido em alguns segmentos, como entre camponeses em Pernambuco, intervindo inclusive nas Ligas Camponesas, e desenvolvia um trabalho político entre operários de São Paulo, além de buscar se inserir nos meios estudantis e mesmo intelectuais.
Por outro lado, em âmbito teórico e político, o POR(T) se via influenciado pelas orientações que vinham sendo elaboradas nos anos anteriores pela direção majoritária da 4ª Internacional, associadas a nomes como Michel Pablo, Ernest Mandel e Posadas. Esse conjunto teórico normalmente é chamado de “pablismo”, em referência ao dirigente grego Michel Pablo, que havia formulado um conjunto de orientações teóricas no começo da década de 1950. Essas orientações, que levaram à cisão da 4ª Internacional em 1953, apontavam a iminência de uma nova guerra mundial, desta vez “contra a URSS, as ‘democracias populares’, a China e outras revoluções asiáticas em curso”, com vistas a “esmagar os partidos comunistas e os movimentos revolucionários nos seus respectivos países”1. Nesse cenário, seria possível que, “graças a essas reações das massas, e às convulsões e exasperações que tal guerra rapidamente criaria, diferentes partidos comunistas seriam forçados a continuar uma luta, sob pressão das massas e de suas próprias fileiras, que iria além dos objetivos estabelecidos pela burocracia soviética”2.
Diante dessa previsão, que não se cumpriu, o pablismo orientava que os partidos ligados à 4ª Internacional deveriam buscar “se inserir nas massas”, fazendo entrismo nos partidos comunistas e eventualmente mesmo em movimentos nacionalistas, ou seja, os trotskistas deveriam integrar seus militantes a esse partidos e movimentos, os fortalecendo política e organicamente. Essa proposta levou a desastres na Bolívia e no Ceilão (atual Sri Lanka), onde organizações trotskistas com importância política junto a vanguarda ou mesmo a setores de massas apoiaram a burguesia e perderam a chance de levar os trabalhadores à tomada do poder.
Essas ideias chegaram ao POR(T) por influência de J. Posadas, que foi o responsável político da 4ª Internacional na América do Sul, até romper em 1962. O POR(T) procurou fazer entrismo no PCB e no PCdoB e nutriu ilusões no setor do trabalhismo encabeçado por Leonel Brizola, que expressaria uma “ala esquerda do reformismo burguês”. O POR(T), assim, terminou por ficar a reboque do bloco político que sustentava o governo João Goulart, bem como nos setores brizolistas, que supostamente seriam “levados a evoluir e radicalizar-se, muitas vezes, por fora do que são os reais interesses de classe de onde eles surgiram e além de todos os limites aceitos pela classe dominante”3. O exemplo cubano se repetindo parecia ser uma esperança alimentada por muitas ilusões.
Nesse cenário, assim se aproximando da política stalinista, o POR(T) defendia a necessidade de o partido estar colado a esses segmentos burgueses, afirmando que “a direção nacionalista brizolista desempenha um papel positivo no avanço das lutas e também da organização das massas”4. Nesse processo, se difundia a ilusão de que os nacionalistas poderiam até mesmo ser influenciados pelos trotskistas. Segundo o próprio Posadas, a atividade do partido com os brizolistas “ensinou-os, demonstrou-os que os trotskistas são capazes de dirigir” e que “eles estão aprendendo a ser revolucionários dirigidos e guiados pelos trotskistas”5.
Essa perspectiva levou o POR(T) à crise e a cisões, refletindo também o cenário internacional, na qual o pablismo e suas variantes, como o posadismo, mostraram o desastre de sua política. Os setores oriundos do POR(T), durante a ditadura, fazendo um balanço dos erros dos anos anteriores, buscaram se reconectar com os princípios e a teoria trotskista.
Reorganizando os trotskistas
No período posterior ao golpe, todas as organizações existentes passaram por rupturas, desde o maior partido, o PCB, até organizações menores, como o PCdoB e a Polop. O POR(T) não esteve imune a esse processo de crise.
No ano de 1968 em São Paulo foi formado o Movimento Estudantil 1ºde Maio (ME1ºde Maio). O nome do agrupamento surgiu depois da participação dos militantes na comemoração do 1ºde Maio de 1968, realizado na Praça da Sé. Em 1970, o grupo assumiu o nome de Organização Comunista 1º de Maio (OC1M), procurando superar as características de uma tendência estudantil e iniciando o processo de estruturação de uma organização política.
Nesse período, iniciou um processo de fusão com a Fração Bolchevique Trotskista (FBT), criada também em 1968, e com o grupo Outubro, fundada em 1970, na França, a partir de um grupo de exilados brasileiros, alguns ex-militantes das duas organizações, e que desenvolviam atividade militante na Organização Comunista Internacionalista (OCI). No processo de superação do posadismo por parte da FBT e de constituição da OC1M, criou-se, em julho de 1971, o Comitê de Unificação- FBT-OC1ºde Maio, dando início às discussões para a unificação.
O ME 1ºde Maio não era exatamente uma ruptura com o POR-T posadista, mas tinha entre seus impulsionam tanto ex-militantes do partido posadista, que era seu núcleo dirigente, como membros que não tinham um passado militante em organizações. Por sua vez, a FBT era composta por militantes expulsos do POR-T.
Esse esforço de unificação não foi apenas organizativo, mas também político e teórico, procurando tanto apontar para a necessidade de superação dos limites do posadismo como para a necessidade de interpretar, a partir do marxismo, a realidade da ditadura e como isso poderia fortalecer a ação dos revolucionários. Em documento de janeiro de 1971, ao analisar o golpe, o agrupamento mostrava uma clara delimitação com as perspectivas stalinistas: “A burguesia, apavorada diante do movimento de massas, que se radicalizou antes de 1964, escapando das mãos dos pelegos, conseguiu unir suas forças, para promover contra João Goulart o golpe que, em última instância, era dirigido contra as massas”6. Nessa passagem, mostra tanto a completa descrença nas alternativas burguesas como aponta que a situação política se dava como parte da luta de classes, para além da figura de João Goulart ou das perspectivas nacionalistas. Segundo os trotskistas, “o estímulo às reformas [de base] desencadeava um processo de agitação e mobilização de massas que exigiam além das propostas reformistas”7.
Em sua análise, os trotskistas procuram também fazer um balanço da atuação do PCB. Eles denunciavam o “comportamento pelego” do PCB, “que no período pré-golpe de 64 retinha os aparelhos que serviam de canais para a manifestação das massas, que era direção e atuava como freio dessas manifestações”8. Contudo, também criticavam as organizações que priorizavam a luta armada, denunciando “a concepção militarista que acabou arrastando centenas de jovens entre os quais líderes de massa”, que “teve por causa a crítica incompleta, parcial, da atuação do PCB, de onde saíram os principais dirigentes das organizações guerrilheiras”9. Nesse cenário, os trotskistas apontavam que a tarefa da “vanguarda revolucionária” passava por buscar pelos “elementos que estavam e estão se forjando como direção, no meio das massas, em cada local de trabalho ou atuação, formá-los politicamente, fornecendo-lhes os instrumentos para marcharem rumo à revolução socialista”, assim “se consolidando como direção revolucionária das massas”10.
Construindo o partido revolucionário
Os esforços políticos e teóricos de reorganização dos trotskistas redundaram na fundação da Organização Socialista Internacionalista (OSI), em dezembro de 1976, a partir da unificação da Organização Marxista Brasileira (OMB) com o Grupo Comunista 1º de Maio. A OMB era uma organização fundada em 1975, a partir da unificação da FBT, do grupo Outubro e da Organização pela Mobilização Operária (OMO), uma dissidência da OC1M.
A conferência de fundação da OSI contou com cerca de vinte delegados, que representavam aproximadamente cem militantes. A unificação das duas correntes deu-se a partir da iniciativa do Comitê de Organização pela Reconstrução da Quarta Internacional (CORQUI), que a deliberou em reunião de seu Bureau Internacional, realizada em Paris, em dezembro de 1975. O CORQUI foi formado em 1972, a partir do trabalho em comum da OCI francesa, dirigida por Pierre Lambert, com organizações de outros países, como o PO argentino e o POR boliviano.
No final da década de 1970, a OSI construiu grande influência na juventude, a partir da atuação da Liberdade e Luta, sua corrente estudantil, que encabeçou a luta pela criação do DCE Livre da USP, ocorrida em 1976, e que, pouco depois, chegou a dirigir a entidade. A Liberdade e Luta também teve um papel ativo no processo de reconstrução da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), apontando como perspectiva a necessidade da unificação das lutas do movimento estudantil com as do movimento operário, o que se refletia na palavra de ordem “aliança operário-estudantil”.
As posições da OSI, assim como as da Liberdade e Luta, tiveram como porta-voz o jornal O Trabalho, que passou a circular, a partir do mês de maio de 1978, e a revista A Luta de Classes, cuja publicação iniciou no ano seguinte. No centro da luta da nova organização, estava o combate contra o regime repressivo, sendo vanguarda no impulsionamento da campanha “Abaixo a ditadura”. Essa perspectiva estava evidente em suas análises, como na crítica à atuação do PCB:
“É o fato de que a queda da ditadura militar no Brasil acarretará a desagregação do aparelho de Estado e que já começou o processo que se dirige diretamente até a destruição da ditadura, que determina a política do imperialismo, das diferentes camadas da burguesia brasileira. E, deste ponto de vista, a posição do aparelho stalinista, com toda a sua ciência contrarrevolucionária, está extremamente clara: faz tudo o que pode para sustentar e apoiar a ditadura. A queda da ditadura ou a sua sustentação é a questão central para todos, pela simples razão de que a sua liquidação significa a abertura da crise revolucionária.”11
Nesse cenário de luta pela derrubada da ditadura e do vislumbre de uma possível situação revolucionária, colocava-se a construção do núcleo trotskista, incorporando a experiência de militância e os debates políticos e teóricos das décadas anteriores. Contudo, ao mesmo tempo, o conjunto da classe estava disperso politicamente, fosse pela fragmentação provocada pela repressão, fosse pela política desastrosa do stalinismo. Colocava-se, assim, a necessidade de construir uma direção política da classe trabalhadora, o que, naquela conjuntura, se materializa no chamado do trotskistas pela construção de um Partido Operário Independente (POI). Esse processo, em meados de 1980, se concretizou na adesão da OSI à construção do Partido dos Trabalhadores (PT), “situando-se no terreno da luta por um partido operário, contra os partidos burgueses e soluções frente-populistas”, devendo “multiplicar suas iniciativas em direção a todo passo dado à frente no caminho da independência dos trabalhadores”12. Como parte do impacto das greves que vinham ocorrendo no ABC, a OSI fazia um chamado a que o PT assumisse “a tarefa de preparar a mobilização geral para derrubar a ditadura”13.
Outras organizações trotskistas foram construídas no período. No final da década de 1970, foram fundadas a Democracia Socialista (DS) e a Convergência Socialista (CS), ambas inicialmente como parte do agrupamento internacional dirigido por Ernest Mandel, o Secretariado Unificado (SU). Contudo, depois da traição mandelista à revolução na Nicarágua, a CS rompeu com o SU, vindo a constituir sua própria organização internacional, dirigida por Nahuel Moreno, em 1982.
O PT, apesar do ferrenho combate dos trotskistas da OSI, foi se incorporando à ordem burguesa e às instituições nascidas da transição para a Nova República. Por um lado, o PT combateu a ditadura e organizou a base dos trabalhadores, mas, por outro lado, viu parte de sua direção e de seus parlamentares se adaptarem à institucionalidade burguesa. Em 1986, os trotskistas diziam: “somos contra tanto o comportamento individualista daqueles que acreditam não ser necessário ouvir o partido e que, por conta própria, avançam propostas conciliadoras, como aqueles que, também não se submetendo à democracia interna do PT, subordinam-se a comandos paralelos e priorizam a divulgação de suas posições políticas, em detrimento daquelas do próprio partido”14. Os revolucionários seguiram o rumo da luta pela construção e pelo socialismo, ainda que, a partir de 2015, essa tarefa tenha passado a ser por fora do PT.
Legado político e teórico
O legado político e teórico dessas gerações de revolucionários que lutaram na ditadura se expressa hoje na Organização Comunista Internacionalista (OCI), seção brasileira da Corrente Marxista Internacional (CMI). Esse foi o combate dos marxistas, durante décadas, dentro do PT. Esse foi o combate dos revolucionários na luta das fábricas recuperadas pelos trabalhadores. Esse foi o combate dos trotskistas no combate para que o socialismo não deixasse de estar na estratégia do PSOL. Esse foi o combate pela permanente construção de uma internacional operária. Essa história de lutas, que remonta à ditadura, é o que inspira a OCI e fortalece a luta pela revolução e pela construção de uma sociedade comunista.
1 Michel Pablo. Aonde vamos? Janeiro, 1951, p. 10.
2 Idem, p. 11.
3 Frente Operária, nº 90, maio 1963. in: Murilo Leal. À esquerda da esquerda. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 179.
4 Frente Operária, nº 106, outubro 1963. Idem, p. 180.
5 Carta de 4 de setembro de 1964. Idem, p. 193.
6 Organização Comunista 1º de Maio. Algumas considerações sobre a formação da direção revolucionária do proletariado. In: Daniel Aarão Reis Filho; Jair Ferreira de Sá (Org.). Imagens da revolução. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 392.
7 Idem., p. 392.
8 Idem, p. 399.
9 Idem, p. 416.
10 Idem, p. 389.
11 Resolução política do III Congresso da OSI. A Luta de Classe, nº 2, set. 1979, p. 17-8.
12 Comitê Central da OSI. A greve do ABC e a situação nacional. A Luta de Classe, nº 4, maio 1980, p. 11.
13 Idem., p. 11.
14 Bernardo Bera. O PT, a Nova República e a independência de classe. O Trabalho, caderno 5, novembro 1986, p. 14.